O duelo já considerado épico entre Audi e Peugeot nas últimas edições das 24 Horas de Le Mans nos traz o argumento dos motor alternativos no mundo das competições. Digamos "motores alternativos" pois são unidades de ciclo Diesel convencionais, mas como o histórico de vencedores com motores Diesel era praticamente irrelevante, vamos chamá-los de alternativos. É só pensar se já não ouvi em algum lugar "mas diesel é motor de caminhão, não de carro de corrida", e ai está a prova oposta.
Mas em termos mais específicos, alternativo mesmo é um motor sem pistões convencionais, como o Wankel do Mazda, ou então as turbinas. Já comentamos antes sobre carros movidos à turbina, mais especificamente dos utilizados em Indianápolis para as 500 Milhas. Mas Le Mans teve sua parcela também, e com bom resultado.
O primeiro a se destacar foi fruto de uma parceria entre as britânicas Rover, fabricante de veículos de larga escala, e a BRM (British Racing Motors), equipe de competições de grande destaque. A Rover já estava envolvida no desenvolvimento de veículos movidos à turbina desde o fim da Segunda Guerra, assim como a Chrysler e outros, mas o reconhecimento viria por meio da exposição pública.
A melhor forma disso era por meio das competições, e Le Mans era a melhor opção por ter uma categoria de veículos experimentais. Nos anos 50, o Automobile Club de l'Ouest (ACO, clube responsável pelas 24 Horas) ofereceu um prêmio para a primeira equipe que completasse 3.600 km em uma média de 93 mph (149,6 km/h).
Graham Hill e o Rover-BRM em 1963 |
Interessada nesta premiação e divulgação, a Rover contatou a BRM para a parceria no desenvolvimento de um carro de corrida apropriado. A BRM utilizou o chassi danificado de F-1 utilizado por Richie Ginther no GP de Mônaco como base estrutural para o projeto. A divisão de tarefas ficou mais ou menos assim: A Rover era responsável pela parte logística e itens referentes ao cockpit e motor, e a BRM era responsável pela transmissão, carroceria e suspensão, além de fornecer o necessário para os testes, como os pilotos.
O Rover-BRM antes da largada, Le Mans 1963 |
Para o ano de 1963, o carro foi inscrito nas 24 Horas de Le Mans com o numeral 00, que indicava ser um carro experimental, correndo em uma categoria especial. A diferente carroceria sem teto mas com para-brisa envolvente foi pintada na tradicional cor verde escura, e o carro seria conduzido por ninguém menos que Graham Hill e Richie Ginther.
Nesta primeira versão do carro, o motor 2S 150 não possuía o sistema chamado de regenerativo (non-heat exchanger), permitindo assim ter uma potência um pouco maior mas com menor eficiência. O motor tinha um contraponto de ser beberrão, e depois de muitos cálculos de equivalência, a organização da prova o colocou na categoria abaixo de 2-litros. Pela categoria, o limite da capacidade do tanque de combustível era de 110 litros, mas foi permitido o uso de dois tanques, entretanto o carro não seria classificado oficialmente ao final da prova, correria hors-concours.
A simplicidade da turbina era um ponto muito favorável, poucas peças móveis e tamanho reduzido, assim como a transmissão de uma única marcha (duas, se contar a ré). Como o motor podia virar até 60.000 rpm, a faixa de rotação era bem larga.
O carro assim era capaz de atingir até 230 km/h, mas como a turbina não possui resistência ao se tirar aceleração (o famoso freio-motor), o sistema de freios originais do chassi de F-1 era insuficiente para segurar o carro. Desta forma, um conjunto bem maior foi instalado no carro, o que na corrida foi uma grande vantagem.
Para a largada, o carro não pôde classificar-se para o grid por conta do regulamento e dos tanques de combustíveis extras. Ele deveria largar trinta segundos depois de todos os carros terem passado pela largada.
Uma curiosa história sobre os momentos antes da largada conta que o carro não passou na inspeção técnica por estar com o vão livre mínimo inferior ao permitido. Obviamente o pessoal da BRM não se conformou com o fato, não poderiam ter feito um erro tão primário, e logo constataram que o dispositivo de vistoria estava fora da medida. A história é que para que liberassem o carro sem problemas, quatro mecânicos da equipe discretamente posicionaram-se perto das quatro rodas e "deram uma ajudinha sem que os fiscais estivessem olhando" para que o dispositivo entrasse embaixo do carro. Um jeitinho, nada demais.
Na corrida, o carro foi brilhante, largando de último e recuperando posições ao longo das 24 Horas de corrida, aproveitando-se dos grandes freios que o permitiam frear bem mais dentro das curvas que os demais oponentes. Os pneus duraram a corrida toda, sendo outra boa vantagem. O tanque de combustível extra permitia uma média de duas horas e meia entre reabastecimentos, boa marca.
Um dos poucos problemas encontrado ao longo da prova foi um vazamento excessivo de óleo do motor para a transmissão, observado pela janela de inspeção localizada na carcaça da transmissão. A solução foi trocar o óleo tanto do motor como da transmissão a cada parada de box, mas na primeira troca o problema desapareceu.
Ao final da prova, o carro completou a dura missão de percorrer os 3.600 km com uma média melhor que a estipulada pelo regulamento do prêmio, e venceu com honras. Se o carro fosse classificado oficialmente, teria terminado em sétimo lugar, ficando apenas atrás dos seis Ferraris.
A fabricação da nova carroceria cupê |
Para o ano seguinte, a Rover alterou toda a carroceria do veículo, transformando-o em um cupê bem mais aerodinâmico que o primeiro carro. Outras alterações estruturais foram feitas, mas o carro foi retirado da competição sem grandes explicações. A história da época é que houve uma avaria durante o transporte e que não seria possível consertá-lo a tempo. Outros dizem que desistiram por não terem alcançado os objetivos de desempenho.
O novo Rover-BRM, agora com um perfil aerodinâmico melhorado |
Em 1965, voltaram a inscrever o carro para as 24 Horas, agora equipado com o sistema regenerativo para aumentar a eficiência da turbina. O sistema consistia em reaproveitar os gases quentes do sistema, antes liberados para a atmosfera, e utilizá-lo para realimentar o sistema, aumentando brutalmente a eficiência do conjunto, mesmo que significasse ligeira perda de potência.
Richie Ginther foi substituído por Jackie Stewart, e durante a corrida houve um problema no motor que gerou uma perda de potência. Uma das lâminas do rotor do compressor havia se quebrado e danificado parte do sistema, mas ainda funcionava. A temperatura precisava ser monitorada constantemente para evitar um superaquecimento que poderia acabar com o motor.
Hill em Le Mans, 1965 |
Mesmo com as limitações de desempenho, o Rover-BRM de número 31 conseguiu terminar a corrida em décimo, agora classificado oficialmente nos parâmetros do regulamento. Este foi o segundo bom resultado de um carro com este tipo de propulsão, e só seria novamente visto em Le Mans anos depois.
Depois das corridas, o BRM fez algumas aparições públicas, foi avaliado por algumas publicações e fez propaganda das tecnologias da Rover. Hoje o carro encontra-se guardado em um museu, com sua história muito bem preservada, como todo carro histórico merece, um verdadeiro desafiador das regras do comum e um grande inovador.
MB
O primeiro era feio de dar dó!
ResponderExcluirDe qualquer forma, muito bacana a história e desenvolvimento do sistema.
Histórias de sucwsso em corridas são assim! Não um piloto que fez e desfez, mesmo havendo alguns genios de pilotagem e resistência física; Mas o trabalho que envolve toda uma equipe tentando vencer primeiramente os problemas e fazer o carro chegar ao final da prova. Lindo!
ResponderExcluirO melhor laboratório de desenvolvimento de tecnologias automotivas são as corridas, mas sempre que alguém usa algo revolucionário os regulamentos são alterados. Com isso só é evoluído o motor do ciclo Otto, não entendo como um motor de 4 tempos é a melhor opção.
ResponderExcluirÉ isso aí, automobilismo é esporte de equipe. Pena que quase ninguém veja isso.
ResponderExcluirQue coisa fantástica...
ResponderExcluirÓtimo post!
Tudo começa na equipe. Se o "gerente"for tão competente qto o Colin de posts abaixo, a chance de dar certo é imensa. O piloto competente que joga com o time, fecha o pacote.
ResponderExcluirNão conhecia a história e gostei pacas.
MB,
ResponderExcluirExcelente post!
Fiquei pensando como é a experiência de dirigir um carro com movido a turbina e a sua solitária marcha.
E mais uma vez o mestre Jackie Stewart dando ar da graça com as suas pilotagens perfeitas.
MB, que beleza de post!!
ResponderExcluirNão conhecia esse carro nem sua história... Achei bem legal!!
Parabéns e obrigado!
Pena que as fotos são em preto e branco!
ResponderExcluirEssa traseira desmontada é linda!
Que eles eram feios, até podem ser, mas, de imediato me lembraram os carros dos bandidos do Speed Racer...
Muito legal!
Muito legal essa história, também não conhecia. Uma pena a BRM-Rover ter parado de aprimorar o carro. É provável que pudesse incomodar ainda mais a concorrência!
ResponderExcluirO primeiro era um verdadeiro carro inglês, belo na sua feiura. O segundo era um carro ingles melhorado, inclusive com uma pequena quebra eheheheheh. Belos carros, pena que a tecnologia das turbinas ainda não vingou para o setor automotivo, e, creio que no curto prazo nem vai vingar.
ResponderExcluirSds,
Cristiano Zank.
Milton,
ResponderExcluiringlês não é mole quando ia atrás de desenvolver suas idéias. Muito bacana a história toda.
Tá no You Tube. É só buscar "le mans 1965 part 2" e "le mans 1965 part 3". O barulho da turbina é show! Graham Hill com seu cabelinho engomado e seu bigodinho irretocável!
ResponderExcluirBusquem também “1963 24 Hrs of Le Mans”. Além do espetacular Rover-BRM 00, tem bastidores da corrida com parque de diversões, ‘kids racing’, frango assado, dança, máquina de escrever e até missa! Fantástico!
ResponderExcluirOutra história interessante é a do BRM V16, mas essa não seria pelo sucesso.
ResponderExcluir