Lendo o excelente artigo do MAO, “FASHION BLUES”, sobre a redução de massa não-suspensa, lembrei de uma história sobre radicalizar este aspecto, e de algumas importantes lições de engenharia que ela trouxe.
Corriam os anos 50, época da reconstrução no pós-guerra e de grande crescimento econômico europeu.
O mercado de trabalho por todo continente estava cheio de engenheiros, técnicos e práticos experimentados no projeto e construção dos mais variados equipamentos militares. Não demorou muito, e toda uma onda de criatividade e de transferência de tecnologia surgiria nas novas fábricas de automóveis.
Entre as novidades que enchiam as mentes destes especialistas, havia o conhecimento de que a suspensão de um veículo era tão mais eficiente quanto menor fosse a massa não-suspensa do conjunto. Esta verdade técnica era inquestionável.
A partir desta ideia, houve uma corrida tecnológica atrás da redução massa não-suspensa, e todos os detalhes das suspensões foram pensados e repensados dezenas de vezes, buscando alívio de peso dos componentes.
Em 1952, a Jaguar vence a 24 Horas de Le Mans com o C Type, e o grande trunfo deste carro era seus freios a disco. Mais eficientes, se refrigeravam melhor e eram imunes à água. E, além disso, mais leves que as robustas panelas de ferro fundido dos freios a tambor dos concorrentes.
Freios a disco já eram utilizados pela aviação havia alguns anos e toda uma leva de especialistas vindos da aeronáutica militar estavam habituados com eles. Não demorou e logo o novo tipo de freio se espalhou por entre os fabricantes de automóveis.
Porém, a redução de massa não-suspensa proporcionada pelos freios a disco não havia deixado os engenheiros satisfeitos. Eles queriam uma redução de massa não-suspensa ainda maior.
Em 1955, a Citroën lança seu modelo DS, com freios a disco montados na saída do transeixo dianteiro. Eram os chamados freios “inboard”.
Com esta configuração, a massa do conjunto de freios deixava de ser não-suspensa para a condição de suspensa, e ainda oferecia a vantagem de transferir os esforços de segurar a pinça durante a frenagem das articulações dos braços da suspensão para os suportes fixos do transeixo.
A Rover, em seu modelo P6, utilizou freios a disco inboard montados no diferencial traseiro.
A NSU, mais conhecida pelo uso do motor Wankel, também foi usuária dos freios inboard.
Muitas outras fábricas usaram freios inboard, como a Audi, a Mercedes e a Jaguar. Mas o exemplo máximo do uso dos freios inboard está no Lotus 72, que daria o primeiro título de pilotos ao Brasil pelas mãos de Emerson Fittipaldi. Reparem que ela possuía freios inboard tanto dianteiros como traseiros.
Apesar da aparente vantagem técnica de reduzir a massa não-suspensa, o uso dos freios inboard foi praticamente abandonado, restando como maior exemplo atual de seu uso o Hummer H1 de uso militar, que tira proveito desta configuração não por causa do problema de redução de massa não-suspensa, mas porque aloja o disco numa posição mais segura contra imprevistos vindos de solos muito acidentados e hostis.
Se os sistemas de freios inboard apresentavam uma vantagem evidente tão grande na redução da massa não-suspensa, então por que seu uso não se generalizou? Há duas linhas de problemas relacionados com esta pergunta, uma referente ao calor, outra relacionada com a árvore de transmissão.
A função dos freios é transformar a energia cinética do carro em calor. Como um automóvel possui muita massa e anda em alta velocidade, a quantidade de energia cinética que os freios tem de transformar é muito grande. Uma vez gerado, esse calor deve ser rapidamente dissipado. Se ficar retido, certamente causará problemas.
Uma roda com furações adequadas funciona como um ventilador, sugando ar de debaixo do carro e jogando para o lado de fora. Um freio instalado junto à roda tira proveito desse fluxo forçado de ar fresco para refrigerá-lo.
Uma observação que nosso colega FB sempre nos faz é que muita gente levou sustos com Gol GTS que usavam rodas modelo orbital. As rodas modelo orbital possuíam furação mínima e não refrigeravam adequadamente os freios, que acabavam falhando quando muito solicitados. Também já ouvi o mesmo tipo de comentário a respeito da roda “pingo d’água”, do mesmo carro. Isto evidencia o quanto o disco depende da refrigeração forçada proporcionada pela roda.
Boa parte do calor que flui pelo disco é conduzido para a roda, que é montada diretamente sobre ele, e esta se torna um radiador adicional para a dissipação deste calor.
Especial atenção a esta propriedade deve ser notada no uso das rodas de liga leve. Assim como vários tipos de radiadores e dissipadores de calor, as rodas de liga leve geralmente são feitas de liga de alumínio, que possui uma condutividade térmica muito superior ao aço, ajudando ainda mais na tarefa de dissipar o calor dos freios, estendendo sua eficiência.
Os freios inboard não possuem estas facilidades, tornando-se muito mais críticos sob serviço severo. Eles geralmente ficam em locais pouco ventilados naturalmente e sem ventilação forçada, estando mais sujeitos aos efeitos do calor, como o fading (o "sumiço" temporário da eficácia e a vitrificação das pastilhas.
Como os freios inboard são montados no transeixo ou no diferencial, muito calor é conduzido para estes componentes, afetando o óleo de lubrificação das engrenagens. Isto tem que ser levado em conta no projeto do transeixo ou do diferencial.
Alguns freios inboard, por estarem perto do assoalho do veículo, exigem uma manta térmica para que o calor irradiado não aqueça indevidamente o habitáculo.
Os freios inboard também exigem uma árvore de transmissão biarticulada entre eles e as rodas. Nas rodas de tração estas árvores já existem, porém estas árvores deverão conduzir torque nos dois sentidos. Enquanto isso, nos carros com freios convencionais, estas árvores têm vida projetada levando em consideração a transferência de torque num único sentido. Esta diferença exige maior dimensionamento das articulações das árvores para a mesma vida estimada, o que representa peso e custo adicionais.
Nas rodas sem tração, o uso de freios inboard exige árvores exclusivamente para a frenagem. Como estas árvores estão ligadas à roda, metade de sua massa opera como massa não suspensa, reduzindo a vantagem esperada.
Sendo de aço, as árvores de transmissão possuem uma elasticidade torcional, tal qual à das barras de torção usadas em suspensões. Esta elasticidade dá certo grau de liberdade entre o movimento da roda em relação ao movimento do disco. Esta elasticidade, somada à inércia de giro (momento de inércia) da roda apresentam uma determinada frequência de ressonância, que pode se manifestar durante uma frenagem de emergência, interferindo na capacidade de frenagem.
Mais modernamente, a relativa liberdade de movimento entre a roda e o disco propiciada pela elasticidade da árvore tornaria muito mais complexa a função de controle do atuador do ABS.
Diante de tantos problemas, a vantagem do uso dos freios inboard para redução de massa não suspensa acabou anulada. Apesar de uma ou outra aparição, é praticamente uma opção tecnológica descartada para a produção em massa. Desta e de muitas outras histórias semelhantes, há duas grandes lições a serem aprendidas.
A primeira é a de que nunca se deve levar a ferro e fogo um projeto baseado numa verdade técnica. Como em toda engenharia, cada escolha técnica possui vantagens e desvantagens. O bom projeto é aquele que consegue balancear as escolhas de forma a conseguir o máximo de vantagens com o mínimo de desvantagens.
Aqueles que projetam sem fazer concessões de compromisso, obedecendo fielmente uma verdade técnica correm o risco de obterem uma pequena vantagem em troca de inserirem um número enorme de problemas onde antes eles não existiam.
A outra lição que se toma daí é com relação ao entusiasmo com que abraçamos algumas ideias novas e maravilhosas. Nada neste mundo é perfeito. Quando alguma idéia maravilhosa ou alguma tecnologia revolucionária aparece, é sempre bom tentar enxergar o que está escondido por trás. Pode ser que ela carregue defeitos e desvantagens ocultos, mas significativos para não escolhê-la.
O mundo da tecnologia possui sua própria versão do processo darwinista de seleção natural, e este processo é implacável. Investir com excesso de ânimo e falta de cautela numa tecnologia nova, não suficientemente testada, é correr o risco de investir para vê-la fracassar. Os freios inboard foram adotados com enorme entusiasmo logo que apareceram. Parecia uma ótima solução para reduzir a massa não suspensa.
Porém, ao competir com os freios montados de forma convencional, junto às rodas, suas desvantagens logo ficaram aparentes, e hoje estão mais para uma tecnologia que se tornou obsoleta e uma mera curiosidade que vez ou outra acaba ressurgindo.
Os engenheiros que os adotaram, quer fosse pelo entusiasmo da novidade, quer fosse pelo radicalismo de obter a suspensão com a menor massa não-suspensa possível, tentaram e aprenderam estas lições na prática. Os demais, que foram mais ponderados e consideraram que esta solução realmente não valia a pena, não cometeram o mesmo erro.
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