Você acreditaria se lhe dissesse que a Renault, famosa por seus carros de personalidade eminentemente francesa, já produziu um legítimo Muscle Car?
Tal coisa só podia ter acontecido na América Latina, terra dos mais absurdos, e por isso mesmo mais interessantes, híbridos do planeta. Vejam o caso do carro em questão, o Torino.
Esta história começa em 1956 com a fundação da IKA (Indústrias Kaiser Argentina), produtora de automóveis sediada em Santa Isabel, na distante província de Córdoba. Após produzir Jeeps diversos, entra em acordo comercial, em 1959, com a estatal francesa de Paris, que se transforma em IKA-Renault para adicionar inicialmente o Renault 4 a sua gama.
Em 1962, outro acordo, com a então infante AMC americana, é o pavio para o desenvolvimento de um carro para combater o popularíssimo Ford Falcon, usando como base o Rambler American de 1964 (abaixo).
O engenheiro-chefe da empresa, George Harbert, não se contentou em apenas transplantar o Rambler para solo portenho. Não, queria mais, queria um carro especial que fosse entendido por seus compatriotas como algo de seu país, e não apenas mais um flácido americano nascido lá por azar (ou provavelmente sorte, pensariam os argentinos).
O carro é então levemente restilizado pela casa Pininfarina, ganhando também um painel de instrumentos de personalidade decididamente italiana. Além da dessa argentinização da aparência, toda a estrutura e suspensões do carro foram reprojetadas para a maneira de dirigir do povo de seu país, decididamente mais forte que a dos americanos, e em estradas infinitamente piores. O fato do Torino ter grande sucesso em "carreteras"e ralis posteriormente deve muito a este cuidado dos seus criadores.
Um belo logotipo, com um touro dos pampas estilizado, ajudou a completar a mudança de personalidade do carro, de um carro pequeno para senhoras americanas irem as compras para um luxuoso e esportivo sedã para aristocratas portenhos.
Por uma incrível sorte, o Torino acaba por ganhar em seu nascimento um propulsor interessantíssimo. Desenvolvido para ser usado em Jeeps pela Kaiser no início dos anos 60, o Tornado six de seis cilindros em linha teve vida curta nesses carros: era muito complexo, caro e comprido para os Jeeps. Quando a Buick americana desistiu de usar seus V-6 em meados da década de sessenta, a AMC habilmente, sentindo que o simples, ótimo e barato V-6 era perfeito para o CJ5 e seus derivados, comprou o ferramental e o projeto, e mandou o seis-em-linha para a Argentina.
A história desse V-6 Buick ainda precisa ser contada, porque é cheia de idas e vindas e drama e suspense como uma boa novela policial. Basta saber que a Buick acabou por comprá-lo de volta e fazer coisas absolutamente inesquecíveis com ele, como o Buick GNX e o primeiro Omega "australiano"que tivemos aqui no Brasil!
A história desse V-6 Buick ainda precisa ser contada, porque é cheia de idas e vindas e drama e suspense como uma boa novela policial. Basta saber que a Buick acabou por comprá-lo de volta e fazer coisas absolutamente inesquecíveis com ele, como o Buick GNX e o primeiro Omega "australiano"que tivemos aqui no Brasil!
Mas estou divagando...De volta ao interior da Argentina no meio dos anos 60, e nosso amigo Harbert, que agora tinha em mãos um novo motor para seu novo carro. Como vocês podem imaginar, um motor que era complexo e caro para um Jeep só podia ser perfeito para o Torino. Seis cilindros em linha, sete mancais, e inusitadamente para um propulsor americano da época, comando de válvulas no cabeçote (OHC) e câmara de combustão hemisférica. Era oferecido em 3 versões: 300 (3,0 litros e carburador duplo Carter) , 380 (3,8 litros e carburador duplo Holley) e finalmente, o mítico 380 W com três gloriosos Weber horizontais duplos e 220 cv.
Lançado em 1966, o Torino era oferecido em várias versões de duas e quatro portas, e logo se tornou um símbolo de status em seu país. Infelizmente, Harbert não chega ver seu filho pronto, pois morre tragicamente em acidente automobilístico perto do lançamento.
O carro logo é adotado pelos corredores argentinos como seu melhor puro-sangue para las carreteras, e tem uma longa e gloriosa carreira em competições, invariavelmente com enormes pneus saindo de seus para-lamas cortados. Em 1975, a IKA era comprada pela Renault e o Torino ganha um logotipo da empresa e vira um RENAULT Torino, e assim permanece produzido até que os efeitos da segunda crise do petróleo o mata em 1982.
Logo na primeira semana que cheguei na Argentina, me deparei com um cupê saindo de um prédio. A primeira coisa que me chamou atenção foi como é pequeno; mesma sensação que tive após ver um Falcon depois de décadas. Tinha na cabeça que eram enormes carros americanos, mas na verdade são ridiculamente pequenos para os padrões americanos, e de tamanho apenas médio hoje em dia.
A outra foi o som do motor. Eu gostaria qu vocês pudessem ouvir a melodia exótica e embriagante daquele motor ao sair calmamente da garagem e depois ser acelerado com vontade. Mas na verdade, graças ao milagre do Youtube, vocês podem ouvir algo parecido sim:
http://www.youtube.com/watch?v=NbuvJMVGxHU&feature=related
Vejam também uma propaganda de época e um filme em que um Torino de corrida é protagonista:
O Torino, especialmente se equipado com o motor 380 W, é um carro especial; um muscle car portenho com comportamento decente, e a alma fincada em corridas de velocidade na terra, tal qual EVOs e WRX hoje.
É um Renault muito, mas muito diferente mesmo...
MAO
Nota adicional de Bob Sharp:
Nas 84 Horas de Nürburgring, em 1969, o Torino 380 W foi o carro que mais voltas deu, mas foi penalizado por perder parte do escapamento e ter de fazer o reparo. Ainda chegou em quarto, atrás de um Triumph TR6, BMW 2002 e Lancia Fulvia HF. Na época foi muito comentado. Nos, boxes, o chefe era ninguém menos que Juan Manuel Fangio. As duas fotos do fim do post, logo aí acima, são desta corrida, e o sujeito de boina na primeira foto é Fangio himself.
MAO,
ResponderExcluirExcelente. Acho que esse carro é uma joia rara e não vejo colecionadores aqui dispostos a trazer e manter um no Brasil. Uma pena.
Mistura de projetos europeus e americanos, motor 6 em linha americano, suspensão melhorada para nossas estradas, sucesso nos anos 70. História parecida com a do Opala.
ResponderExcluirE dentro de alguns assuntos tratados no post, com toda a confusão e salada de motores que sempre reinou na AMC, acabamos por ver uma vingança ironica, o motor que eles mesmo fizeram nos anos 60, com uma versão de 4 cilindros e 153 cid, o mesmo que conhecemos nas Dakota aqui no Brasil e os 4.0 6 cilindros nas cherokees sport, se firmaram, o 6 andou até turbinado nas 500 de indianapolis e só vieram a morrer em pleno seculo 21, incrivel e o 6 OHC usado nos Torinos, mórreu! Só teve vida longa nos pampas.
ResponderExcluirVai entender.
AG, tem um aqui, sim. Vi num rali de clássicos realizado no ano passado em Teresópolis. E veio preparado, fortão.
ResponderExcluirMestre Mahar deve conhecer o dono.
Arnaldo Keller
MAO,
ResponderExcluirbem macho esse carro, traga um de suas viagens, passe pela fronteira acelerado e sem parar, traga a cancela no peito !!!!!!!
Arnaldo,
ResponderExcluirIncrivel, que bom que já trouxeram um e em bom estado! Me alegrou esta noticia.
Para clarear alguns pontos. Em 1959 a Kaiser-Willys obteve licença da Renault para produzir o Dauphine na Argentina (e Brasil); a montagem do R4 iniciou bem depois. E desde 1960 a K-W tinha ligações com a American Motors; desta maneira sua filial argentina poude lançar o Rambler Classic/Ambassador em 1962; as peças da carrosseria vinham dos EUA. Sua versão mais compacta chamava-se American e, quando encerrou a produçao, o ferramental foi transferido para Cordoba. O mestre Pininfarina fez uma plástica e surgiu o Torino, em 1966. Quanto ao motor Tornado era uma atualização do vetusto Continental 226 (anos 30) que a Kaiser usou de 46 a 61; muito caro para os EUA mas fácil de adaptar para a linha IKA. AGB
ResponderExcluirContinuando. Em 67, a Kaiser decidiu abandonar a América do Sul e vendeu a IKA para a Renault (e a Willys para a Ford). AGB
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