Ator mecânico de filme de Hollywood, um dos carros-conceito mais importantes de todos os tempos |
Provavelmente o Lincoln Futura é o carro-conceito, ou “de sonho”, mais
conhecido do mundo, mas não em sua forma original. Apesar de ter sido modificado, o que
já é algo por definição, ruim,
teve um destino glorioso que o fez famoso.
Nunca esquecido como as dezenas de carros que tiveram sua fama em
exposições mundo afora, o Futura teve destino dos mais interessantes, apesar de
que sempre haverá pessoas que não concordam com a desvirtuação de um carro
único. Muita gente já sabe no que ele se tornou, depois de ter sido vendido
pela Ford.
Sem mais delongas, direto ao ponto.
O Futura era um exemplar único, e foi transformado por George Barris e
equipe no primeiro Batmóvel para a televisão, sendo o principal protagonista
do seriado que estreou em 1966 e que todo mundo (meninos, pelo menos) que tem
mais de 35 ou 40 anos viu algum dia no passado. Meu pai brincava dizendo que o
Batman usava as cuecas em cima da calça,
o que é no mínimo engraçado e esquisito, mas eu assistia aos episódios
para ver o principal, o carro. Hoje eu concordo com ele, o Batman era mesmo
ridículo naquele tempo.
O principal motivo para passar o tempo diante da televisão era sem dúvida
o carro da dupla dinâmica, não as habilidades de Batman ou Robin.
As cenas do Batmóvel deixando a Bat Caverna ficaram na mente de milhões
de crianças e adultos. Aquilo sempre foi um sonho. Usar um carro exótico para combater os malfeitores, saindo com ele de seu laboratório secreto, em
meio às árvores, numa estrada perdida nas montanhas, acelerando uma turbina com som de avião a jato e levantando poeira. Nada podia ser mais legal aos sete anos de idade. Nem mesmo se aparecesse Barbara Gordon, a filha do Comissário Gordon, trocando de roupa e se transformando em Bat-Girl.
Não podia haver nada mais legal que isso quando se tem sete anos |
Mas a origem de tão memorável personagem mecânico foi o carro que infelizmente não existe mais e era muito, mas muito futurista mesmo, ao menos em estilo, como era para ser qualquer carro-conceito ou carro de sonho do passado. O nome Futura era absolutamente apropriado naquele tempo de aviões a jato, foguetes e planos de viagens intergalácticas. Ficou pronto em 1955, imaginem, quase sessenta anos atrás.
O idealizador desse desenho foi William "Bill" Schmidt, que de 1945 a 1955 ocupou
o cargo de líder de estilo das divisões Lincoln e Mercury da Ford. O Futura é
obra conjunta com John Najjar, o co-designer do protótipo roadster batizado de Mustang I, entre outros
trabalhos. O engenheiro responsável pela adaptação da mecânica já existente ao
conceito foi Martin Regitko que, digamos assim, foi quem fez o Futura ser um
carro e não um modelo estático de sonho.
Apesar de não ter feito
nenhuma alteração memorável nos Lincoln de produção, a inspiração
chegara definitivamente para Schmidt quando o Futura foi decidido como idéia a
ser materializada.
Um dos primeiros desenhos |
Modelo em argila (clay) |
O clay permite ajustes olhando-se para uma forma real, tridimensional |
De lado parece mais um foguete, exceto pelas rodas |
Sinistro, mesmo sem cor |
O modelo em clay terminado |
O mais interessante é saber de onde veio essa inspiração. Numa viagem às Ilhas Bahamas em 1952, Schmidt estava junto com o xará e amigo Bill Mitchell, da General Motors. Sim, existem amizades que são maiores que as fábricas, apesar delas não gostarem. Nas atividades normais de férias em áreas tropicais, os dois americanos, entusiastas da pesca submarina, mergulharam, viram tubarões, arraias, peixes de todos os tipos e cores. Schmidt diz que esses animais os inspiraram quando desenhou o Futura, o que é mais explícito ainda no caso de Bill Mitchell, o assistente direto e herdeiro de Harley Earl, o criador da seção de estilo da GM, e ambos pais dos mais espetaculares carros-conceito jamais feitos pela GM.
Podemos dizer que essas férias renderam muito à
indústria, mas muito mais para nós entusiastas de carros maravilhosos. No caso da Ford, o resultado foi mais rápido, pois o Futura já
estava apresentado ao público em janeiro de 1955 no Salão de Detroit, enquanto
que para a GM o conceito Stingray ficou pronto em 1959, criado por Bill Mitchell, Pete Brock e Larry Shinoda, e o Mako Shark em 1961, desenhado por Shinoda, sob a regência de Mitchell. Estes dois Corvettes são grandes
desenhos da história sem nenhuma dúvida.
Stingray à esquerda (1959), Bill Mitchell e Mako Shark (1961) |
A Ford não fez o carro em casa, mas sim numa importante
movimentação, chegou à Carrozzeria Ghia, empresa italiana fundada em 1915 e autora de
muitos carros memoráveis ainda hoje. Estúdio de estilo poderosíssimo, lá o
Futura foi construído em metal, apesar de ser mais fácil e barato fazer moldes
para usar o compósito de fibra de vidro. Mas a Ghia era reportada
na época como tendo os melhores artesãos para trabalhos em chapa de metal, e
foi definido que o Futura assim tornar-se-ia realidade.
Sobre o chassis e mecânica de um Lincoln Mark
II com motor de 368-polegadas cúbicas,
ficou pronto um carro funcional, que custou naquele ano a fortuna de US$ 250.000, uma loucura equivalente hoje a cerca de 2,5
milhões de dólares. A parceria que estreou com o Futura deu tão
certo, que em 1970 a Ford assumiria de vez o controle da Ghia, detendo-o até hoje.
A parte boa de dizer que esse carro era o futuro é ver a total
desconexão com os dias de hoje. A aerodinâmica era problemática, com muitos
elementos protudentes saindo das superfícies principais. As arestas sobre os
faróis e os cantos do pára-choques seriam
mortais a pedestres, algo já abolido de todos os carros atuais, e cada vez mais
cercadas por leis e normas de proteção a pedestres. Ao invés de ser um projeto
feito visando os requisitos de pedestrian protection, abreviado como ped pro, o Futura é um caso de
pedestrian extermination.
Hoje tudo mudou. Se é ótimo para a vida, passou a ser ruim para a
criatividade, que é o que não faltava no Futura. Aliás, o Futura espetaria um
pedestre atropelando-o de ré também.
Note os "espetos" na dianteira |
O futuro tinha muita arte há meio século |
De qualquer ângulo, uma incrível criação |
Lanternas embutidas nas aletas, perfeito |
Saídas de escapamento dentro do pára-choque |
A pouca largura dos pneus é o que menos preocupava nesses monstros |
Além do desenho fantástico, a cor do carro foi sendo mudada com o tempo. Originalmente foi
acabado em branco azulado, obtido com tinta perolizada, coisa que só veríamos
no Brasil nos modistas Passat Dacon da década de 1980. Coisa ótima para moças,
que têm um brilho natural, mas estranho para um homem normal. Depois foi usada
uma cor verde claro com o mesmo tipo de acabamento. Nisso também Schmidt diz
ter se lembrado nas cores dos peixes das Bahamas, e no seu brilho.
Por dentro, o velocímetro no centro junto ao cubo do volante é um toque
inovador, bem como os piscas acionados por botões de apertar também no volante, quando a maioria era acionada por alavanca, como até hoje. Há controles e teclas encobertos por tampas de enrolar, que
escondem também porta-objetos e o rádio.
A capota e pára-brisa faziam o ar-condicionado trabalhar a pleno,
pois não havia vidro de abrir em movimento e nem tampouco escurecimento na parte
superior. Era tudo transparente, fazendo dos dois ocupantes usuários de sauna
em dias de sol, numa verdadeira estufa.
Mas quis o destino que se transformasse no carro-morcego, numa modificação que é tão de acordo com o propósito que mal dá para acreditar agora, quando se analisa o fato depois de adulto. Talvez nenhum outro carro tenha combinado tão bem com o personagem, e muito provavelmente é o carro de filme mais reconhecido de todos os tempos.
Há brinquedos, miniaturas e kits plásticos para montar do Futura, pois ele foi mesmo
de muito sucesso e divulgação na época, exatamente o que a Ford precisava, e
exatamente o que se precisa hoje, chamar a atenção para uma marca, trabalho
cada vez mais difícil e muitas vezes apelativo.
Kit da Revell, um clássico dos anos 1960 |
Miniatura na minha escala preferida, 1:43 |
Kit montado e pintado com a primeira cor do Futura |
Brinquedo "de fricção" numa cor que não existiu no carro |
Alguns poucos elementos do carro apareceram em modelos de
produção, como o Première e o Capri em 1956, cuja dianteira é semelhante no tratamento dos alojamentos dos faróis e lanternas, mas bastante diferente na grade e pára-choque, já que a altura do capô e a linha de cintura eram totalmente diversas daquela do Futura.
Lincoln Capri 1956 |
O Capri ao lado do Futura, para comparar |
O Futura circulou por alguns anos pelos salões de várias cidades americanas, além de aparecer em concessionárias para promover vendas, tanto antes quanto depois de sua participação em um filme de cinema. Algumas vezes havia o transporte por caminhão aberto, para poupar o carro e chamar atenção por onde passasse. Isso é chamado de road show, exposição ou caravana, itinerante.
À porta de uma concessionária Lincoln-Mercury |
Benson Ford e Bill Schmidt em mais uma ação promocional |
Circulando pelo Central Park, em New York |
Mas
o caminho para ser o Batmóvel pode ter nascido no um filme em que o Futura
apareceu, onde os atores Debbie Reynolds
e Glenn Ford utilizavam o carro. Na película
"It Started With a Kiss"
(Começou com um beijo) de 1959, o Futura era vermelho para fotografar melhor,
já que a pintura perolizada em cor clara
não ficava boa quando filmada, além de disfarçar muito os cromados
abundantes, fazendo o carro ter
aparência muito neutra, sem enriquecer as cenas com suas linhas. O carro aparece
bastante no filme, há muitas cenas com movimento, já que era totalmente operacional. Numa ótima cena na Espanha, a multidão cerca o carro e até abre o capô para ver o que havia no cofre. A cor vermelha foi uma pintura feita por ninguém menos que George Barris, que já deve aí ter
percebido que o carro era algo notável.
Abaixo, um video com várias partes onde o carro aparece, e a bela Debbie Reynolds (atualmente com 82 anos) ocupando o lugar que seria de Robin. Notem que é bem melhor ter Debbie Reynolds no Futura do que o Robin
no Batmóvel.
Charme em dose dupla, Miss Reynolds e o Futura |
Como
muita coisa utilizada na enorme indústria do cinema de Hollywood, o carro foi largado e quase esquecido, exceto por
algumas pessoas com o cérebro prodigioso. O especialista em modificações ou
personalizações (customização, numa
palavra americana aportuguesada há não muitos anos) George Barris comprou o
carro da Ford por preço simbólico de 1 (um) dólar. Tenho impressão de que Barris teve alguma
premonição, ou apenas disse a si mesmo que algo tão belo não poderia se
transformar numa oportunidade perdida.
Depois
de vários anos largado ao relento no pátio de sua oficina em North Hollywood,
Califórnia, surgiu a necessidade de um carro para o homem-morcego, do seriado
que estava por começar a ser filmado em 1966.
Durante os anos parado |
Por
sorte de Barris, outro customizador
famoso, Dean Jeffries, não aceitou o desafio de fazer um Batmóvel rapidamente,
como o estúdio queria, e entregou os pontos depois de já ter começado o
trabalho. George foi contatado e se pôs imediatamente a alterar o Futura, que
estava com ele há pelo menos cinco anos.
Bob Cushenberry trabalhava com Barris e
foi o artista principal da transformação do metal da carroceria, com a ajuda e
supervisão do dono da idéia, que fez o desenho do carro rapidamente. Artistas
pensam de uma forma muito diferente de pessoas normais, e Barris muito
provavelmente já havia estudado bastante o carro quando o pintou de vermelho e
nos tempos em que o carro esteve sem uso com ele.
Para promoções e eventos foram feitos mais cinco
Batmóveis, dessa vez em compósito de fibra de vidro, e o carro principal foi modificado também na mecânica, com motor de Galaxie do ano, 1966, para que tivesse
um bom funcionamento durante as filmagens.
Fato
interessante é Barris deve ter vislumbrado o
efeito que o seriado poderia ter, e assim solicitou e conseguiu patente do desenho do
Batmóvel em 18 de outubro de 1966. Teve ainda a
presença de espírito de manter o carro como seu, apenas alugando-o ao
estúdio. O que isso resultou depois de 47 anos é bastante dinheiro.
Parte do documento da patente de Barris |
O
Batmóvel original, fabricado em metal, foi vendido em leilão por US$ 4,62
milhões em janeiro de 2013. Barris pode viver muito mais tranqüilo agora com esse valor se bem cuidado. Os outros carros que existem são réplicas
fabricadas nos anos 1990 por Bob Butts (que nome...) a partir de uma das cinco
réplicas feitas em compósito de fibra de vidro pelo próprio George Barris. Mais interessante
ainda, usou uma dessas unidades do Batmóvel para voltar à condição
original de Futura, e apesar de não ter os cromados até nas últimas fotos
encontradas, de 2009, o carro é mesmo incrível. Não pertence mais a ele, mas há um serviço a ser feito.
O Batmóvel que se tornou Futura — Back to the Futura? |
Uma magnífica ressurreição |
Com os cromados deverá ficar quase perfeito |
A placa é dispensável e falta o logotipo no capô |
Escapamentos não estão no lugar original |
Esperemos
que Bob Butts ou o atual proprietário termine o serviço e conclua o acabamento do carro exatamente como
era em 1955. Hoje as técnicas e materiais para se fazer o carro com pintura e
acabamento dignos de shows é muito mais abundante, e mal podemos esperar para
que isso aconteça.
Este trabalho deveria, sim, ser patrocinado pela divisão Lincoln, que trabalha a pleno para fazer a marca se fortificar e ser uma concorrente mais ferrenha para a Cadillac. Não falta capacidade técnica à Ford, talvez apenas uma pessoa de visão ampla para ver o efeito que um ressurgimento do Futura pode gerar em publicidade.
Este trabalho deveria, sim, ser patrocinado pela divisão Lincoln, que trabalha a pleno para fazer a marca se fortificar e ser uma concorrente mais ferrenha para a Cadillac. Não falta capacidade técnica à Ford, talvez apenas uma pessoa de visão ampla para ver o efeito que um ressurgimento do Futura pode gerar em publicidade.
JJ
Fotos: imcdb.com; theinvisibleagent.wordpress.com; theavanti.com;
1966batmobile.com
JJ Parabéns pela matéria, não conhecia a estória do Batmovel.
ResponderExcluirAbraço
Marco Antônio
Marco Antonio.
ExcluirObrigado, fico feliz que tenha gostado.
O carro (original) é fantástico, e é claro que é bem melhor ter a Debbie Reynolds ao seu lado no Futura que o Robin no Batmóvel, mas a Doris Day ou a Lee Remick também seriam belas opções, à época. E é curioso como o cinema eternizou seus astros de tal maneira, que hoje, sempre que ouço falar em Debbie Reynolds ou Doris Day (a Lee já se foi), mesmo conhecendo as imagens delas com suas idades atuais (82 e 90 anos, respectivamente), o que me vem à mente são aquelas mulheres lindas e jovens de seus tempos de áureos O maldito tempo é uma desgraça!
ResponderExcluirCorreção: onde está escrito "de seus tempos de áureos", leia-se "de seus tempos áureos".
ExcluirMr. Car,
Excluiro saudoso Paulo Francis dizia: " Anatomia é destino".
Porreta esse Lincoln Futura..
ResponderExcluirMas bom mesmo, sempre foi a Mulher Gato!
Jorjão
Jorjão,
Excluirse esse blog fosse sobre super-heróis e vilões, eu já teria escrito sobre a Catwoman.
JJ
ResponderExcluirMuito legal essa matéria...
Fui fã dessa série Batman e nao sabia desse Futura.
Meu pai dizia, para nos, que o Batmóvel foi feito tendo como base um Lincoln.
Mas nao imaginava essa história todo por trás
Ainda tenho (bem guardada da infância) uma miniatura do Batmóvel em metal (Corgi Toys)
Bons tempos....
Anônimo,
Excluiressa miniatura é de metal, mais ou menos 1/43, com a serra que sai na dianteira, o fogo da turbina que entra e sai quando as rodas giram e outros detalhes ? Se for, tive uma, e destruí.
Tenho um hot wheels desse batmovel na minha mesa do trabalho. Marcou minha infância.
ResponderExcluirJJ, não sabia que o Futura tinha voltado ao seu estado de nascimento. Muito legal! Obrigado!
ResponderExcluirBelli,
Excluirnem eu !
Foi com uma réplica de plástico, mas voltou. Muito legal pesquisar para escrever, é o que sempre digo.
Meu pai brincava dizendo que o Batman usava as cuecas em cima da calça
ResponderExcluirCerta vez eu li uma explicação pra "cueca sobre calça" num especial dos Novos Titãs... que nos anos 30 os trapezistas eram tidos como os homens mais audazes e corajosos do mundo e usavam trajes no mesmo estilo, daí o Batman e o Super-Homem terem o mesmo tipo de traje.
Muitos super-heróis criados no mesmo período faziam uso desse estilo em seus trajes.
Leonardo Mendes,
Excluirnão sabia disso, boa explicação, obrigado.
JJ,
ResponderExcluirEsses seus posts estão formando uma biblioteca fantástica!
Me lembro como se fosse ontem o dia em que ganhei um Batmovel de aniversário. Fiquei maluco.
Valeu! Abraço.
Paulo,
ExcluirObrigado. Eu também lembro de meu primeiro Batmóvel de brinquedo, uma miniatura Corgi que é reportada como a mais fabricada de todos os tempos, mais de 5 milhões de unidades.