Foto: wiki.pt
A Honda revelou seu primeiro carro, o S360, no Salão de
Tóquio, em outubro de 1962, mas o começo nada teve de auspicioso. O
planejamento econômico do governo japonês achava que o país já tinha muitos
fabricantes de automóveis e estava elaborando lei para impedir que mais empresas entrassem no ramo. Soichiro Honda apressou o lançamento do S360 para que ocorresse antes da promulgação da lei e os resultados da correria foram evidentes. Jornalistas japoneses
ridicularizaram o S360 chamando-o de motocicleta sobre quatro rodas.
Para tornar as coisas ainda piores, Soichiro Honda e Takeo Fujisawa, que cuidava da administração e da área financeira da fábrica, discordavam da estratégia de marketing. O fundador queria posicionar o S360 como um carro esporte, enquanto Fujisawa pensava na imagem de um carro prático, para o dia-a-dia. Cada um insistia para que a exposição no salão refletisse a sua visão do que o carro deveria ser.
Soichiro Honda e Takeo Fujisawa (reviewmobilhonda.blogspot.com) |
A discordância criou um dilema para um jovem funcionário chamado Tetsuo Chino, encarregado de organizar o estande. Depois de muito matutar sobre o assunto, Tetsuo preparou dois ambientes, em extremidades opostas do estande da Honda. Um mostrava o veículo como carro esporte, outro, como carro de executivos, contou Chino muitos anos depois. Honda e Fujisawa estiveram no salão separadamente e Chino teve o cuidado de conduzi-los ao ponto próprio do estande, provando certa a estratégia. A Honda lançou seu primeiro carro e Chino, conta a história, sua carreira.
No ano seguinte a Honda lançou o S500, o S360 com motor maior. A Honda Pesquisa & Desenvolvimento, divisão com posição de destaque na empresa, foi quem desenvolveu ambos os carros. A Honda P&D, como era conhecida, era mantida com elevada verba alocada a partir do faturamento da empresa. A divisão foi idéia de Soichiro Honda, sua maneira de proteger os programas de desenvolvimento de produtos da empresa da obsessão por corte de custos de Fujisawa. A divisão se tornou um campo de provas tanto para novos motores quanto para os novos e promissores engenheiros da Honda. Eles trabalhavam sob ordens diretas do próprio Soichiro, que passava mais tempo lá do que no seu escritório.
Entre os novos engenheiros contratados no começo dos anos 1960 estava Soichiro Irimajiri, formado pela seleta Universidade de Tóquio Numa ocasião ele mudou o desenho do pistão de um motor de motocicleta, levando a derrota da Honda numa corrida. Um possesso Honda quis que Irimajiri pedisse demissão. “Não gosto de recém-formados”, disse Honda. “Eles usam apenas sua cabeça em vez do instinto". Como o jovem engenheiro recusasse se demitir, Soichiro insistiu para que ele se desculpasse perante cada um dos seus colegas na P&D, tendo-o acompanhado nisso. Irimajiri nunca se esqueceu da humilhação e nunca mais cometeu o mesmo erro. A Honda P&D tornou-se o “corpo de fuzileiros navais” e seus engenheiros de elite referiam-se a outros funcionários da Honda como “civis”.
Nessa atmosfera de disputas, apenas Fujisawa tinha voz ativa contra o temperamental e decidido fundador da empresa. Ele o fazia nos momentos mais críticos, como no final dos anos 1960, quando problemas de segurança envolveram os carros Honda.
Problema sério ocorreu em julho de 1968 no GP da França em Rouen. Um carro Honda, o RA302, rodou e bateu forte num barranco. O piloto francês Jô Schlesser não conseguiu escapar antes de ser envolvido pelo fogo. Os engenheiros da Honda presentes ficaram horrorizados. Eles não sabiam o que havia levado o carro a rodar, mas suspeitaram que o incêndio houvesse sido acentuado pelo material do motor arrefecido a ar, o magnésio..
Honda RA302 de F-1, motor arrefecido a ar (wikipedia.org) |
Soichiro Honda, como Ferdinand Porsche e Ed Cole (Chevrolet Corvair) antes dele, gostava de motores arrefecidos a ar por eliminarem a necessidade de liquido arrefecedor e todo o sistema para gerenciá-lo. Soichiro insistiu em usá-los na maioria dos primeiros carros Honda, inclusive o de Fórmula 1, nos quais as altas velocidades das provas tornam as cargas térmicas nos motores especialmente severas. Os engenheiros tinham dúvidas disso, mas o chefe era Soichiro.
Um ano depois outro caso de segurança atingiu a Honda, desta vez em casa. Um japonês morreu num acidente envolvendo um minicarro Honda, o N360 de motor arrefecido ar. A família da vítima processou especificamente Soichiro, acusando-o de total negligência ao projetar um carro que não tinha estabilidade nas curvas — como nas reclamações contra o Corvair, outro carro de motor arrefecido a ar. O motor do N360 era dianteiro, ao contrário do Corvair, mas a percepção de que o carro da Honda era instável se espalhou. A Car and Driver classificou-o de “comportamento viciado” Rodadas, incêndio, acidentes fatais, ações na Justiça: por causa de tudo isso, promotores iniciaram uma investigação criminal na empresa.
Honda N360 (fr.wikipedia.org) |
Sem nada dizer a Soichiro, Fujisawa iniciou uma série de conversações reservadas com os engenheiros da P&D. Eles mostraram preocupação com alguns projetos da empresa, especialmente quanto ao futuro da Honda com os motores arrefecidos a ar. Fora a questão de segurança, motores arrefecidos a ar apresentavam um problema estratégico, argumentaram. Limites de emissões mais severos estavam sendo adotados pelos EUA e os engenheiros tinham certeza de que com tais motores os requisitos não seriam atingidos. A mesma conclusão levou a Volkswagen, mais tarde, a descontinuar o Fusca. Só que os engenheiros da Honda não podiam eles mesmos levantar essas questões.
No final de 1969 Fujisawa sentou-se com o fundador e, olhos nos olhos, descreveu as preocupações dos engenheiros. A conversa foi áspera e Fujisawa foi direto. “Qual caminho você pretende seguir, Honda-san?”, disse. “Você é o presidente ou um engenheiro?” A mensagem de Fujisawa foi de que Soichiro, como presidente, não poderia colocar seus projetos pueris à frente dos interesses da empresa. A Honda deveria focar no aumento da segurança e da eficiência dos seus carros. Após pausas e suspiros, Soichiro Honda aquiesceu, concordando em permitir que seus engenheiros desenvolvessem motores arrefecidos a água para os próximos carros Honda.
A intervenção de Fujisawa foi oportuna. Em julho de 1971 um perito nomeado pela Promotoria de Tóquio declarou que mesmo que o N360 tivesse problemas inerentes de estabilidade, não havia prova conclusiva de que o projeto do carro fora a causa primária de acidentes. Um mês depois a Promotoria disse que ninguém na Honda seria indiciado criminalmente. Do mesmo modo, a ação contra a pessoa de Soichiro foi arquivada. Dificilmente isso pôde ter sido uma vitória estrondosa tanto para Soichiro quanto para a empresa, mas foi o bastante. Enquanto isso, a permissão dada por Soichiro para que seus jovens engenheiros perseguissem suas idéias estava para produzir um significativo avanço, o motor CVCC, a câmara de combustão de redemoinho composto. Mas isso fica para outro dia.
Motor CVCC, a mudança de rumo (racefriv.com) |
BS
Texto baseado no livro "Engines of Change: a History of the American Dream in Fifteen Cars", por Paul Ingrassia, publicado pela Simon and Schuster, Nova York, 2012. Na amazon.com por US$ 13,88 e US$ 11,14 edição Kindle. Leitura altamente recomendável para os autoentusiastas.
Bob, no site mundial da Honda há uma bela história de como foi o desenvolvimento do Hondamatic, a transmissão automática criada pelos engenheiros da Honda. Seria uma boa história para publicar aqui.
ResponderExcluirTodos com suas dificuldades e teimosias.
ResponderExcluirH. Ford foi campeão nisso, mas talvez ele e Soichiro estivessem certos.
Esses mini-carros japoneses seriam uma boa pra nós. Os mini europeus são mais carro de nicho, meu 500 é bem menos prático que aqueles.
ResponderExcluirO mundo capitalista não é fácil ,mas ainda prefiro ele...
ResponderExcluirEu, mais ligado em motos do que em qualquer outro tipo de veículo, não sabia que nos anos 60 a Honda já fabricava carros, e que havia tido um mau começo. Hoje, faz o excelente Fit e outros.
ResponderExcluirUma história bem diferente da de tantos outros fabricantes com suas incontáveis fusões.
Luiz
ExcluirSem contar que a Honda é, disparado, o maior fabricante mundial de motores – automóveis, motocicletas, motores de popa, equipamentos de força e até motores aeronáuticos a reação, o do Honda Jet.
Interessante também que um dos primeiros modelos de carro construídos pela Honda foram os carros da equipe de F1, em 1964, doias anos depois de apresentado o S360. Os primeiros motores dos F1 Honda eram baseados nos motores de motocicleta de corrida da marca. V12 a 60°, 1.5l, 125cc de deslocamento unitário. Fazia 14.000 rpm ainda rendendo, o que era incomum para a F1 da época, mas normal nas motocicletas de corrida da marca.
Excluirhttp://www.roadandtrack.com/racing/1965-honda-ra-272
Li uns tempos atrás que nunca houve defeito em garantia de um cabeçote variável (VTEC e suas derivações).
ExcluirBob, a Honda tem uma propaganda imperdível para todo autoentusiasta que mostra bem todos os tipos de motores que eles fazem. Procure no Youtube por "Honda Impossible Dream". Veja também a continuação em "Honda Impossible Dream II"
ExcluirPerneta
ExcluirVídeo tocante mesmo!
Outro foi um que exibiram no lançamento da Pop 100 há alguns anos, tipo esse, com todos os produtos, mas com ênfase no final para o HondaJet, terminando com a frase "Sempre tivemos asas. Agora podemos voar".
Bacana o texto, um dos carros antigos que eu acho mais top de todos é o Honda S600. A proposta do carro é legal e o som do motor é fantástico! http://youtu.be/-qkuo0t99IE?t=9m10s
ResponderExcluirTivemos nosso "Teimoso",atendia pelo nome de Gurgel !
ResponderExcluirO ruim é que o Gurgel não teve um Fujisawa para pará-lo. Quando ele inventou de fazer carros populares (péssimos, por sinal, um Fusca desmanchando-se de velho era bem melhor que aquelas tranqueiras), ninguém na empresa conseguiu convencê-lo de que ele estava entrando numa baita encrenca.
ExcluirEle não teve um ,teve vários,nossa cultura não permite "discussões" com o patrão ,o lema aqui é "quem manda PHODE ,obedece quem tem juízo...
ExcluirHonda-san foi um gênio. E como tal tinha temperamento forte e nenhum desafio era grande o suficiente para ele.
ResponderExcluirArtigos assim são bons para ver se quebra um pouco o preconceito idiota que alguns têm com relação aos carros japoneses.
Li uma vez na Seleções do Reader's Digest uma história sobre eles, Honda e Fujisawa, tentando conseguir um empréstimo bancário.
ResponderExcluirPrepararam um jantar pros caras e fizeram uma espécie de número teatral regado a muito humor... todo mundo gostou, todo mundo riu mas no dia seguinte a resposta foi taxativa: "Não podemos conceder empréstimo bancário a uma companhia dirigida por dois palhaços."
Li a autobiografia do Soichiro Honda, e ele conta toda a trajetória da companhia, desde o início, inclusive com a mudança dos motores a ar para água. A quem interessar, o livro está à venda em www.estantevirtual.com.br
ExcluirEsqueci : o nome do livro é "Honda por Honda" e o pedido aos bancos está na página 101.
ExcluirA Honda esta renovando toda a sua linha aqui no Japão,desde a Odyssei até os kei jidosha,e abocanhando grande parte dos clientes de toyota e nissan,e os carros novos estão show.
ResponderExcluirO mais interessante na história da Honda é o fato de a personalidade desses dois ser tão diametralmente oposta, e ainda assim permanecerem juntos por toda a vida, o que com certeza foi vital para o sucesso da empresa. Por mais que houvesse desavenças, um respeitava o espaço do outro.
ResponderExcluirSe não fosse o pragmatismo de Fujisawa, a empresa não teria sucesso financeiro e não haveria recursos para os projetos de Soichiro. E se não fosse o espírito aventureiro e agressivo de Honda todo o investimento no esporte, que serviu de vitrine para a Honda se expandir para a Europa e o mundo, esta seria uma empresa local comum, talvez já engolida por outra multinacional nos dias de hoje.
Ele dizia que a empresa devia se chamar Honda-Fujisawa.
ExcluirEu tenho uma história curiosa com carros dessa época. Um grande amigo comprou dois Honda LN-360 para poder reconstruir um completo. Ao longo do tempo, esse meu amigo tentou apoio de restauradores no Rio de Janeiro sem sucesso. Os restauradores de carros, acostumados com V8 americanos, quando viam aquele motor de moto dentro do cofre diziam que aquilo era uma moto vestida de carro, e pulavam fora do projeto alegando que aquela não era a praia deles. Os restauradores de motos antigas, também pularam fora alegando exatamente o contrário, que aqueilo era um carro onde enfiaram um motor de moto. Conversa vai, conversa vem, e o único que sobrou para orientá-lo na reconstrução do carro estava do lado dele: eu mesmo. Além de conhecer a engenharia de carros como os leitores estão acostumados, preparei muita motocicleta no fim dos anos 1980 e sou a terceira geração da família sobre 2 rodas. Conheço os dois mundos de trás para frente. A partir da sucata de 5 motores parciais, e com a ajuda dos manuais oficiais de reparação do veículo, conseguimos reconstruir um motor/câmbio completo, e agora o carro está sendo preparado para a reforma de monobloco. O carro esteve na minha garagem por mais de 6 meses para reforma da parte elétrica, mas o espaço era pequeno demais e meu colega insistia em participar do processo de reforma, para aprender comigo. Como ele só podia vir a São Paulo uma vez a cada 2 meses em média, o processo foi-se prolongando para além do prático e o carro retornou para o Rio sem muita coisa feita. É um carro muito exótico, com uma mecânica muito peculiar, com detalhes de moto com detalhes de carro e no meio coisas muito estranhas. O câmbio, por exemplo, fora ele ser terminado por um diferencial, é típico de motocicletas, mas para oferecer uma alavanca de marchas em "H", característica de automóveis, no lugar do tradicional seletor rotativo, um estranho mecanismo de chapas deslizantes toma seu lugar. Mexer nesse carro foi uma experiência única e muito educativa. Adoro mexer em projetos que são pensados "fora da caixa".
ResponderExcluirEu também sou fã de soluções de engenharia fora do padrão, mesmo aquelas que, algumas vezes, acabam por complicar algo sem muita necessidade. Mas o interessante é justamente alguém ter botado os neurônios para funcionar e buscar algo fora do lugar comum. Muitas vezes, sai coisa boa dessas idéias novas.
ExcluirNão sabia que o início da Honda na fabricação de automóveis havia sido tão conturbada. Vendo como foi esse início em 1962 e observando os automóveis Honda atuais, nota-se que souberam magistralmente acertar as deficiências.
ResponderExcluirJogada de mestre a idéia do Tetsuo Chino criar dois ambientes diversos no estande da Honda, um para agradar cada um dos dirigentes. É que japonês é turrão, quando tem uma idéia, dificilmente muda de opinião, mas não vejo grandes problemas em mirar em dois públicos distintos ao lançar um novo modelo, desde que todo o marketing seja bem pensado.
Olá, caro Bob! Tenho um uno mille economy 2009/2010 e muita curiosidade. Por exemplo, gostaria de saber como calcular a rpm do motor de acordo com a marcha engatada e a velocidade do veiculo. Agradeço antecipadamente!
ResponderExcluirarnaldo arnaldo
ResponderExcluirA velocidades (km/h) por 1.000 rpm em cada marcha são:
1ª 5,9
2ª 11,3
3ª 17,5
4ª 24,5
5ª 30,1
Para saber a rotação divida a velocidade do carro na marcha em que esteja pela velocidade por 1.000 rpm. Por exemplo, você está terceira a 80 km/h: a rotação do motor nesse momento será 80 ÷ 17,5 = 4,571 ou 4.571 rpm. A 150 km/h em 5ª a conta é 150 ÷ 30,1 = 4.983 rpm.