google.com, pub-3521758178363208, DIRECT, f08c47fec0942fa0 Trem bom - AUTOentusiastas Classic (2008-2014)

Trem bom

Autor do post: Arnaldo Keller


Houve um tempo em que, para subir para Campos do Jordão, SP, você tinha a opção de ir de carro até Pindamonhangaba, e lá, ao pé da serra, o embarcar num trem. Em seguida você ia para o vagão de passageiros e curtia a viagem tomando um bom chá com bolinhos no vagão restaurante; nada mal. Era um programa agradável para a família, porque todos, com todo o conforto e liberdade de movimentação, podiam ir observando a mudança da paisagem até que chegassem ao objetivo final. Isso não faz tanto tempo assim; até o final da década de 60 esse sistema estava funcionando.

Oras, que heresia falar de trem num blog de entusiastas por automóvel, e logo eu, um incorrigível tarado por mandar a lenha serra acima ou serra abaixo numa estradinha sinuosa, e seja lá com que carro for. Que heresia! Porém, tenha calma, me escute um pouco, pois sou do seu time.

A explicação para a existência desse trem carregador de carros e encarador de serras é que na época a hoje chamada Serra Velha para Campos era uma estradinha que seus trechos íngremes comumente faziam ferver os carros de então. Além disso, muitas vezes viajar com o carro lotado de filhos hiperativos, sogras resmungonas e esposas desesperadas é uma situação que costuma fazer nosso cérebro nos perguntar coisas ruins, do tipo quanto tempo será que a velha leva pra morrer se eu a ficar esgoelando e lhe metendo o joelho na boca do estômago?; será que o Júnior acalma se eu enfiar o dedinho dele, aquele dedinho delicadinho e rechunchudo, todo melecado de chocolate, no acendedor de cigarros?; será que duas voltas de esparadrapo na linda boca da minha mulher bastam para calá-la?; e por aí o cérebro, esse exagero humano, essa máquina superdimensionada, ia.

Daí que, voltando ao assunto original, viajar de trem, para certas situações, é o ideal. Na primeira vez que fui a San Martin de Los Andes, há 33 anos, fui de trem e fui só. Eu tinha 19 anos e era inverno. San Martin, como diz o nome, está encravada na Cordilheira dos Andes e fica perto da conhecida San Carlos de Bariloche, no sul da Argentina. Na época era ainda uma cidade baseada na economia rural, com peões a cavalo e tratores circulando, e poucos hotéis e restaurantes de alto nível; a pista de esqui no Cerro Chapelco, que traria o turismo, fora inaugurada recentemente.

Era uma belíssima viagem essa de trem. Saindo de Buenos Aires, indo para o Sul, primeiramente cruzava-se os verdejantes pampas que circundam a Capital. Pela janela, ao entardecer, descortinavam-se imensas planícies férteis, pastagens tenras com gado gordo e plantações viçosas que se estendiam ao longínquo horizonte. Horas de viagem depois, a vegetação ia aos poucos ressecando e começávamos a entrar na Patagônia. Daí anoitecia. A viagem era longa, o trem antigo e lento, parávamos em estações perdidas, com suas luzes opacas, homens encapotados, cachorros peludos, bares mortiços, café com leite quentinho, leite gordo, cigarro de fumo negro rasgador de garganta aceso.

Seguíamos então por regiões semi-desérticas, planas, onde o vento forte, frio e seco, a tudo desidrata. Lembro do amanhecer. Céu róseo, nuvens altas e esfiapadas. O trem correndo passou por um grupo de peões, mais de dez, pilchados com bombachas e grossos ponchos de lã. Formavam eles uma roda em torno da fogueira, os cavalos agrupados os protegendo do vento, a cuia do chimarrão passando de mão para mão. Só eu sei o quanto desejei estar ali na roda, com meu cavalo Gualixo arreado e tirando um cochilo para guardar forças, me esperando. O dia estava começando como deve começar, com força, com a vitalidade que só o amanhecer na natureza nos pode dar.

Daí vinha a região de Rio Negro, a região das suculentas maçãs e pêras. Macieiras e pereiras desfolhadas, galhos escuros contrastando com a terra arenosa e esbranquiçada. O ponto final da linha era Zapala, ainda quatrocentos quilômetros distante de San Martin. Cidade pequena de poucos quarteirões, cujas ruas asfaltadas se recobrem da areia do deserto. Calçadas altas, acima do nível da rua, como nas cidades do “velho oeste”. O vento a castiga, rolos de capim seco a atravessam às cambalhotas e seguem apressados, como se algum compromisso tivessem com o imenso nada a que se dirigiam.

Ali pegávamos um ônibus. O que peguei tinha todo o interior decorado com pingentes, bandeirinhas, fotos, sininhos e tudo o que fosse colorido e balançante; tudo meio solto, inclusive a suspensão do veículo. Tive a sorte de ao meu lado sentar um senhor baixinho, velhusco, de pele encarquilhada pelo deserto e cujo sorriso banguela e franco fazia brilhar olhos azuis e luminosos como diamante. A conversa fluiu com muitas perguntas de ambos os lados, muita curiosidade pelas diferentes vidas que levávamos. Algo nos unia, em algum ponto éramos iguais.

De repente o ônibus parou e o simpático velho se levantou, catou sua sacola de pano, despediu-se com um amável sorriso e desceu. Pela janela eu só via terra seca, tufos de capim crestado e pedras. O ônibus partiu estrepitoso numa nuvem de pó. O velho ajeitou sua sacola ao ombro e dirigiu-se para uma casinha encravada no meio de uma suave colina. A casa era feita de material do próprio local, daí que ela mal se distinguia do redor. Enquanto eu, com certo pesar, matutava se o velho vivia só, vi que da casa desciam correndo a toda alguns cães. Tive o contentamento de, ainda de esguelho, pelo canto da janela, presenciar o festivo reencontro, e segui contente.

A certa altura a planície começa a sofrer ondulações; são reflexos da elevação dos Andes, essa fenomenal massa de terra e pedra que se levanta com a movimentação da América do Sul em direção ao Oceano Pacífico. Seguimos a oeste e as ondulações vão se pronunciando até tornarem-se montanhas escarpadas por onde, bufando com o esforço da subida, nosso velho ônibus serpenteia. Há neve nas encostas abrigadas do sol. A aridez começa a dar um refresco, gado Hereford ali pasteja, assim como bandos de cervos.

A estrada passa por entre duas altas montanhas que parecem formar um portal, e começa a descer. O verde vem de forma abrupta, intensa, nos enchendo os olhos, e o vale fértil da pequena cidade de San Martin se abre em esplendor. Montanhas nevadas, refletindo a luz do sol, a iluminam, há bastante vida, gente caminhando, cavalos pastando, vacas ruminando, chaminés fumaceando, casas abrigando vidas.

E foi assim que fiz minha primeira viagem a San Martin. Ali voltei mais quatro vezes, porém nessas fui de avião; sobe aqui e desce lá. Num zap ali estamos como num passe de mágica, e isso tira grande parte do prazer de uma viagem, o prazer de ir descobrindo o terreno, de ir se situando, preparando o organismo, sintonizando a alma. Infelizmente, não mais existe essa linha férrea, ao menos não para passageiros, daí que da próxima vez que pra lá eu for, irei de carro, de preferência um bom esportivo, já que as infindáveis retas convidam.

Quem sabe no futuro, por economia de combustível e devido à difusão dos velozes trens-bala, muitas viagens voltarão a ser feitas de trem em vez de avião. Já se sabe que para viagens abaixo de setecentos quilômetros gasta-se menos tempo total viajando de trem, além de ser mais barato.

E quem sabe poderemos levar o nosso carrinho, o nosso carrinho do dia-a-dia, a nossa casinha ambulante, ali no vagão de trás? Tem jeito melhor de viajar?

AK

4 comentários :

  1. Fantástico, Arnaldo, nota 10! Voce, assim como outros que participam do blog, tem o dom de escrever.

    Abraço

    Lucas

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  2. Muito bom, AK ! Como te disse, fui algumas vezes do Rio a SP de trem e achava a viagem mágica, ainda que quase toda durante a noite.
    Nada como poder apreciar todas as nuances do caminho, calmamente. Fico imaginando quantas paisagens legais seriam descobertas se tivéssemos um trem desde o extremo sul até lá em cima. E nada contra um trem-bala, tomara que um dia tenhamos um. Agora, avião pode ser legal, basta o céu sem nuvens.

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  3. Pô, é o Arnaldo que escrevia pro SuperAuto?

    Ótimo texto, quanto aos trens, pena que no Brasil temos uma política de transportes, tanto de carga como de passageiros, ridícula.

    Imagina o quanto não se economizaria de pedágio e de frete viajando e carregando de trem.

    Utopia nessa Terra Brasilis...

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  4. Agradecendo ao Lucas, ao Sergio e ao Alexandre,
    o que mais quero enfatizar no texto é que acho o uso de aviões para curtos trajetos um despropósito, um gasto absurdo de combustível para levar meia dúzia de apressadinhos gatos pingados. Acho isso uma deturpação.
    No mundo que se delineia, mais comedido, mais racional, o uso do trem é muito mais provável.
    Daí que quis trazer as boas qualidades que a viagem de trem proporciona, pra já ir acostumando a turma, porque estou certo de que ele vem e vem forte.
    E Sergio, sou o desmiolado do SuperAuto, sim.

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