Quando era um adolescente devorador de informações automotivas, durante os anos 80, o que havia de mais exótico e sofisticado naquele Brasil hermeticamente fechado ao exterior era um Alfa Romeo.
O Alfa 2300 nacional (abaixo) tinha tudo de bom que se poderia imaginar naquele tempo: Cabeçote em alumínio DOHC com válvulas de escape refrigeradas por recheio de sódio, dois carburadores duplos horizontais (no Ti4), câmbio de cinco marchas sincronizadas (Cinco! Nossa!), tração traseira, e freios a disco nas quatro rodas. O preço refletia tal sofisticação, e o Alfa custava quase três vezes o preço de um Opala, por exemplo.
O Alfa 2300 nacional (abaixo) tinha tudo de bom que se poderia imaginar naquele tempo: Cabeçote em alumínio DOHC com válvulas de escape refrigeradas por recheio de sódio, dois carburadores duplos horizontais (no Ti4), câmbio de cinco marchas sincronizadas (Cinco! Nossa!), tração traseira, e freios a disco nas quatro rodas. O preço refletia tal sofisticação, e o Alfa custava quase três vezes o preço de um Opala, por exemplo.
E não era só isto que me excitava: lia com frequência notícias de fora que contavam coisas inimagináveis para nós, tupiniquins isolados. Lia sobre o incrível Montreal, sobre os Alfettas com transeixo traseiro, sobre o GTV6 com a lendária melodia de seu então novo V-6 de 2,5 litros. Sonhava com Guilia GTV e com o glorioso 33 stradale, com Spyders e fugas californianas de um jovem Dustin Hoffmann, e me imaginava fazendo o mesmo com um GTV6 twin turbo americano. Eu realmente gostava de Alfas.
Fui dirigir um Alfa pela primeira vez ao redor de 1988, quando um colega de república herdou do pai um Ti4 84, verde-claro. Ansioso para experimentar a mítica alma de Portello, aproximei-me do carro com toda a trepidação de uma freira que se aproxima da praça de São Marco pela primeira vez.
Foi uma tremenda decepção. Acostumado que estava com o meu Opala 250-S, achei que toda aquela sofisticação não servia para nada, afinal de contas. O carro era lento, sem vontade, e apesar de marginalmente melhor em estabilidade que meu Opala, tinha um curso muito curto na suspensão dianteira que o deixava insuportavelmente desconfortável. Regularmente chegava em qualquer lugar que fôssemos bem antes do Alfa, e isto rapidamente se tornou piada entre os amigos.
Por muitos e muitos anos depois desta época, dediquei a todo Alfa Romeo um profundo desprezo, aquele reservado especialmente aos espancadores de velhinhas e aos torturadores de filhotes de labrador. Experiências recentes com o Spyder V-6 de 95 não ajudaram em nada: me pareceu igual ao meu Maxima do mesmo ano, mas sem a capota, a rigidez, a confiabilidade. E com um preço tresloucadamente alto no mercado de usados. De novo, muito barulho por nada.
Mas ano passado, um grande e próximo amigo comprou um Alfa Romeo GTV 2000 1973, bom de mecânica e estrutura, mas precisando de um pouco de carinho e dedicação.Vindo de uma família de alfistas, este amigo sabe como achar peças e serviços para ele, e durante boa parte do ano se dedicou a arrumar o que estava errado, e vivia me contando o quanto ele era legal e tal, mas, coitado; continuava desprezando-o.
Mas o danado do Alfinha ficou bonito mesmo, e eu comecei a pensar um pouco sobre isto tudo. Estaria eu enganado? Será que minha opinião bem arraigada da marca está realmente certa, ou é um engano fragoroso? Valeria a pena experimentar mais um deles ou a jóia de Portello estaria destinada a se manter desprezada?
Resolvi então dar uma segunda chance a ele. Afinal de contas, só havia dirigido dois Alfas, e ambos, segundo muitos, estão anos-luz de serem exemplos decentes do que é um Alfa de verdade. O 2300 é um carro que nasceu bravo e nervoso tentando ser um carro de luxo, e o Spyder que andei tem tração dianteira, por todos os deuses!!!! Tomei coragem e pedi ao meu amigo para dar uma volta com o bichinho.
E desta vez, a marca Alfa Romeo não tinha maneira de escapar de meu crivo e julgamento possoal, visto que o GTV de dois litros é dos mais emblemáticos exemplos de Alfa Romeo, e um carro universalmente julgado com carinho e boas vibrações. Marcamos um dia e finalmente sábado passado pude andar nele.
Mas antes de contar como foi, um pouco de história se faz necessário. O GTV é derivado do Giulia (abaixo), lançado em 1962, que por sua vez é uma versão pouco maior e modernizada do Giulietta, que apareceu no longínquo ano de 1954. O Giulietta (acima) é um marco de diversas maneiras diferentes. Primeiro, fixou o que seria a Alfa Romeo do pós-guerra: o que era antes uma espécie de Ferrari dos anos 30, se tornaria uma marca com um volume de produção e vendas muito maior, mas ainda com técnica e esportividade intactas. Em segundo, foi um carro incrivelmente moderno para seu tempo, e com um desempenho e comportamento ímpar em sua classe. E, finalmente, foi a base de todo Alfa realmente memorável do pós-guerra. Seu motor (modificado é claro) durou até 1994, e é incrivelmente sofisticado para algo de produção seriada em 1954: todo em alumínio (com camisas de ferro fundido), DOHC acionado por corrente dupla, câmaras de combustão hemisféricas e válvulas de escape refrigeradas a sódio. Tudo isto em uma época em que válvulas laterais (os famosos “cabeça chata”) ainda eram relativamente comuns.
O GTV apareceu como Giulia GT de 1962 , e só depois recebeu o "V" de Veloce. Tinha um desenho do jovem gênio da casa Bertone, o depois famosíssimo Giorgetto Giugiaro. Como quase todas os Giulias, usa freios a disco nas quatro rodas (!!!), suspensão traseira com eixo rígido (bem localizado com um braço triangular em cima do diferencial e molas helicoidais) e dianteira com braços triangulares sobrepostos. Foi desenvolvido para usar pneus radiais (também raros então), inicialmente os Pirelli CF67 Cinturato. O câmbio era uma unidade totalmente sincronizada de cinco marchas.
Os GT/GTV foram oferecidos em vários tamanhos de motor durante sua vida, 1600, 1750 e 2000, e, com o nome de GT Junior, 1300. Teve uma história de sucesso em competições, principalmente na sua versão de peso aliviado GTA (GT “Alleggerita”) um lendário cupê de alumínio e cabeçote de velas duplas, homologado especialmente para competição.
O GTV 2000, corrente de 1971 a 1976, é a última evolução para as ruas deste longevo cupê. O motor desloca exatamente 1.962 cm³, a partir de um diâmetro de 84 mm por um curso de 88,5 mm, sua potência é de 130 cv a 5.500 rpm e seu peso total, ao redor de 950 kg. O carro do meu amigo tem um opcional raro e interessante: ar condicionado, o que faz com que a bateria vá para o porta-malas (onde Deus a colocou originalmente), já que o espaço no cofre se tornou exíguo.
Andando de GTV
Olhando o carrinho na frente de casa, recém-lavado e polido num resplandecente e profundo negro, não há como não admirar o trabalho do jovem Giugiaro. O carro é pequeno, mas as proporções e a pureza de linhas são simplesmente sensacionais. A área envidraçada é grande, e o teto é suspenso por delicadas colunas, algo impossível de se fazer hoje em dia, tempo em que um carro é feito para encarar um bloco de concreto imóvel, ao invés de desviar dele. Os para-lamas dianteiros são ligeiramente mais altos que o capô, mostrando sua posição para o motorista, um universal sinal de um carro de mecânica baixa. O pequeno porta-malas e o longo capô são tão perfeitos em sua proporção em relação ao entre-eixos e ao tamanho total do carro que compelem o cientista alemão dentro de mim a tentar criar uma fórmula matemática para que os designers obtenham a partir de um dado entre-eixos e comprimento final, o ideal tamanho de cada volume e o diâmetro das rodas e pneus. Uma perfeita “Lei da GTV”, que os ensinaria a serem tão geniais como Giorgetto, e abandonassem inspirações amalucadas de filmes de ficção e hot rods, tão presentes em estúdios de design hoje em dia.
Os detalhes também são apaixonantes: rodas de aço pintadas no exato tom de cinza original, e com as calotinhas também originais, cromadas. Meu amigo teve que contratar um torneiro mecânico para reproduzir os parafusos de roda originais, que têm um desenho diferente para segurar as calotas. Quatro pneus radiais novos e de boa qualidade (Goodyear) na medida 195/70 R14, de novo mostram o cuidado dele para com o carrinho.
Dentro dele, mais alegria: um vinil de textura perfeita, clarinho, bege, contrasta com a madeira, alumínio, o preto do painel e com a grande área envidraçada, para dar uma atmosfera clara, iluminada e agradabilíssima. Achei isto fantástico, logo de cara, pois um cupê tão pequeno normalmente acaba por ser a ser altamente claustrofóbico.
Senta-se baixo, bem no meio do veículo, como deve ser em um carro esporte. Os dois instrumentos principais em um “binóculo” pronunciado, câmbio com a alavanca curvada para trás (parecida com o do Chevette), volante de madeira e alumínio em posição perfeita, pedais idem. Da posição de direção, como já disse, pode-se ver os para-lamas altos, marcando as extremidades do carro: genial. A sensação é de que, apesar de ser um carro visivelmente pequeno, o acesso, a posição de dirigir, e o espaço para o motorista e um passageiro são ótimos. O banco traseiro, porém, deve ser tratado como espaço extra de bagagem, ou para crianças bem pequenas.
O motor liga fácil, e logo se mantém em uma marcha-lenta estável. Acelerando-o parado, se tem uma ideia do que vem pela frente. Um motor sem frescuras, sem melodia de escape, vibrador. Mas também solto, que sobe de giros fácil, e que engole ar com vontade por suas quatro borboletas de admissão, neste caso acopladas a dois magníficos carburadores duplos horizontais Dell’Orto. Sem modos, mas robusto, com fôlego e disposição de atleta. Humm... Interesting...
Ao colocar o carro em movimento, a primeira surpresa: cadê o freio? Mas logo depois, entendi: é necessário uma forte pisada para acionar realmente as quatro pinças italianas. De cara uma sensação forte me avassala: como parece moderno ao rodar! Para quem está acostumado com carros dos anos 60/70, a impressão de que o carro é muito mais novo do que é impressiona. Que revelação deve ter sido em sua época... Até o freio foi só questão de adaptação; em segundos estava modulando-o e freando instintivamente como se fizesse isto há anos.
E me senti em casa. A alavanca de câmbio se move com facilidade e precisão, o motor pede para ser acelerado, e como sou educado, assim o fiz. Não sei se ela se comporta bem andando devagar; enquanto estive com ele só andei à moda.
Em pouco tempo, estava atacando as curvas com vontade, e estava embasbacado com a compostura do Alfa. Já andei em muitos carros da mesma época, e nenhum chega perto. Na verdade, poucos carros que já dirigi, independente da época, são tão apaixonantes no comportamento. Some-se o motor, que é um verdadeiro estivador (forte e eficiente mas nem aí para as boas maneiras e o refinamento), a tração traseira perfeita para posicionar o carro nas curvas, a direção e o câmbio que só ajudam, o pequeno tamanho, e se tem uma experiência ao volante que é mais que boa ou memorável: é excitante.
A coisa realmente esquentou, literalmente. Andando cada vez mais rápido, me sentia cada vez mais unido com o bichinho, e ele parecia adorar. O túnel esquentou ao lado de minha perna; mas não quente “queimadura de primeiro grau”, quente assim como paixão, desejo que se consuma. Um calorzinho danado de bão, se é que me entendem.
Correndo risco de parecer rude, e usando um grande clichê que evito a todo custo: aquilo estava realmente parecendo sexo. Algum esforço físico era necessário para se fazer tudo aquilo, mas durante a brincadeira você nem se toca disso, excitado e no meio de tanta diversão e emoção. A resposta telepática de tudo aquilo que eu tentava fazer me provocava a fazer mais, e seguíamos assim eu e a máquina num crescendo delicioso... É impossível de não se deixar levar, e sentir o abandono clássico da paixão, aquela maravilhosa certeza de que o tempo parou e não há mais nada no mundo além de você e sua companheira.
De repente, meu telefone toca e me lembra do mundo lá fora (todo mundo sabe como é chato isso), e paro para atender: era meu amigo, que estava tentando me seguir com o meu Maxima, e tinha ficado para trás e se perdido. Estava visivelmente irritado, achando que estava muito rápido... Ciúmes totalmente compreensível.
Bem, meninos, acho que vocês entenderam. Para resumir a história, mandei meu amigo para sua casa de Maxima a contragosto, para passar o fim de semana com o Alfa, e ainda estou dolorido e cansado de tanto dirigir. Cansado, mas feliz. Feliz, satisfeito, exaurido. Como quando passamos um fim de semana íntimo com uma nova paixão. De volta a meu ar condicionado e isolado sedã japonês, a vida nunca seria mais a mesma.
E olhem só: nem liguei o ar condicionado do Alfa, e só me lembrei dele agora! Mas também, e daí? Ar condicionado, rádio...tudo isso é supérfluo neste carro, que já é um parque de diversão completo sozinho. Nem me lembro se ele tinha equipamento de som...
O 911 italiano
Então, a conclusão é que realmente há um motivo de tanto falatório sobre Alfas, e este motivo é amor, que desanda inevitavelmente para muito sexo. Mas por que, fazendo carros tão fantásticos, a empresa não dominou o mundo?
Muitos diriam que é por causa de confiabilidade. Mas tirando a ferrugem, um problema bem conhecido, todos os donos de carros derivados do Giulia que conheço só têm boas coisas a dizer da mecânica, que é basicamente bem robusta. Mas é verdade que, quando quebram, dão trabalho para consertar.
Mas a Alfa abandonou cedo o conceito do Giulia, e em 1972 lançou o Alfetta com câmbio traseiro, e dele derivou um novo GTV. Minha impressão é que se perderam; lançaram depois os Alfasud (tração dianteira, 4 cilindros contrapostos) e o Alfa 6, e sua qualidade e confiabilidade, aí sim, decaíram sensivelmente, lançando a empresa, que era estatal,, em uma espiral de problemas que a levou a ser absorvida pela Fiat.
O GTV era um concorrente direto do Porsche 911 em sua época. Tinha um tamanho próximo, eram ambos 2+2, e o deslocamento do motor é semelhante. Mas a Porsche desenvolveu o seu conceito básico até 1998, e ainda até hoje ainda faz evoluções deste carro.
Tendo dirigido o GTV, tenho a dizer que se a Alfa deixasse a sanha de inovar sempre de lado, e tivesse agido como a Porsche, hoje ela dominaria o mundo. Um GTV moderno, evoluindo até o desenho genial de Giugiaro, seria hoje tão icônico quanto o alemão. O GTV não deve nada em prazer ao volante em relação a um 911 contemporâneo. São coisas totalmente diferentes, mas completamente apaixonantes e carismáticas.
MAO