google.com, pub-3521758178363208, DIRECT, f08c47fec0942fa0 SOUL - AUTOentusiastas Classic (2008-2014)

SOUL

Quando alguns leitores, falando do Mille, disseram que entusiastas não deviam perder tempo com tão vil veículo, fiquei muito triste. Triste porque sempre acreditei que todo carro merece respeito.

Sempre achei que todo carro, por mais humilde e irrelevante que seja, é algo nobre.

Transcende a sua situação de máquina pelo simples fato de ser o supremo provedor de liberdade.

Quem nunca sentiu a sensação de libertação que é entrar pela primeira vez em seu próprio veículo? Sozinho ao volante de seu automóvel, o homem moderno se recolhe ao último refúgio onde pode experimentar algum real poder sobre seu destino, livre das amarras do vil transporte público, com seus trajetos fixos que temos que acatar, com as companhias de viagem que não desejamos ter. No automóvel, somos capitães de nosso próprio navio, senhores de nosso destino. Onde mais o somos?

Além disso, todo automóvel já sai das fábricas com um acessório incrível: impresso em seu corpo de metal está a marca da mão humana. Seus criadores, físicos e intelectuais, deixam nessa coisa uma quantidade anormal de sangue, suor, risadas e lágrimas.

Isto porque a criação de um novo automóvel, mesmo nessa era sem fronteiras e de máquinas que tornam cálculos complicadíssimos corriqueiros, ainda é um ato de coragem e fé. Coragem para criar algo do nada, e fé que isto que criamos vai primeiro funcionar direitinho, depois agradar a quem deve agradar, e depois ser reconhecido como correto. Carros novos nascem filhos de um batalhão de gente que trabalhou anos a fio contra dificuldades imensas.

E é obra de Coragem, também, porque por mais que novas técnicas de simulação tentem prever tudo, só se tem a real certeza do que o carro vai ser quando se monta o primeiro carro. Pode se cercar-se de medidas e cálculos, de clínicas e desenhos, mas quando o bicho está pronto, e podemos vê-lo ao vivo, entrar nele, ligá-lo, faze-lo andar, só aí, anos depois de bolarmos o negócio, é que vamos realmente conhecê-lo. Lesser Men should not try it.

E depois que o carro está pronto, projetado e nascido em metal, plástico, vidro e borracha, ele tem que ser produzido. Produzido muitas vezes aos milhares, todo dia, infalivelmente iguais. E montar um carro ainda é um trabalho duríssimo. Uma linha de montagem é um lugar implacável, que se move velozmente, e que não para por nada. Não se pode errar um parafuso, não se pode ir ao banheiro. Implacável. De novo, lesser men should not try it.

Para mim, um dos pontos mais fascinantes de uma fábrica de automóveis é o fim da linha de montagem. Naquele ponto, depois de ser estampado, soldado, pintado e montado, depois daquele monte de peças fabricadas em outras cidades, outros países, outros continentes terem viajado muitos km para serem montadas, tudo converge para aquele ponto único, onde um sujeito entra, sem cerimônia dá a partida, e aquilo que até ali era um objeto inanimado, parece que cria vida e parte para vivê-la. Você sempre se pergunta se vai ligar, mas eles sempre ligam. Eu não canso de me sentir embasbacado que o façam...

Mas vejo que hoje toda esta nobreza que sempre associei ao automóvel vem sendo abalada. Mais e mais, como tudo num mundo onde as utopias morrem, o motivo, o meio e o fim de tudo é o dinheiro. Dinheiro é bom e todos gostamos dele. Mas vejo hoje corporações se entregando a arte da enganação, ao ardil e mesmo a desonestidade para vender automóveis. Vejo engenheiros mais preocupados com carreira e promoção do que em aprender uma nobre tradição.Vejo o negócio permear de tal forma o trabalho dos criadores, que toda criatividade some, todo lampejo de humano que sempre houve na criação de carros some.

Não se tenta mais fazer algo melhor, mais barato, mais eficiente. O que se faz é tentar descobrir o quanto pior se pode fazer algo, sem que o consumidor perceba o engodo. Existem departamentos inteiros dedicados a esta enganação, disfarçados sob a égide de “agregadores de valor”, “otimização de produto”, “engenharia de valor”, e por aí vai.

É lamentável. Gosto de acreditar que existem empresas imunes a isto, mas será? E se são, até quando?

Como disse Rob Gordon, protagonista do excelente filme “Alta Fidelidade”, quando é interpelado por um cliente no balcão de sua loja de antiquados vinis, em momento claramente introspectivo para ele:

Cliente: Do you have Soul?
Rob:That all depends.

MAO

8 comentários :

  1. Bem,

    Estamos em um lugar em que o que manda é o "mercado" e o mecânico. O cliente só resta dirigir justificando a compra que fez, tipo: só comprei por causa do motor. Não gosto de Fusca e Corcel, mas os antigos donos ainda adoram. Hoje, só se compra pensando no motor que vai fundir daqui a cem mil quilômetros ou na depreciação que o carro vai sofrer daqui a quatro anos. Aqui não se dirige por prazer, mas por "nescessidade". Quem dirige por prazer é um louco hedonista que não pensa nas consequencias dos seus atos. E aí vamos nos afundando cada vez mais na ditadura dos 1.0 mais vendidos. Eu gosto de sedãs médios-grandes e daí? Não gosto de joelho nas costas e bafo na nuca. O mercado de carros aqui seria o paraíso das ditaduras comunistas que afundaram no mar da história. Nem precisam mudar de cor, é só pintar de prata. E só dois modelos e está bom. E vai tentar comprar um carro diferente. Às vezes nem querem te vender...
    E aí vemos "post" de gente que come pão com mortadela e arrota caviar. Esse é o nosso Brasil, onde um diplomado com MBA vai trabalhar lavando pratos lá fora e se um artista internacional vier aqui e fizer alguma gracinha o pessoal daqui o vaia exigindo respeito.

    ResponderExcluir
  2. MAO,
    Fantástico texto! Gostei do “para” (antigamente, com assento) segundo as novas regras ortográficas!
    De fato existem pessoas que não reconhecem o automóvel - por mais simples que seja - como um bem diferente dos outros, diferente dos demais objetos inanimados.
    Infelizmente os carros produzidos com o propósito de serem simples e úteis sob vários parâmetros são vistos, na maioria das vezes, com olhos de sátira e inferioridade. Como exemplo, podemos citar o próprio Uno, que visa economia, robustez e espaço interno razoável; o VW Sedan, que deveria ser robusto, ágil nas vias de sua terra natal sem temer caminhos difíceis; o 2CV, que deveria levar ovos sem quebrar e ser dirigido por uma pessoa de chapéu e, mais recentemente, o Logan, que alia bom espaço interno, razoável conforto e desempenho coerente. Além da proposta cabalmente cumprida, o que há em comum entre todos eles? Todos são considerados por muitos “entendidos” como patinhos-feios (ou carroças como alguns denominam), têm apelidos pejorativos e são incompreendidos por não terem pencas de botões que fazem uma função ou outra...
    Abraços

    ResponderExcluir
  3. Caro Marlos,

    O pior é juntar a ignorância e falta de cultura automobilística. Chamar Logan de "Lada" como vi muitos postarem por aí, nas autoesportes da vida. (E pior, cometem dois erros: Lada utilizada tecnologia Fiat e Dácia Renault. O Fiat 124 também foi Alfa e a Dácia fabricou durante 30 anos a versão perua da R12). Muitos se sentiram ofendidinhos quando a Quatro Rodas apresentou o Daewoo Laceti como o novo Vectra, mas estamos falando de um país que não tinha fábricas de carros verdadeiras há menos de 30 anos. E as marcas são coreanas. E aqui? Cadê Gurgel, FNM (que apesar de ser Alfa fazia algumas artes) e Presidente? Todas as fábricas aqui são multinacionais. E vou repetir nesse post: Exigem carros caros mas não tem dinheiro para comprar, o A3 é a prova disso. E fazer um carro não é tarefa fácil, senão teríamos Puma e Miura até hoje.

    ResponderExcluir
  4. Se vc gostou do filme "Alta Fidelidade", vai ler o livro que eh muito melhor. Uma boa parte do conteudo do livro se perdeu no filme, e algumas coisas foram encurtadas ou perderam um pouco do sentido.
    Nao so o "Alta Fidelidade", mas qualquer outro livro do Nick Hornby ("About a boy", "Fever Pitch", "Long way down") eh altamente recomendado.

    ResponderExcluir
  5. É 1k2,
    Eu às vezes leio algumas pérolas no site da QR, principalmente nos blogs. Porém, tenho abdicado desse hábito, pois, na maioria das vezes, a leitura não acrescenta nada, tanto por parte da maioria dos leitores comentarem bobagens quanto pela certa falta de imparcialidade que observo naquela publicação. É verdade que ninguém precisa ser do ramo automobilístico para opinar (da mesma forma que eu não sou), mas é interessante que se busque um conhecimento prévio para (tentar) não dizer besteira. Nas “autoesportes da vida” - como você citou - frases como “Vectra motor de Monza” e “Uno é um projeto ultrapassado”, já se tornaram jargões; pior que isso é quando o mesmo cara que censura o projeto do Mille diz que o do Celta é moderno...
    Realmente nos falta um fabricante verdadeiramente nacional e, apesar de muitos criticarem os coreanos, eles estão de parabéns e vêm melhorando a cada dia! Talvez nos falte indivíduos românticos como os da época dos “fora-de-série” e até mesmo os concessionários de hoje estão carecendo da inspiração de tempos atrás.
    Fazendo minhas as suas palavras, “fazer um carro não é tarefa fácil” e além dos que você citou, mesmo sendo um modelo com motor GM, teríamos Brasincas 4200 GT Uirapuru até hoje.

    ResponderExcluir
  6. Caro Marlo,

    O Uirapuru é um caso à parte. Se tivessem dado continuidade e se tivessem provas para ele ser inscrito ele poderia ser o "Ford GT 40" brasileiro. Uma pena.

    ResponderExcluir
  7. MAO,

    Belíssimno texto! Aliás, os últimos textos deste blog estão recheados de emoção pura...

    Infelizmente, hoje o que manda são custos, custos e mais custos. Quanto mais baixo, melhor, não havendo preocupação alguma em se manter um mínimo de personalidade, de alma nos carros modernos. O mais triste é que custo baixo não significa um carro comum, como qualquer outro no meio da multidão. Basta ver o exemplo do Mille, simples, mas que se destaca dos demais por sua proposta honesta e sem engodos.

    ResponderExcluir
  8. Caramba, esse texto deveria ser o lema do blog!

    ResponderExcluir

Pedimos desculpas mas os comentários deste site estão desativados.
Por favor consulte www.autoentusiastas.com.br ou clique na aba contato da barra superior deste site.
Atenciosamente,
Autoentusiastas.

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.