Não há entusiasta que não tenha lido sobre carros autônomos, dos testes que vem sendo feitos por grandes companhias e nem das promessas sobre quando eles se tornarão realidade. Quando são referidos, muitas vezes os chamam de "carros inteligentes", sem que se explique ao público leigo que tecnologias são aplicadas e que desafios terão de ser vencidos até chegarmos lá.
Esta é uma série de artigos que trata desta questão e, como veremos, a inteligência dos automóveis nasceu desde que o primeiro automóvel foi criado, e várias tecnologias presentes no automóvel são comuns a outros tipos de máquinas.
Então, iremos começar pela parte mais visível do processo, a parte dos controladores e reguladores.
A evolução dos controladores
A invenção da máquina a vapor por James Watt desencadeou uma série de revoluções tecnológicas que mudaram o mundo. Mas, apesar da sua importância, não foi ela que virou o símbolo iconográfico de seu tempo, mas sim um pequeno acessório, que geralmente era posto a girar sobre a máquina.
Mostrando que não é de hoje que conteúdo não vale nada, mas imagem é tudo, aquele mecanismo povoou as obras artísticas da Art Nouveau, a mente das pessoas na Belle Époque, e depois, todos os filmes de cientistas malucos. As pessoas não sabiam para que aquela peça de plasticidade artística girando em alta velocidade poderia servir, mas ela simbolizava em suas cabeças a força da máquina, o que era também o símbolo do domínio e da força do homem civilizado sobre o mundo selvagem. Esta peça era o regulador centrífugo.
Regulador centrífugo |
Embora não fosse o criador da idéia original, foi o próprio James Watt que criou a primeira concepção do regulador centrífugo, como o conhecemos, para ser aplicado em sua sua máquina a vapor e, por isso mesmo, este acessório seja quase indissociável da máquina, embora ela não dependesse dele para funcionar. Entretanto, o regulador era adaptado para diversos tipos de equipamentos diferentes, tanto na função própria de regulador, como na função de limitador.
A idéia do regulador centrífugo é bastante simples. Dois pêndulos girando excêntricos ao eixo tendem a manter a posição vertical quando parados. Ao girarem, os pesos são empurrados para fora, fazendo os pêndulos se abrirem. Essa abertura move um conjunto articulado que inclui uma peça ranhurada que se move sobre o eixo do regulador. Dentro da ranhura, o garfo de uma alavanca acompanha o movimento do regulador e movendo uma válvula borboleta de passagem de vapor para a máquina.
Regulador centrífugo em ação |
Os movimentos do regulador e da válvula são antagonistas: quando o regulador se abre, a válvula se fecha, e vice-versa. Desta forma, se a velocidade da máquina aumenta, corta-se a potência e se ela diminui, mais potência é oferecida a ela. E assim se obtém-se uma regulação da velocidade da máquina, mesmo com variação de carga, de pressão de vapor ou qualquer outro tipo de perturbação que afete seu funcionamento.
O regulador centrífugo não é apenas um ícone artístico de sua era, mas também é um marco para a história da tecnologia, pois ele representa o primeiro elemento de auto-regulação de uma máquina moderna, algo que antes só animais e o próprio ser humano eram capazes de fazer.
Quando surgiu o automóvel, não havia qualquer mecanismo de regulação. O Ford modelo T, por exemplo, possuía duas alavancas sob o volante, uma, à direita, para o acelerador e outra, à esquerda, para o avanço do ponto de ignição.
Controles de avanço de ignição e aceleração sob o volante do Ford Modelo T |
Entretanto, dirigir estes carros era muito complicado. Além do motorista ter que fazer todas as complexas funções regulatórias, sobrecarregando a função ter de prestar atenção ao ambiente para guiar, a complexidade de operação dificultava o aprendizado de condução do veículo e causava muita frustração ao motorista por ele cometer erros pela sobrecarga de funções, especialmente para os menos experientes. Esta dificuldade era agravada pela falta de convergência dos controles, o que fazia cada motorista ter de reaprender quase que do princípio a guiar cada modelo de automóvel. Este fator, além do aspecto técnico e de segurança, amedrontava possíveis compradores para automóveis, e foi uma barreira para uma maior popularização do automóvel logo nos seus primórdios.
Complexidade no uso dos controles do Ford modelo T |
Charles Franklin Kettering revolucionou o automóvel por meio de várias invenções importantes, como o motor de partida elétrico, porém foi no desenvolvimento do sistema Delco de ignição onde ele foi mais revolucionário.
No começo do século 20 as pesquisas em motores de combustão interna mostraram que o ponto ideal de ignição era difícil de obter o tempo todo, já que seu avanço aumentava com a rotação e com a carga do motor. Kettering resolveu o problema usando dois mecanismos. Num, um regulador centrífugo conceitualmente muito parecido com o da máquina a vapor, porém muito modificado visualmente, gerava um avanço do ponto de ignição programado pela relação dos pesos excêntricos e da calibração das molas, enquanto o avanço por carga era feito por um diafragma pressionado por uma mola.
Sistema de avanço de ignição tipo Delco: primitivo para padrões atuais, mas muito superior ao controle humano |
O sistema Delco era um sistema eficiente em sua regulação, fácil de calibrar, com baixos manutenção e custo de fabricação, e oferecia um motor muito superior em desempenho e economia sobre o motor com avanço de ignição manual. Sua eficiência aliada à sua simplicidade e baixo custo não foram igualados por boa parte do século 20 e este sistema só seria completamente substituído nos automóveis de série na década de 1980 pela ignição eletrônica. Junto com ele, apenas o câmbio automático recebeu reguladores centrífugos, de diafragma e de válvulas de pressão como forma de automatizar funções regulatórias importantes do automóvel durante muitas décadas.
A revolução técnica que Kettering promoveu no automóvel é apenas uma faceta particular da evolução de automação de sua época. Ao mesmo tempo que funções complexas das máquinas passam a ser feitas de forma mais próxima do funcionamento ideal, ela retira a obrigação do usuário em realizá-la, tornando o uso da máquina muito mais simples, fácil e acessível, mesmo para os mais leigos. Muitos bens de consumo complexos, produzidos em larga escala, jamais seriam largamente acessíveis sem a revolução dos sistemas de regulação, e podemos dizer que a automação é fator fundamental para o sucesso dos mercados de bens de consumo. Embora dificilmente notada, a evolução tecnológica da automação é um importante motor que impulsiona as principais transformações sociais, políticas e econômicas.
A lógica matemática e os computadores
Apesar de sistemas regulatórios facilitarem em muito o uso das máquinas, suas capacidades se limitavam a estabilizar algum parâmetro da máquina dentro da condição de operação naquela situação. E a tecnologia das máquinas do começo do século 20 pedia muito mais que a simples regulação de processos, e isto estava a caminho.
No século 19, o brilhante matemático inglês George Boole não só refinou a moderna linguagem da álgebra, como foi além ao criar uma linguagem algébrica para a lógica, algo que até então era considerado apenas assunto para a filosofia. Boole buscava uma forma matemática para representar a capacidade do cérebro humano decidir, e com ela, decifrar muitos dos seus segredos e talvez até mesmo sintetizá-la e aperfeiçoá-la. Esta representação algébrica junto com suas regras de operação ficaram conhecidas como matemática booleana ou lógica booleana, em homenagem a estes matemático. Entretanto, como ocorre com tantos pioneiros, seu trabalho estava muito adiante de seu tempo e durante muitos anos permaneceu esquecido ou meramente mencionado como curiosidade matemática. Era uma matemática estranha e aparentemente sem qualquer aplicação prática.
A sorte da matemática booleana começou a mudar no começo do século 20. Em 1910, os matemáticos ingleses Alfred North Whitehead e Bertrand Russel publicam o “Principia Mathematica”, uma coleção de três volumes focada na interdisciplinaridade da matemática, e que mostrou a outros matemáticos que o trabalho de Boole merecia uma maior atenção. Mas a publicação apenas manteve o trabalho de Boole dentro do círculo acadêmico, e era preciso uma aplicação prática para ela. Foi quando uma outra invenção bateu em um obstáculo teórico: o telefone.
Muitos dos leitores já assistiram filmes onde havia uma telefonista operando em uma mesa, onde ela plugava um entre muitos cabos em um painel de tomadas. Era assim que se interligavam dois telefones em uma chamada. Este era um trabalho árduo e demorado, sujeito a muitos erros, e logo as operadoras de telefonia investiriam altas somas para obter um sistema automático de conexão entre todos os telefones para poder escalar ainda mais o serviço.
Comutação telefônica manual: erros, lentidão e dificuldades em escalar o serviço |
Naquela época, havia um novo componente elétrico que estava revolucionando vários setores, o relê. Um dos projetistas de sistemas telefônicos que estava pesquisando formas de comutação automática, e entusiasta da matemática, notou a semelhança entre o relê e os operadores de lógica booleana e fez um emparelhamento simples entre eles. O relê possui uma entrada de informação (bobina) e opera simultaneamente sobre vários sinais de saída (contatos que abrem ou fecham), com a particularidade de que haviam apenas dois estados possíveis para o relê (ligado ou desligado), dentro da lógica binária de Boole. O acionamento de um relê pode ser dependente de uma complexa malha de contatos de outros relês ou de interruptores e chaves, e as propriedades desta malha podem ser previstas e analisadas segundo a matemática booleana.
Relê: 1, bobina; 2, armadura; 3, contato reversor |
A matemática booleana tornava-se assim uma importante ferramenta para a criação de complexos sistemas com lógica a relê, usados por todos os lados, não só para painéis de comutação telefônica, mas também para controle de elevadores e linhas de produção automáticas, dispensando telefonistas, ascensoristas e operadores de máquinas e tornando esses recursos diretamente acessíveis ao usuário leigo, que, assim como ocorrera com o automóvel, promoveu sua popularização.
Esta correlação entre a lógica booleana e relês é tão forte que ambas as representações são usadas nas principais linguagens de programação de Controladores Lógicos Programáveis (CLP – tipo de computador de aplicação industrial específico para automação) usados largamente em automação industrial, sendo que uma é diretamente conversível na outra.
O próximo passo seria dado por Alan Turing, um dos maiores gênios do século 20 e vítima de uma das maiores tragédias do preconceito legal de sua época. Alan Turing era um matemático brilhante, atraindo a atenção dos militares ingleses, o que o conduziria para uma instalação secreta durane a Segunda Guerra Mundial, que trabalhava em decifrar os complexos códigos alemães feitos pela máquina Enigma. Turing projetou um equipamento que facilitava a quebra da criptografia da Enigma por meio da automação.
Turing, assim como Boole, era fascinado em descobrir os mecanismos por trás do funcionamento da mente humana e buscava meios de sintetizá-la. Após a guerra, Turing retorna à universidade, e, a partir de muitas das idéias que teve durante o conflito, ele cria o conceito da fictícia “Máquina de Turing”, capaz de seguir instruções, e descreve muitas de suas propriedades. A soma da lógica booleana com a Máquina de Turing é a pedra angular sobre a qual está fundamentada a invenção dos computadores digitais modernos.
Embora algumas calculadoras tenham sido construídas usando relês, o computador nasceu usando válvulas eletrônicas a vácuo como elemento de lógica booleana. Computadores que eram pouco mais que calculadoras programáveis através da ligação por fios, ocupavam um andar inteiro de um prédio e consumiam tanta energia elétrica quanto uma pequena vila. Essa foi a geração dos computadores Eniac (Electronic Numerical Integrator and Computer) americano e Colossus inglês.
Em 1958, a AT&T inventa o transístor, elemento eletrônico que substituiria a válvula em quase todas as aplicações, e da mesma forma, tomaria seu lugar na construção dos computadores, tornando-os menores, mais rápidos e mais potentes. A tecnologia dos transístores logo avançou para que todo um complexo circuito, com resistores e transístores fosse criado em uma única peça, criando o circuito integrado. A capacidade crescente dos circuitos integrados levou a uma previsão do então vice-presidente Gordon Moore de uma empresa iniciante chamada Intel: a capacidade dos circuitos integrados deve dobrar de capacidade a cada 18 meses, mantendo ou reduzindo seu custo. Esta previsão vem se mantendo até os dias atuais, e é válida não só para processadores, mas para todo ramo da eletrônica, sendo que em várias fases o período de dobra de capacidade era muito mais rápido que 18 meses.
A mesma Intel, sem querer, iria desencadear uma revolução. Em 1971 ela lança o chip 4004, um circuito integrado para a fabricação de uma calculadora programável de baixo custo. A Intel não percebera o potencial do que tinha criado. Pouco antes, a IBM havia lançado uma nova linha de computadores de alta capacidade e performance, e o 4004 não só era milhares de vezes mais barato como era mais rápido que o armário de circuitos desse novo modelo de computador. A IBM protestou, mas no modelo lançado logo a seguir já integrava o 4004 em seu projeto.
O 4004 foi o primeiro microprocessador de propósito geral de 4 bits, logo substituído pelo 8008 de 8 bits, mas ambos logo foram ofuscados com o lançamento do 8080, este sim um microprocessador completo.
Intel 4004: o mais revolucionário dos chips de todos os tempos |
Durante anos os computadores foram pensados para fazer apenas aquilo o que seu nome já dizia. Eles computavam, faziam cálculos. Eram oferecidos a eles dados de entrada e eles geravam dados de saída. Eles não faziam nada além de lidar com números, trancados dentro de um mundo à parte.
Então, em 1949, o laboratório de servomecanismo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e a empresa Parsons Corporation, de Traverse City, no estado de Michigan, fizeram um teste. Tomaram um velho torno mecânico que estava encostado em um depósito da universidade, e criou sensores, conversores e atuadores que transformavam posições em números para o computador e reversamente, números do computador em alimentação regulável para motores elétricos, de forma a usinar peças geometricamente complexas a partir de programas armazenados no computador. O computador ao mesmo tempo que comandaria as posições da ferramenta do torno, faria a função de regulador para garantir que a ferramenta estivesse onde o programa mandava que ela estivesse. De uma única vez, não só ficou demonstrada a capacidade do computador atuar de forma complexa sobre o mundo físico como também foi inventada a primeira máquina-ferramenta. No começo da década de 1970, surgem no mercado os primeiros tipos de máquinas CNC (comando numérico computadorizado).
Em 1974, os conceitos das máquinas CNC e de robôs seriam revistos por Hollywood para fazer os efeitos especiais do primeiro filme da série "Guerra nas Estrelas" (Star Wars), demonstrando a versatilidade desta tecnologia. "Guerra nas Estrelas" repetia o conceito usado em “2001 – Uma Odisséia no Espaço” (2001 - A Space Odissey, 1968) de manter a maquete da nave fixa sobre um fundo azul (efeito Chroma Key), enquanto a câmera se movia. Entretanto, “2001” possui cenas lentas e com pouca variação de ângulo entre a câmera e a maquete por causa do movimento ser feito manualmente. "Guerra nas Estrelas", como filme de ação, exigia agilidade nos ângulos de câmera, e o uso de uma câmera robotizada criava nas cenas com naves um efeito imersivo até então inédito para as platéia, fator fundamental para o sucesso do primeiro filme.
"Guerra nas Estrelas": as maravilhas da automação digital entrando na vida das pessoas comuns |
Em paralelo com a evolução dos sistemas de automação, controle e regulação, havia outro problema relacionado com a estabilidade dos sistemas. Com o avanço destas tecnologias, as funções automáticas, controladas e reguladas se multiplicavam e se tornavam cada vez mais complexas, e logo começaram a sofrer instabilidades.
Controladores e estabilidade
Começa a Segunda Guerra Mundial, e o foco da tecnologia de regulação e automação volta-se para o aprimoramento bélico. Os alemães começaram a investir em automações eletromecânicas complexas para substituir e preservar os preciosos pilotos de caça e bombardeiros contra a Inglaterra. Foi quando desenvolveram as bombas automáticas V1 e V2 ("V" de Vergelstugwaffen, arma de represália em alemão).
Bomba V2: automação da negação substitui preciosos pilotos e aviões |
O uso de veículos não tripulados descartáveis era uma boa idéia, mas antes eles precisariam acertar seus alvos com alguma precisão, o que exigia um sistema autônomo de guia. O desenvolvimento dos sistemas de navegação inercial destas bombas foi um dos maiores desafios técnicos realizados durante a guerra.
A bomba V1 tinha um sistema inercial muito simples. Ele servia apenas para manter a bomba voadora numa determinada direção através de um giroscópio, a altitude era estabelecida por um sistema de came perfilado acionado por um mecanismo de relógio (praticamente idêntico a um despertador a corda) contra a ação de uma cápsula barométrica. O mesmo mecanismo temporizado cortava o combustível da V1 após um tempo pré-determinado. A V1 então planava até atingir qualquer coisa que estivesse embaixo.
Bomba V1 e um caça Hawker Tempest |
O sistema era muito impreciso, sensível os ventos e às variações de velocidade, fazendo com que muitas V1 errassem grosseiramente seus alvos. Ainda assim, não só mataram muitos civis em Londres, como seu alto ruído característico de seu motor pulsojato (tipo de reator sem turbina) afetava a moral da população, e por isso ficaram conhecidas como “bombas zumbidoras”.
Interceptação de uma bomba V1 |
Era justamente uma fragilidade do sistema de navegação que permitiu o método mais seguro de derrubar essas bombas por meio de caças, já que o metralhamento matou muitos pilotos ao explodir e lançar estilhaços sobre os aviões. O método consistia em emparelhar o avião com a bomba, colocar a ponta da asa do avião sob a ponta da asa da V1 e executar uma rolagem brusca para o lado oposto da bomba voadora. Isso desestabilizava a V1, que caía fora de controle.
Dada a velocidade das V1 (por volta de 680 km/h), rápida para os padrões da aviação da época, o serviço ficou a cargo dos esquadrões equipados com caças Hawker Tempest e Typhoon, os únicos capazes de alcançá-las em vôo nivelado (Mustangs foram usados também, mas só as alcançavam em vôo picado).
As bombas V2 tinham um sistema direcional mais complexo, mas ainda baseado em tecnologias mecânicas como relógios de corda. Diferente do sistema guia elementar da V1, o sistema de navegação da V2 fora projetado para controlar o foguete em um vôo balístico.
Giroscópios do sistema de navegação inercial da bomba V2 |
A V2 apresentou problemas seguidos de desenvolvimento por causa da instabilidade do conjunto. Um dos mais graves foi tardiamente descoberto, quando a linha de produção em série já estava quase pronta para operar. Testes que foram considerados como total sucesso começaram a se mostrar um total fracasso. Ao tentarem resgatar os restos dos protótipos, os alemães descobriram que eles caíram longe dos alvos, apesar do radar apontar que o lançamento havia sido feito dentro da trajetória programada. Novos testes, com um transmissor de rádio e um conjunto de registradores mecânicos montados no lugar da bomba mostravam que a V2 instabilizava-se no final do vôo.
A análise dos dados mostrou que a instabilidade da V2 estava ligada ao consumo do combustível. Quando a V2 era lançada com carga completa de combustível, qualquer desvio de rota era corrigido pelo sistema de navegação mudando a direção do jato do foguete. Essa mudança de direção gera uma força lateral que acelera a massa do foguete de volta à rota planejada. Porém, o sistema havia sido calibrado para o foguete com carga máxima de combustível e ninguém havia pensado no que ocorreria quando os tanques esvaziassem. Com a maior parte do combustível consumida, o foguete ficava muito leve. No caso de um desvio, o sistema inercial comandava a mesma força de correção que era comandada com os tanques cheios. Porém, com massa menor, o foguete acelerava lateralmente muito mais que antes, ultrapassando em muito a posição desejada (o chamado overshoot, varar o ponto) e exigindo uma correção maior que a anterior no sentido contrário. Este comportamento induzia o foguete numa oscilação cada vez maior até ele perder completamente a estabilidade direcional.
A solução para o problema foi uma modificação no sistema de navegação inercial na qual a correção de trajetória comandada para o mesmo desvio era cada vez menor conforme os tanques de combustível iam se esvaziando.
A bomba V2 sofreu de um problema que engenheiros da primeira metade do século 20 vinham enfrentando em todas as partes. A tecnologia de controle avançava em vários ramos, mas construir sistemas de controle estáveis e adequados à função era algo extremamente difícil. Ou esses sistemas de controle eram muito lentos apesar de estáveis, ou eram instáveis e inúteis para a função.
A matemática da dinâmica dos sistemas e as equações diferenciais
Era necessário o desenvolvimento de uma engenharia que lidasse com a dinâmica de sistemas, controlados ou não, mas havia um impedimento de ordem matemática: as equações diferenciais.
Desde o começo do século 20, matemáticos, físicos e engenheiros se debruçavam sobre os problemas de controlabilidade de sistemas de diferentes naturezas: mecânica, elétrica, hidráulica, térmica etc. O grande problema com esses sistemas era a dificuldade em lidar com estabilidade do sistema controlado. Sob determinadas situações, o sistema tendia à instabilidade. Mexendo em alguns parâmetros, o sistema ficava estável, mas sua resposta podia ser lenta ou apresentaria um erro entre o valor comandado na entrada e o valor obtido na saída. Era necessário saber qual o ajuste necessário para obter a resposta mais rápida e precisa, porém ainda dentro dos parâmetros de estabilidade.
Comentei sobre este problema neste artigo do AUTOentusiastas de março de 2010, o Fator Realimentação.
Matemáticos e físicos como Nyquist e Bode perceberam que o problema da controlabilidade dos sistemas estava ligada à dinâmica destes sistemas, e que invariavelmente essas dinâmicas estavam ligadas a equações diferenciais características. Houve então todo um trabalho para convergir estes modelos dinâmicos para uma álgebra que manipulasse com maior facilidade complexas equações diferenciais. Eles também criaram métodos de síntese e de análise destes sistemas.
Inicialmente, os modelos dinâmicos propostos por essa nova matemática descreviam sistemas mecânicos, elétricos, térmicos e fluídicos de forma unificada. Circuitos elétricos com resistores, capacitores e indutores poderiam ter as mesmas equações diferenciais que descrevem seu comportamento dinâmico que um sistema mecânico com massas, molas e amortecedores, o que permitiu a criação de computadores analógicos complexos, o coração dos simuladores de vôo antes da evolução dos computadores digitais nessa função. Circuitos elétricos também foram usados pela indústria automobilística para simular suspensões e buscar a acerto ideal, entre outras aplicações.
Nos últimos 30 anos, entretanto, essa mesma metodologia de modelagem de sistemas dinâmicos vem sendo aplicada em ramos do conhecimento humano para os quais ela não foi pensada originalmente mas aos quais ela é perfeitamente adaptada. Ela está na medicina para modelar sistemas hormonais, na sociologia para explicar dinâmicas populacionais, na economia para compreender comportamentos de mercado, entre outras aplicações. Também está na evolução deste conjunto o surgimento da moderna Teoria do Caos, que nos mostra que o universo que nos cerca não é tão previsível e controlável como gostaríamos. Hoje, toda essa tecnologia configura um ramo inteiro da engenharia, a engenharia de controle e dinâmica de sistemas, coração da engenharia mecatrônica.
A evolução do automóvel sempre esteve ligada à evolução dos sistemas dinâmicos e de automação e controle, e entender o salto que será dos carros atuais, cheios de funções regulatórias básicas para carros inteligentes totalmente autônomos, só será possível se entendermos os elementos que compõem essa tecnologia. É isso que veremos nas próximas partes.
AAD
Referência de imagens:
Bosch - Automotive Electric/Enectronic Systems
http://www.nydailynews.com/entertainment/tv-movies/star-wars-harry-potter-secrets-movie-special-effects-gallery-1.97126?pmSlide=1.98617
http://www.goodfon.ru/wallpaper/british-aircraft-hawker.html
http://www.anthropomatics-robotics.kit.edu/103.php
http://www.hawkeyelounge.com/showthread.php?t=105651
http://www.rarecpus.com/Prex86.html
http://www.mekanizmalar.com/flyball_governor.html
http://www.7-8ths.info/index.php?topic=16683755.0
http://skepticlawyer.com.au/2012/05/27/guest-post-fat-and-simple/
http://www.retroaudiolab.com/permian.htm
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Relay_principle_horizontal.jpg
http://www.bonzle.com/pictures-over-time/pictures-taken-in-1928/page-2/size-3/picture-8dis7aj4/emerald/marjorie-elms-at-the-emerald-telephone-switch-1928-1929
http://yangsp3.egloos.com/m/488916
http://www.johnwiseman.net/giclee_10/tempest.html
http://u2.lege.net/cetinbal/V2roketteknoloji.htm
http://www.fordmodelt.net/blog/2013/07/06/how-to-drive-a-ford-model-t-part-3/
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http://www.fordmodelt.net/blog/2013/07/06/how-to-drive-a-ford-model-t-part-3/
Sou Ciêntista da Computação. Me sinto em casa lendo esse texto.
ResponderExcluirEu entendi "necas de pitibiribas" disso tudo....
ExcluirJorjao
Outro de C.C. aqui, tambem me senti em casa.
ExcluirJorjão, acredite o texto tá até simples, ele ainda poderia ter colocado umas ilustrações de portas logicas ou explicar as equações diferenciais, apesar disso o conteudo teorico é só pra dar embasamento, não é o foco do texto.
Basicamente ele apresenta a evolução dos metodos de controle (por exemplo, a ventoinha do carro e sensor de temperatura é um metodo analogico termo-eletrico de controle simples e eficiente), passando por metodos completamente mecanicos, eletro-mecanicos aos eletronicos (transistores, circuitos integrados, e logica de programação) e como isso afetou toda a industria e os bens de consumo (incluindo os carros).
Hoje há carros que estacionam sozinhos, a abordagem do artigo com certeza é chegar até eles, um metodo de controle complexo, que envolve varios parametros, sensores e controles, precisa ser bem programado para efetuar manobras com precisão.
Acredite, o artigo é uma aula pra qualquer um, por exemplo apesar de entender a parte matematica, a mecanica me facina, como os giroscopios e o regulador centrifugo... Pense, que os tais misseis não tinham precisão de acertar sequer uma cidade (olha o tamanho do alvo) a menos de 100 anos atras, e hoje um carro consegue se acertar numa vaga de estacionamento. É uma evolução gigantesca.
Eu não sei, mas acho que um missil hoje seria capaz de acertar o olho do inimigo, lançado a 3 mil km de distancia... hehehe
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No mais, parabens ao Andre Dantas. Isso é quase um artigo academico.
Fascinante mesmo, eu diria que é um artigo acadêmico, muitos estudantes não se aplicam tanto como o ADD se aplica para soltar seus posts. Parabéns André!
ExcluirUma feliz coincidência para mim foi ler esse belo texto um dia após ter conhecido o controlador centrífugo usado em uma máquina a vapor e ter procurado saber mais sobre outros tipos de controladores mecânicos. Coisa muito interessante e pode-se dizer até genial em alguns casos. As vezes eu acho que eu não conseguiria pensar em alguns mecanismos nem se me dedicasse integralmente só a isso, ainda bem que tem gente que pensa diferente do resto e ajuda efetivamente a humanidade a se desenvolver.
ResponderExcluirInteressante é o tempo que determinados cálculos e inventos necessitam para que sejam colocados em prática.
ExcluirCom tempo a gente vai aprendendo que ser imediatista não nos leva a lugar nenhum. ; )
ExcluirMais um show de postagem, André. Não vejo a hora de ler as outras 17 ou 18 partes (risos).
ResponderExcluirForte abraço!
Excelente texto, parabéns!!
ResponderExcluirDevem dar muito trabalho para serem preparados, mas seus artigos dão gosto de serem lidos.
ResponderExcluirBlueGopher, escrever esses artigos dão muito trabalho. Quando o assunto é tecnologia, não basta ter histórias na cabeça pra contar. Tem que pesquisar, refinar, juntar as pontas soltas, aparar as arestas... Cada artigo desses leva mais de 1 semana para ser escrito.
ExcluirMerecidos parabéns, André.
ExcluirNós, leitores, agradecemos esta sua dedicação, tão rara hoje em dia.
O comum é ler artigos que, claramente, são publicados com base em "achômetros", "ouvi falar" ou simplesmente na base do copiar/colar.
Excelente texto, acho muito interessante apresentar ao público este tipo de informação, pois hoje em dia até mesmo coisas que consideramos comuns exigiram e exigem uma engenharia de controle muito afiada. Temos hoje em dia o prazer e beneficio de utilizar o fruto de muitos anos de pesquisa e desenvolvimento ao alcance da nossa mão sem dar importância e até mesmo reclamar sem levar em conta a complexidade envolvida para aquilo funcionar.
ResponderExcluirAnônimo, Arthur C. Clarck, autor de 2001 - Uma Odisséia no Espaço dizia que quando uma tecnologia se torna muito avançada, aos olhos dos leigos ela se confunde com a magia. E ele disse isso há mais de meio século.
ExcluirÉ preciso que as brumas da magia e da feitiçaria sejam desfeitas na cabeça das pessoas. É importante que as pessoas entendam que as coisas ocorrem porque leis da natureza são postas ao nosso serviço.
É para isso que eu escrevo.
A história nos conta que os pioneiros da tecnologia promoviam sessões de demonstração dos seus inventos e descobertas a endinheirados, como forma de angariar fundos para continuar suas pesquisas.
ExcluirDaí que vem essa confusão com magia.
Texto muito legal! Não tenho muito o que comentar até por ser leigo, mas aguardo pelos novos capítulos!
ResponderExcluirComo sempre, perfeito. Para ler depois das provas desta semana. Mas para ler...Grato.
ResponderExcluirAD,
ResponderExcluirNão sei se você leciona mas seu post é uma tremenda aula. O conteúdo, a história, os conceitos teórico e a prática não deixaria ninguém deixar de prestar atenção. Parabéns. Adorei a leitura.
HM, não leciono. Não tenho mestrado ou doutorado, exigências para um professor hoje em dia.
ExcluirCaro André,
ResponderExcluirExcelente texto e muito bem elucidativo, parabéns!
Apenas como curiosidade, o desenho do Hawker Tempest matr. JF-E ao lado da bomba voadora V1 representa o avião de Pierre Clostermann, o maior ás francês da 2a Guerra Mundial e que, na verdade, era um brasileiro de Curitiba, filho do cônsul francês e que aprendeu a pilotar no aeroclube do Rio de Janeiro e com a deflagração da guerra se alistou na RAF para lutar ao lado dos Franceses Livres e cujo livro de memórias "O Grande Circo" acabou de ser reeditado em português.
Roberto, eu tenho "O Grande Circo" e "Fogo no Céu" da primeira edição em português, e há vários anos. Bom saber que estão reeditando. Uma curiosidade sobre o "O Grande Circo" é que, enquanto existem dezenas, talvez centenas de livros sobre a guerra na Europa e no Pacífico escrito por pilotos americanos, não há nenhum livro sobre as ações RAF escrito por pilotos ingleses? "O Grande Circo" é o único livro sobre as ações da RAF escritos por um piloto que vivenciou os fatos.
ExcluirUma curiosidade é que Von Braun, o cara que vriou o V-2 e que sanou seus problemas foi preso certa vez, quando os foguetes já funcionavam perfeitamente, por ter afirmado numa festa que eles continuavam atingindo o planeta errado...
ResponderExcluir20 anos depois lá estava ele na NASA, fazendo os foguetes atingirem os planetas certos!
brauliostafora, Von Braun pertencia a um grupo interessado no vôo espacial. Mas brincar com foguetes era caro e mal visto pelas autoridades. Ele aceitava fazer armas a partir de foguetes, desde que isso abrisse o caminho para sua verdadeira vocação.
ExcluirShow........... mto boa nunca pensei em ler algo tão fácil de entender..... Parabéns.
ResponderExcluirE esse é um tema muito complexo. Ficou realmente fácil e divertida a leitura, de um tema complexo e taxado por muitos como chatice (engenharia de controle).
ExcluirObrigado a todos pelos elogios. Esperem que tem muito mais.
ResponderExcluirQue bom poder embarcar no Nautilus novamente e estar na presença do ilustre capitão!
ResponderExcluirBom Voyage para todos nós!
Muito bom o artigo André!! Pra gente que está na área de Computação a muitos anos, se sente em casa!!!!
ResponderExcluirAndré dantas gostei muito da explicação , o senhor é o Katsuhiko Ogata, dos autoentusiastas
ResponderExcluirVc deveria dar o exemplo de função de transferencia pro pessoal visualizar melhor, de como é feito este controle
Mas parabéns vc abordar o assunto controle/automação que é muito pouco lembrado e falado
Leister, aguarde a segunda parte do artigo.
ExcluirTodos os seus posts são fenomenais e muito didáticos. O que mais me surpreende é que, como li certa vez, um amontoado de tijolos não é uma casa assim como um aglomerado de conhecimento não é sabedoria. Sou engenheiro e tudo que voce colocou neste post, eu já conhecia. No entanto a forma com que voce concatena o texto e dá fluidez e inteligibilidade ao assunto é excepcional. Voce já pensou em escrever livros??? O post " O fator realimentação" de 2010 foi fantástico e já o citei diversar vezes assim como seus post sobre as peripécias com o motor de autorama (com o qual eu também me diverti por muito anos) que virou um rastilho de pólvora aqui onde trabalhao, em uma montadora de São Caetano. Muitos marmanjos voltaram aos seus carrinhos e tem dois ou tre dias um colega veio à minha baia para saber mais sobre enrolamentos de motores... E a turma aqui é 100% mecênica!!! Concluindo.... Meus parabéns e muitíssimo obrigado por seus posts
ResponderExcluir!!!
Romildo, grato pelos elogios. É muito bom saber que ainda inspiro o resgate das crianças que ainda vivem dentro dos corações de homens crescidos. Se um dia vocês precisarem de um meio engenheiro, meio Professor Pardal, que entende algumas coisas de engenharia automotiva e já mexeu com tração elétrica pra ajudar vocês a se divertirem com os carros híbridos, não esqueçam de mim.
ExcluirFantástico! Faço faculdade de Engenharia Mecânica, e também me senti em casa lendo esse artigo, muito bom mesmo! Aguardo os próximos capítulos hehe
ResponderExcluirMais um artigo fantástico como só você escreve, parabéns!
ResponderExcluirExcelente texto!!!
ResponderExcluirFaço Engenharia Elétrica em uma faculdade federal e meus professores da área de Controle não conseguiram passar metade do conhecimento do artigo (foca-se muito na teoria, sem conexão com a prática). Genial explicar como os Controles de processos são através da evolução histórica, fica mais fácil entender quando começa pela motivação e não pela teoria de cara!
Meus parabéns!!!
Pedro