Houve um tempo em que os carros-conceito eram chamados de "carros do futuro". O conceito substituiu o futuro, presumo eu, ou porque o futuro morreu, ou porque é um lugar sombrio e decadente, como querem nos fazer acreditar as hordas de arautos de uma suposta hecatombe que o Homem perpetrará no planeta Terra.

Liberados da necessidade de tentar fazer algo realmente novo por esta mudança aparentemente inocente de nome, os designers de hoje ou se voltam para o passado criando travestis de um tempo que já se foi, ou viajam totalmente em algo ridiculamente inútil e sem graça. Todos estão ligados apenas em novos materiais, luzinhas, e outras bobagens que não ajudam em nada a evolução do automóvel. Criar um carro do futuro é o que deviam tentar fazer; ao invés disto criam "conceitos", uma palavra de significado tão vago e gasoso quanto os carros que dela resultam.
E não foi sempre assim. E para mim, o maior exemplo disto é o carro que é o tema deste post: o Lancia-Bertone Stratos Zero.




Apresentado no tradicionalíssimo Salão de Turim em 1970, é uma verdadeira aparição. Desde então os designers abandonaram as cunhas como visual do futuro, mas até hoje pode-se facilmente imaginar este carro andando nas ruas de terra de Tatoine, levando Spock para uma biblioteca em Vulcano, ou dirigido por um jovem Harrison Ford em "Blade Runner". Ou dando um couro naquele o Audi afrescalhado de Will Smith em "Eu, Robô", para uma referência futurística mais palatável aos jovens leitores...O carro é incrivelmente baixo, impossivelmente baixo, inacreditavelmente baixo: apenas 840 mm de altura. Tão pouco que não há como fazer portas laterais, e os ocupantes entram no carro pelo vidro dianteiro, que bascula para trás como um canopy de avião. Para acessar a entrada, deve-se subir em cima do carro, e para tal um tapete de borracha domina a frente dele, logo abaixo do vidro, no bico. Abaixo dele, escondidos na fina "grade" dianteira, estão os faróis.

Quando o vidro se abre, a coluna de direção, movida por cilindro hidráulico, também anda para a frente, permitindo que o motorista se acomode no confinado posto de direção, coluna entre as pernas e pés bem próximos do final do vidro. E todo este trabalho é real: o Stratos, como todo conceito de Bertone até ali, era completamente funcional. Sim, ele pode ser dirigido nas ruas, e foi.
Engraçado como são as coisas; eu não consigo me lembrar com detalhes de qualquer carro que apareceu depois do ano 2000 sem pesquisar. Quando o tempo passa um pouco, as memórias mais claras ficam mesmo na infância e adolescência, e na idade adulta 10 anos passam como se fossem 2... E por causa disso me lembro perfeitamente quando vi este carro pela primeira vez. Mil novecentos e oitenta, na casa de meu avô; achei uma revista Quatro Rodas dos anos 70, onde Emerson Fittipaldi testava 3 carros do futuro de Bertone, entre eles o Stratos. Dentro da revista, fotos de Emerson andando com ele por ruas de verdade, olhando pela janelinha lateral, e até abrindo caminho por um rebanho de ovelhas, uma visão incrível. O teste era recheado de impressões sobre a estabilidade, desempenho, e tudo mais: podia ser um exercício estilístico, mas era um automóvel e devia ser tratado como tal.
Para mim é incrível que não se faça mais isso. Se não é para fazê-lo funcional, não há por que fazê-lo. O Stratos, se não andasse, se não fosse possível de ser dirigido nas ruas, seria mais um exercício de futilidade. Ninguém acreditaria que o acesso seria possível, ninguém acreditaria que era possível de andar com ele por aí, e a irrelevância seria o tom desta história. Mas não é assim: o Stratos prova que, principalmente quando você quer criar algo novo, o livro de regras deve ser jogado pela janela sem dó, e só o experimento e a tentativa podem provar realmente a ideia. Este carro pode não ser uma maravilha ergonômica, mas deve ser uma experiência única ao volante, o que era o objetivo afinal de contas.
E não era para menos. Criado entre 1969 e 1970, o Stratos era uma ideia de Nuccio Bertone e Marcelo Gandini, seu principal desenhista (e futuro criador do mítico Countach, entre outros) para ser um bólido de rali que substituiria o Lancia Fulvia HF. Para tal, devia ser pequeno como este Lancia, mas ter motor central-traseiro e ser mais baixo. O Stratos ganhou então o motor e transmissão do HF (acima), um extremamente compacto V-4 a apenas 11 graus (no HF; nas outras Fulvia eram 14 graus), com duplo comando no cabeçote e oito válvulas. Como o cabeçote era único, havia apenas um comando para admissão e um para o escape, e não os 4 comandos de um V-4 "normal", o propulsor sendo muito semelhante aos "VR" Volkswagen. Este motor de 1,6 litro contava ainda com dois carburadores Weber duplos horizontais, e produzia 135 cv ariscos e não domesticados, no estado de preparação em que estava no Stratos. Nele ficava montado em posição central-traseira, desta forma melhorando teoricamente o comportamento em relação ao Fulvia, que tinha tração dianteira e motor longitudinal à frente do eixo dianteiro. O escapamento é um megafone direto, sem abafadores, e portanto produz um barulho considerável, e cria uma aterrorizante aura cacofônoca e não civilizada nesta nave espacial de Bertone.
O carro foi projetado para ser mínimo, pequeno e manobrável, um verdadeiro motor acoplado às costas do motorista, que ficava quase deitado, coberto por uma cunha básica. Diz a lenda que, ao contrário do usual, onde se coloca o motorista e os componentes primeiro, para desenhar o carro depois, Gandini desenhou sua ideia a partir do entre-eixos do Fulvia, e depois deu um jeito de colocar tudo, mecânica e pessoas, lá dentro. A janelinha lateral pouco ajuda na visibilidade lateral, e não há retrovisores. Mas hoje em dia seria fácil de resolver: há espaços perfeitos para telas dentro do carro, bem na abertura de janelas, que seriam perfeitas junto a pequenas câmeras no exterior. E podia-se fazer um espelho-periscópio central, retrátil ao comando do motorista, já pensaram? Para frente a visão é incrível: a janela vai praticamente de seus pés até sua cabeça, quase uma frente toda de vidro. Imaginem a sensação de velocidade, com aquele irrascível V-4 italiano empurrando, aquela frente toda de vidro, você quase deitado e encaixado, praticamente imóvel, e o barulho ensurdecedor...É um dos poucos carros-conceito que realmente queria experimentar. É um daqueles trecos em que você tem certeza que vai morrer uma morte gloriosa cheia de fogo e vidro estilhaçado, mas mesmo assim ainda quer desesperadamente experimentar. Um verdadeiro caixão italiano em forma de cunha!

O objetivo de Bertone era chamar a atenção da Lancia, o que acabou dando certo, mas não com a exposição no salão. Foi preciso que fossem publicados os testes em revistas (promovidos por Bertone depois do salão) para que viesse um telefonema da empresa. Ao desligar, Nuccio Bertone simplesmente entrou no carro junto com o seu chefe de relações com a imprensa, e foram os dois até à Lancia. Dizem que o carro era tão barulhento que parou o trabalho no departamento de competição, onde o carro foi estacionado. Em alguns anos, a Lancia dominaria as competições de rali com outro Stratos de motor central e carroceria Bertone, mas com nenhuma relação com este a não ser o nome e a inspiração. Mas isso é história para outro dia... Como também fica para outro dia a participação de Michael Jackson (sim, ele) nisto tudo.
O futuro previsto pelo Stratos Zero não aconteceu. Mas a lição dele permanece: se você quer provar uma ideia, por mais louca que ela seja, faça-a funcional. Um carro que anda e pode ser dirigido é uma poderosa arma de persuasão.
MAO
Fotos: Ultimate car page, Bertone e Veloce Today