Todo mundo sabe que o carro mais veloz do mundo hoje é o Bugatti Veyron. Uma máquina especializada, baixa, aerodinâmica, de apenas dois lugares e nenhum lugar para bagagem. Estamos acostumados a imaginar "o carro mais veloz do mundo" como algo assim, que sacrifica considerações práticas como bagagem, acessibilidade, visibilidade e conforto no altar da velocidade. O mais veloz deve ser um bólido, uma flecha, uma cunha impossivelmente baixa e aerodinâmica que invariavelmente faz o piloto ficar praticamente deitado, com um imenso motor amarrado às suas costas. Pensamos em Countachs, Miuras, em McLaren F1.
Esta é a regra que foi quebrada há exatamente 32 anos, no dia 18 de fevereiro de 1977. E, incrivelmente, por uma pequena empresa com apenas 160 funcionários perdida no interior da Inglaterra, que produzia carros totalmente à mão, sem ferramentais e prensas gigantes, seguindo uma longa tradição daquele país. Esta tradição, tornada famosa pela mãos dos senhores Rolls e Royce, ditava que "the proper way to build a gentleman's machine" (a maneira correta de se fazer uma máquina para um cavalheiro) era usando uma engenharia impecável, com nenhum compromisso geométrico ou de materiais nos mecanismos. O que significava que somente os melhores materiais seriam usados, não importando seu custo, e que nenhuma geometria de movimento era inviável para atender o desejado, de novo sem se importar com o custo. E que sua fabricação também levaria o tempo e o cuidado necessários para atingir a perfeição, abolindo-se completamente a noção de que tempo é a única medida para eficiência produtiva.
Este casebre abaixo, com a bandeira da Aston tremulando, era a sede da empresa antes da Ford chegar em 1987:
E esse anacrônico e antiquado barracão lançava o mais veloz carro do mundo em 1977. E não só isso, o fazia com um "Gentleman's car", que nunca faria seu dono fazer nenhum sacrifício para usá-lo, pois tinha porta-malas, era confortável e bem-acabado como um Rolls, e tinha ótima visibilidade externa. Um carro de verdade, não um brinquedo exótico e irrelevante. Tinha até lugar para duas crianças no banco de trás!
Mas ao contrário dos Rolls, os Aston Martin não eram flácidos e paquidérmicos meios de tranporte para serem dirigidos por motoristas. Eram carros para se dirigir. E no caso do V-8 Vantage que aniversaria hoje, uma forte personalidade escondida debaixo do terno. Um dragão prestes a cuspir fogo e enxofre, um bárbaro cimério escondido em um traje de gala de Saville Row.
Olhem para ele! Nada combinou sofisticação e brutalidade como este carro, nem ontem e nem hoje. Vejam como os para-lamas alargados e os enormes Avon em rodas de aro 15 (que tamanho perfeito; como são idiotas os aros 20 com faixinhas de borracha de hoje) fazem a suave aparência do V8 normal pegar uma curva errada na vida e ir parar na terra de Belzebu. Vejam como a grade fechada flanqueada por dois faróis auxiliares Cibié, circulares, mostram a seriedade do propósito de andar forte, em qualquer hora. Bruto, mais ainda assim com classe. Lembra-nos de outros ícones britânicos como Churchill e o buldogue. Como dizem os ingleses: "Our very British bulldog".
A história deste carro começa com o final da era de David Brown na Aston, e o lançamento, em 1967, do DBS. Desenhado por William Towns, um engenheiro/designer contratado inicialmente para desenhar bancos, sua especialidade em seu antigo empregador, a BMC (British Motor Corporation, casa de Rovers e Austins, RIP). Outros tempos mesmo: bancos não eram meramente comprados, e um engenheiro ainda podia mostrar um profundo senso de estética, suficiente para criar um clássico ainda imitado hoje em dia, sem o mesmo sucesso, por designers profissionais.
O DBS foi projetado para usar o então novo V-8 do engenheiro Tadek Marek, então deslocando 5 litros. Em 1966, o motor foi colocado a prova montado em um Lola T70 na prova de Le Mans, mas fracassou miseravelmente. A decisão foi imediatamente tomada, a de lançar o carro com o seis-em-linha do DB6 Vantage. Outros tempos realmente...
O DBS era um cupê de motor dianteiro e tração traseira, com uma suspensão traseira De Dion com freios a disco "inboard", próximo ao diferencial e não na roda, prática usual na época para redução de massa não-suspensa. Em 1969, finalmente o V-8 de Tadek Marek entrava em produção com um diâmetro de 100 mm e um curso de 80 mm, totalizando 5,3 litros (5.340 cm³). Totalmente em alumínio, com injeção Bosch e duplo comando no cabeçote, o motor produzia (no “novo” DBS V-8) algo em torno de 310 cv a 5.000 rpm. Novas rodas de alumínio substituíam as clássicas "wire wheels" do DBS. Começava também a tradição de motores "assinados" pelo seu montador. Chegava a 256 km/h e fazia o 0-100 km/h em 6 segundos. Em 1973, com o fim do DBS seis-cilindros, aparecia um novo e simplificado nome, Aston Martin V-8, e uma grade mais próxima a dos antigos DBs, com faróis separados.
Em 1976, o então engenheiro-chefe da Aston, Michael Loasby, prepara um Aston V-8 para competições de carro esporte, eventualmente alcançando um ótimo sétimo lugar em Le Mans. Este carro foi o laboratório de várias experiências como a grade dianteira fechada que acabou adotada no Vantage. Esta grade fechada incrivelmente melhorou sobremaneira a penetração aerodinâmica do carro. Loasby aprende também o grande potencial para a força do V-8 da companhia, e idealiza com o chefe da Aston, Victor Gauntlett, uma versão para rua de seu bólido de competição.
O carro de corrida de Loasby:
Assim nascia o Vantage. O V-8 tinha a injeção substituida por um glorioso quarteto de Webers duplos, a taxa de compressão foi aumentada para 10,2:1, válvulas de admissão maiores e novos comandos de válvulas, elevando a rotação de potência máxima para 6.000 rpm. A potência não era declarada, como a Rolls-Royce não a informava, mas hoje sabemos que era de 380 cv, com um torque de mais de 50 mkgf. Amortecedores a gás de maior carga e enormes pneus Avon 255/60-15 eram adotados. A imprensa da época ficou pasma: o carro foi cronometrado a 285 km/h e fazia o 0-100 km/h em 5,3 segundos. O carro mais próximo dele em velocidade final era o Countach LP400, com 280 km/h.
Prototipo do Vantage em 1976 :
O DBS foi projetado para usar o então novo V-8 do engenheiro Tadek Marek, então deslocando 5 litros. Em 1966, o motor foi colocado a prova montado em um Lola T70 na prova de Le Mans, mas fracassou miseravelmente. A decisão foi imediatamente tomada, a de lançar o carro com o seis-em-linha do DB6 Vantage. Outros tempos realmente...
O DBS era um cupê de motor dianteiro e tração traseira, com uma suspensão traseira De Dion com freios a disco "inboard", próximo ao diferencial e não na roda, prática usual na época para redução de massa não-suspensa. Em 1969, finalmente o V-8 de Tadek Marek entrava em produção com um diâmetro de 100 mm e um curso de 80 mm, totalizando 5,3 litros (5.340 cm³). Totalmente em alumínio, com injeção Bosch e duplo comando no cabeçote, o motor produzia (no “novo” DBS V-8) algo em torno de 310 cv a 5.000 rpm. Novas rodas de alumínio substituíam as clássicas "wire wheels" do DBS. Começava também a tradição de motores "assinados" pelo seu montador. Chegava a 256 km/h e fazia o 0-100 km/h em 6 segundos. Em 1973, com o fim do DBS seis-cilindros, aparecia um novo e simplificado nome, Aston Martin V-8, e uma grade mais próxima a dos antigos DBs, com faróis separados.
Em 1976, o então engenheiro-chefe da Aston, Michael Loasby, prepara um Aston V-8 para competições de carro esporte, eventualmente alcançando um ótimo sétimo lugar em Le Mans. Este carro foi o laboratório de várias experiências como a grade dianteira fechada que acabou adotada no Vantage. Esta grade fechada incrivelmente melhorou sobremaneira a penetração aerodinâmica do carro. Loasby aprende também o grande potencial para a força do V-8 da companhia, e idealiza com o chefe da Aston, Victor Gauntlett, uma versão para rua de seu bólido de competição.
O carro de corrida de Loasby:
Assim nascia o Vantage. O V-8 tinha a injeção substituida por um glorioso quarteto de Webers duplos, a taxa de compressão foi aumentada para 10,2:1, válvulas de admissão maiores e novos comandos de válvulas, elevando a rotação de potência máxima para 6.000 rpm. A potência não era declarada, como a Rolls-Royce não a informava, mas hoje sabemos que era de 380 cv, com um torque de mais de 50 mkgf. Amortecedores a gás de maior carga e enormes pneus Avon 255/60-15 eram adotados. A imprensa da época ficou pasma: o carro foi cronometrado a 285 km/h e fazia o 0-100 km/h em 5,3 segundos. O carro mais próximo dele em velocidade final era o Countach LP400, com 280 km/h.
Prototipo do Vantage em 1976 :
Esses números ainda hoje são respeitáveis, mas atualmente num mundo onde 500 cv são corriqueiros, 600 não geram comoção e existe até um carro com mais de mil deles, carece colocá-los em perspectiva.
A maior concorrência era italiana: o fim dos anos 60 e os 70 foram o auge do supercarro italiano, exemplificado pelo incrível Countach já mencionado. O poderoso Ferrari Daytona chegava a praticamente aos 285 km/h do Aston, mas já tinha sido descontinuado em 1974. Seu substituto, o Berlinetta Boxer com o flat-12 de 4,4 litros central-traseiro chegava a parcos 262 km/h. O Maserati Bora, com motor também central-traseiro (V-8 DOHC, 4,7 litros) chegava perto, com quase 280 por hora, mas devido à sua relação final longa acelerava em 6,5 segundos até os 100 km/h. O Iso Grifo 7 litri, equipado com o V-8 427 de Corvette, ficou famoso por ser testado por uma revista italiana a 300 km/h, mas em 1977 a empresa já nem existia mais.
Os alemães tinham somente o Porsche 911 turbo, com apenas 250 km/h, e no ano seguinte lançariam o BMW M1, que chegava a 255 km/h.
Então, naquele longínquo dia em 1977, exatos 32 anos atrás, a pequena empresa inglesa entrava para a história, com seu mais carismático e clássico modelo, o V-8 Vantage. O fato de seu posto de mais veloz durar pouco (Ferrari e Lamborghini recuperaram-no logo) pouco importa; nunca foi esse o objetivo final. Em 1986 ganhava uma opção "X-pack", com escapamentos menos restritivos e 425 cv, e em 1988 deixava de ser fabricado para dar lugar ao mais pesado e menos feliz Virage. Dali em diante a empresa inexoravelmente deixava de ser o que era para virar mais um fabricante de carros esporte modernos, subsidiária da Ford.
Então vamos pausar por um momento neste dia de hoje e lembrar de um Davi inglês, pequenininho mas hábil, inteligente e orgulhoso de si que derrubou todos os Golias do mundo automobilístico com um carro que, até hoje, inspira admiração e respeito.
Um dia, 32 anos atrás, em que o buldogue inglês foi mais rápido que todos os galgos do mundo.
MAO
A maior concorrência era italiana: o fim dos anos 60 e os 70 foram o auge do supercarro italiano, exemplificado pelo incrível Countach já mencionado. O poderoso Ferrari Daytona chegava a praticamente aos 285 km/h do Aston, mas já tinha sido descontinuado em 1974. Seu substituto, o Berlinetta Boxer com o flat-12 de 4,4 litros central-traseiro chegava a parcos 262 km/h. O Maserati Bora, com motor também central-traseiro (V-8 DOHC, 4,7 litros) chegava perto, com quase 280 por hora, mas devido à sua relação final longa acelerava em 6,5 segundos até os 100 km/h. O Iso Grifo 7 litri, equipado com o V-8 427 de Corvette, ficou famoso por ser testado por uma revista italiana a 300 km/h, mas em 1977 a empresa já nem existia mais.
Os alemães tinham somente o Porsche 911 turbo, com apenas 250 km/h, e no ano seguinte lançariam o BMW M1, que chegava a 255 km/h.
Então, naquele longínquo dia em 1977, exatos 32 anos atrás, a pequena empresa inglesa entrava para a história, com seu mais carismático e clássico modelo, o V-8 Vantage. O fato de seu posto de mais veloz durar pouco (Ferrari e Lamborghini recuperaram-no logo) pouco importa; nunca foi esse o objetivo final. Em 1986 ganhava uma opção "X-pack", com escapamentos menos restritivos e 425 cv, e em 1988 deixava de ser fabricado para dar lugar ao mais pesado e menos feliz Virage. Dali em diante a empresa inexoravelmente deixava de ser o que era para virar mais um fabricante de carros esporte modernos, subsidiária da Ford.
Então vamos pausar por um momento neste dia de hoje e lembrar de um Davi inglês, pequenininho mas hábil, inteligente e orgulhoso de si que derrubou todos os Golias do mundo automobilístico com um carro que, até hoje, inspira admiração e respeito.
Um dia, 32 anos atrás, em que o buldogue inglês foi mais rápido que todos os galgos do mundo.
MAO
P.S.: Mais sobre Aston Martin nos Autoentusiastas? Clique nessas letras diferentes AQUI
Britshi Muscle
ResponderExcluirO alto nível dos posts aqui no Auto entusiastas me assusta! Lembro-me quando ainda era criança e tinhas aquelas cartas do Super Trunfo. A cartinha do aston era a minha favorita. Mal sabia eu a lenda que o carro é.
ResponderExcluirAbraços
Lucas
Lucas, tenho certeza que todos aqui jogavam supertrunfo. A minha preferida era a Ferrari 512 BB.
ResponderExcluirMAO, parabéns, excelente post. Não conhecia a história em detalhes. Saudades desse tempo...
ResponderExcluirAbraços
E pensar, Paulo, que isso já faz literalmente décadas. Abraço.
ResponderExcluirLucas
Parabéns pela apresentação de um carro que sempre era citado entre os mais velozes, mas acho que nunca na imprensa de época alguém entrou em detalhes que não o nome.
ResponderExcluirAgora sem dúvida a parede mostrava a BB 512 e a LP 400,com ou sem o enorme spoiler trazeiro...
E o V8 Vantage conseguia todo esse desempenho pesando mais de 1700 kg... Depois de ler esse excelente post, não há dúvidas de que os tempos áureos da Aston Martin ficaram bem para trás, infelizmente.
ResponderExcluirCabra bom esse MAO, queria ter um filho assim!
ResponderExcluirEu spo queria entender um cara que ama Aston e ao mesmo tempo, chevette. Huahauhauahauha
Amar Aston e Chevette é perfeitamente aceitável nesse blog,afinal somos entusiastas e não macacos de imitação. Sabemos, ou deveríamos saber, analisar cada carro dentro de sua categoria e particularidades. Parabéns pelo post MAO, conseguiu ser técnico sem ser cansativo. Conseguiu ser entusiasmante e apaixonado sem ser uma declaração de amor sem sentido.
ResponderExcluirEu acho os Aston V8 mais carismáticos do que os antigos DB's ou os atuais. E sempre me impressionou um carro com esse peso e perfil andar mais que a maioria das Ferrari de seu tempo!!
ResponderExcluirMas, como um entusiasta, me recuso a não reconhecer o excelente trabalho da Aston atualmente, com Ford ou sem Ford no comando.
A linha atual é belíssima e extremamente competente, ou não seriam os atuais DBR a linhagem de maior sucesso da Aston nas pistas.
São todos parecidos sim, não são supercarros mas é o que mais próximo chega deles e com tanto luxo, conforto sem abrir concessões de um belo desenho. Um Cayman não se parece com um 911 GT3? São parecidos e todos belíssimos!!
Os Aston V8 foram o que é hoje outra lenda, o Bentley Brooklands.
Bentley Brooklands está no Top 10 dos meus preferidos em termos de carros atuais...e encabeçando a lista.
ResponderExcluirComo apaixonado por carros ingleses - TODOS, do Mini ao Rolls-Royce -, acho muito legal ver alguém falando sobre os Aston Martin com tal conhecimento de causa - especialmente no Brasil, onde esses magníficos puros-sangues são quase desconhecidos. Morei em São Paulo durante alguns anos; certo dia, ao chegar em casa,
ResponderExcluirpor volta das sete da noite, vi uma carreta transportando um carro diferente, meio parecido com um Maverick cupê, mas um pouco mais retilíneo. "Parece que conheço esse carro", pensei eu, ao tempo leitor voraz de revistas inglesas sobre carros clássicos. Quando o reconheci, um forte arrepio me atingiu: era um Aston Martin DBS, com motor seis cilindros, rodas de arame com cubo rápido, saídas de ar na coluna traseira), prata-azulado, muito parecido com o DBS azul que ilustra o "post". Que coisa mais linda...