
Quem acompanha este blog vai se lembrar do post em que comentei que
Ferry Porsche nasceu no dia 19 de setembro de 1909. Em outra grande coincidência na história da GM e da Porsche, pesquisando para este post descobri que Edward Nicholas “Ed”Cole da GM nasceu exatamente dois dias antes, em 17 de setembro de 1909!
O fato de que o aniversário deste humilde escriba ser comemorado ao dia 18 de setembro também provou ser uma coincidência incrível. Faz nos pensar que, como dizia Einstein, existe algum plano por trás de tudo, e que “Deus não joga dados com o Universo”.
Ed Cole foi fruto de um mundo diferente do nosso; um mundo mais duro e com infinitamente menos facilidades, mas que produzia pessoas incrivelmente talentosas e com o pé no chão. A este tempo, pessoas achavam uma vocação e a seguiam, não importando a dificuldade.
Cole, filho de um fazendeiro de Michigan, desde cedo mostrou aptidão para Engenharia, e quando pré-adolescente, construía rádios e os vendia. Outro exemplo do tipo de vida que estas pessoas levavam está em seu futuro concorrente a presidência da GM, Semon E. “Bunkie” Knudsen. Apesar de, ao contrário de Cole, ter um pai bem sucedido na vida (“Big Bill” Knudsen, presidente da GM, e depois responsável por toda produção industrial americana durante a Segunda Guerra Mundial), ao pedir um automóvel como presente de aniversário de 15 anos, recebeu enormes caixas de peças do pai. Se quisesse o automóvel, teria que construí-lo... O valor do trabalho era ensinado cedo, a todos.
Ed Cole foi em minha opinião o mais importante executivo da General Motors depois do criador Alfred Sloan. Bem informado e interessado em novas tecnologias, e um incansável defensor da excelência da Engenharia como motor de uma indústria de automóveis, foi um dos maiores responsáveis pela era de ouro da companhia.
Cole foi um dos responsáveis pelo motor Cadillac V-8 de 1949, que selou a configuração básica do V-8 americano que perdura até hoje; fez esta configuração se tornar uma obra-prima em seu Chevrolet small-block V-8 de 1955; contratou Zora-Arkus Duntov e garantiu que o engenheiro russo tornasse o Corvette um carro esporte de verdade.
Mas apesar disso, foi pego e um mundo que mudava muito rápido. Durante os anos 60, a contra-cultura iria mudar radicalmente os valores da sociedade, ao mesmo tempo em que os advogados americanos criavam uma cultura de litígio que mudaria a indústria para sempre, afetando profundamente a cultura de inovação de sua companhia.
Em 1959, Cole, então gerente geral da Chevrolet, lança o Corvair. O carro era uma revolução total entre os carros americanos: monobloco, motor totalmente em alumínio, seis cilindros contrapostos traseiros, refrigerados a ar, suspensão independente nas 4 rodas. O carro foi aclamado pela imprensa, e Cole acabou na capa da
Time, junto de seu incrível novo carro. Os anos 60 começavam, com a GM (e presumidamente, a América) na vanguarda.
Mas o Corvair esbarraria no conservadorismo do consumidor americano, e em Ralph Nader. Em seu famoso livro “Unsafe at any speed”, Nader se torna um paladino do novo jeito americano de ser, onde todo e qualquer mal que aconteça a uma pessoa que esteja usando um aparato produzido por alguém, não é culpa do usuário (ou obra do destino), e sim da companhia que produziu o tal aparato. E um exército de novos advogados estaria pronto para fazer as ditas companhias pagarem um preço por tamanha irresponsabilidade, por uma quantia módica, é claro.
A GM, obviamente, ficou ultrajada com as acusações de Nader e respondeu a elas na justiça. Ao final foi absolvida de qualquer culpa nos acidentes supostamente causados pelos Corvairs assassinos, mas aí o estrago já estava feito. O carro de Cole se torna mais famoso por ser “inseguro” do que por ser um tour-de-force tecnológico, e desaparece lenta e tristemente. Legislações de segurança passiva não tardariam a aparecer nos EUA.
É engraçado notar que todos criticam a GM por ser conservadora, mas se esquecem que ela foi forçada ao conservadorismo pela sanha do povo americano em achar um bode expiatório para tudo que acontece com qualquer pessoa. Quando a indústria americana se tornou responsável por tudo que possa acontecer com as pessoas dentro de seus carros, o conservadorismo foi a reação natural. É fácil colocar a culpa de tragédias pessoais em corporações sem face, e não em sua própria incompetência, ou nos desígnios do destino. Ainda mais com a possibilidade de indenizações milionárias pairando no ar.
Interessante notar também que ninguém nos EUA nunca pensou em processar a VW, que antes e depois continuou a vender fuscas por lá...
Foi aí que Cole resolveu criar outro carro pequeno excepcional, mas seguindo o padrão americano de motor dianteiro e tração traseira para evitar todo este embroglio.
Mas o mundo permanecia mudando, e rápido, naqueles idos de 68-70. Emissões de poluentes seriam em breve controladas por legislação; os árabes fariam embargos de petróleo e o mundo ficaria tenso com a possibilidade de ficar sem o ouro negro. A contra-cultura chegava a seu auge, com
hippies, Woodstock, Hair, e John e Yoko pelados na televisão. Imagens horrendas da guerra do Vietnã invadiam as casas de todo mundo.
A General Motors, maior e mais poderosa do que nunca, se tornaria arrogante e se imaginaria invencível. E seu próprio tamanho, suas milhares de camadas gerenciais e a consequente difícil comunicação entre eles começavam a atrapalhar o andamento da empresa. Cole toma a iniciativa de unificar a engenharia em um único departamento central, e diminuir as engenharias independentes das divisões, obviamente respondendo ao próprio Cole. Iniciou-se um projeto ambicioso para criar o novo sub-compacto da GM em apenas 24 meses.
Este carro se tornaria um ícone, um exemplo a ser usado, de um projeto perfeito pessimamente executado. E como era um megaprojeto, involvendo fábricas novas, novos sistemas de projeto, transporte e fabricação, e um carro totalmente novo preparado para tal coisa, seu fracasso foi terrível para o General. Ao seu lançamento em 1970, a General Motors ao mesmo tempo chegava ao seu auge por conseguir o monumental feito de fazer um projeto deste tipo acontecer, e iniciava sua inexorável viagem ao fundo do poço pela inabilidade para executar o pretendido em alguns pontos cruciais.
O carro foi o primeiro a ter sua superfície externa totalmente desenvolvida por computadores, dentro do estúdio de design, para que depois pudesse ser trabalhado diretamente na engenharia de carroceria. Simulações por computador também ajudaram os engenheiros a projetar os vários sistemas mecânicos, de forma a diminuir o tempo de projeto. Hoje coisa corriqueira, era coisa de ficção científica então.
O carro em si era totalmente novo. Um motor de bloco de alumínio sem camisas foi desenvolvido em conjunto com a empresa Reynolds Aluminium, e contava com comando de válvulas no cabeçote, 4 cilindros em linha e 2,3 litros de deslocamento volumétrico. Estranhamente, seu cabeçote era em ferro fundido.

Baixo, largo e com o motor recuado, tinha uma distribuição de peso perfeita, para se tornar um carro de estabilidade excepcional para a categoria. Monobloco, mas com motor dianteiro e tração traseira, o carro projetado no tubo conseguiu uma redução de número de peças incrível: usava a metade da média americana vigente. Era também leve para os padrões americanos: 1.100 kg.
Uma enorme e nova fábrica foi criada para ele em Lordstown, Ohio. Nela, robôs e novas técnicas de produção abundavam. A então nova técnica de pintura por imersão (ELPO) foi usada pela primeira vez na pintura, e prometia uma resistência a corrosão inédita. Até o transporte era revolucionário: os carros seguiam em pé em vagões especiais, o que exigiu uma série de interessantes soluções de engenharia, visto que o carro seguia com todos os fluidos para as concessionárias. Chamado de Vert-a-Pack, possibilitava o transporte de 30 carros por vagão ao invés dos 18 tradicionais.

Lançado com a marca Chevrolet e o nome da estrela mais brilhante da constelação de Lira, Vega, o carro foi um sucesso imediato de público e crítica. Ganhou vários prêmios, entre eles o de Carro do Ano. A imprensa americana se deliciava principalmente com a economia e a ótima estabilidade. Realmente um carro perfeito para seu tempo, totalmente competitivo e excelente, e criado em tempo recorde.
Daí vieram os problemas. Os testes do banho de ELPO falharam em notar bolhas de ar que se formavam em alguns cantos da carroceria (notadamente, mas não apenas, no para-lama dianteiro). Essas bolhas criavam pontos de corrosão, que apareciam em menos de um ano: uma catástrofe na imagem do carro.
E o pior ainda estava por vir. Ansioso por tornar a fábrica de Lordstown, então a mais moderna do mundo, em um exemplo de eficiência, John DeLorean (então presidente da divisão Chevrolet) imprimiu uma velocidade de produção nunca antes vista: um carro a cada 36 segundos. Os jovens funcionários da planta, incapazes de acompanhar a velocidade da linha (ninguém conseguiria, por mais duro que trabalhasse), e vindos de uma geração que já não aceitava mais autoridade como as anteriores, se revoltaram com a empresa e seus representantes (UAW) da maneira mais devastadora possível: começaram a deixar de montar um parafuso aqui, uma porca ali e assim por diante. A GM, desacostumada a este tipo de coisa, aumentou a pressão demitindo ou suspendendo centenas deles, criando uma bola de neve incontrolável. Carros para retrabalho se amontoavam no pátio, e evidentemente apresentavam um sem-fim de problemas nas mãos dos compradores finais. Outra catástrofe irreversível. Uma longa greve por fim estourou, causando ainda mais prejuízos.
Some-se isso a falhas na novíssima técnica de fundição de blocos de motor em alumínio sem camisas, que causavam falhas prematuras no motor, substituídos em garantia a custos astronômicos, e se tem um carro que até hoje é apontado como péssimo pelos americanos, apesar de todas as suas interessantes características.
O fracasso do Vega foi o ponto de inflexão da GM. Como era o segundo carro a frente de seu tempo que fracassara fragorosamente, novas tecnologias se tornariam tabu na companhia. Cole e DeLorean em breve deixariam a empresa devido a este carro, e o General perdeu todo seu entusiasmo e pujança; a partir dali seguiram-se décadas de veículos projetados por gente preocupada apenas e somente em quanto lucro o carro geraria.
O VEGA COSWORTH
DeLorean, sempre um fã dos ingleses e europeus, e percebendo que o Vega seria uma perfeita fundação para um carro esporte moderno, pediu para que seus engenheiros conversassem com a Cosworth inglesa com vistas a usar o bloco de alumínio do carro em um motor de competição.
A ideia do motor de competição logo seria abortada, mas em vista dos problemas enfrentados pelo carro após o lançamento, DeLorean resolveu criar um carro de rua para criar imagem, algo como um BMW americano, e assim tentar reverter de alguma forma a situação. O paralelo com o Corvair é inevitável: o carro fracassara como carro “normal”, mas talvez, devido às excelentes características dinâmicas, poderia ter uma sobrevida como esportivo.
Um cabeçote de duplo comando e 4 válvulas por cilindro foi desenvolvido, todo em alumínio. O curso dos pistões foi reduzido, para facilitar altas rotações, reduzindo o deslocamento para 2 litros. Em 1972, o motor estava rendendo 185 cv em dinamômetro, e as coisas pareciam que andavam bem.
Mas naquele tempo antes do controle eletrônico total dos motores, e o início das legislações anti-poluição, os engenheiros americanos e ingleses lutavam em vão para manter a potência e homologar o carro. A taxa de compressão baixava continuamente dos originais 12:1 para 10:1, seguindo-se 9:1 e finalmente os 8,5:1 do lançamento, em 1975.
Acabou como mais um exemplo da incapacidade dos americanos de lidarem com o novo mundo. Com esta taxa, e adoção de injeção eletrônica e amordaçado para não poluir, o carro debitava apenas 110 cv. Sua aceleração era melhor que os Vegas normais, mas ainda assim, letárgica para padrões atuais e apenas aceitável para os da época: coisa de 10 segundos para atingir 100 km/h.
Os donos desses carros desde então descartaram a parafernália anti-poluição; descartaram a injeção em favor de dois Weber duplos, e usaram os pistões “de competição” que a Chevrolet vendia em concessionária para aumentar a taxa para os originais 12:1.
Desta forma, conseguem um carro como a GM gostaria de ter lançado, entregando mais de 200 cv e fazendo uso das suspensões e freios melhorados desta versão.
Apenas 3 mil Cosworths foram vendidos, e por um motivo muito simples: custavam pouca coisa a menos que um Corvette, e era o segundo mais caro carro da General Motors em 1975.
Como o carro do qual derivou, era um carro a frente de seu tempo; carros como o
190E 2.3-16 e o Ford Sierra Cosworth são exemplos de idéias similares que deram muito certo, dez anos depois do Vega.
Nos seus últimos anos de GM, Cole se dedicou ao futuro, como sempre. Determinou que todos os motores baixassem suas taxas de compressão para que consumissem gasolina sem chumbo, e assim pudessem usar catalisadores de escapamento, equipamento que ele sempre advogou como a solução das questões de emissão de poluentes. Um ano depois de sua partida, todos os carros da GM passaram a usá-lo.
Trabalhou também no desenvolvimento de bolsas infláveis (airbags), e em injeção eletrônica. O homem trabalhava no futuro, mas sua companhia não mais.
Cole viria a falecer em um acidente aéreo, pilotando seu Beagle 206, na cidade onde nascera, apenas três anos após se aposentar da General Motors. Seu legado ainda vive em pessoas como Bob Lutz, que ainda vê que sem um produto avançado, de ponta, o velho General realmente não tem mais futuro.
Resta saber se o Volt de Lutz será o Chevy 55 da nova geração, ou o Vega do século XXI.
Ao menos, ele está tentando.
MAO