Hipnoticamente lindo! |
Depois das vitórias em seguida obtidas em Le Mans com o GT40, a Ford sabia que se quisesse continuar vencendo deveria fazer outro carro com todas as lições aprendidas e algo mais, já que a concorrência havia sido provocada a níveis nunca antes imaginados, com uma marca mundana dominando as de sangue azul no mais importante palco das corridas de longa duração. Era mais uma prova que boa engenharia e verbas suficientes resolvem qualquer problema.
Antes mesmo de terminarem os
sucessos do GT40, que ocorreram de 1966 a 1969 (do ano em que eu nasci até o
ano em que o homem pisou na Lua), o P68 ou F3L
começou a ser trabalhado, devido às alterações que a FIA implementou nas
regras para corridas de longa distância, valendo a partir de janeiro de 1968, limitando para o Grupo 6 os motores de
origem de competição de até 3 litros de cilindrada. Nesse grupo ficariam os
protótipos. O Grupo 4, chamado de GT, podia ir até 5 litros, para carros com um
mínimo de 50 unidades produzidas em um ano e motor com base em unidade de produção e
venda livres, onde estava o GT40 original. Por isso é que em 1968 e 1969 as
vitórias do GT40 foram com o modelo mais antigo, o clássico e belo Mk I, pois
John Wyer, um dos criadores do carro, assumiu a tarefa de trabalhá-lo em sua empresa, para
continuar os sucessos da Ford, mas sem o apoio direto desta.
O nome P68 vem de “protótipo”
e o ano em que o carro correria pela primeira vez, 1968. Já F3L é apenas “Ford
3 litros”, e a designação também vale.
Conforme decidido na matriz,
a Ford resolveu abandonar o programa corporativamente, já que o foco principal era
investir na Fórmula 1 através do motor Cosworth, mas, no Reino Unido, a empresa Alan Mann
Racing conseguiu um acordo com a Ford britânica para usar o novo motor Cosworth
DFV V-8 a 90°, todo em alumínio, ligado ao transeixo (câmbio + diferencial)
Hewland DG300 de cinco marchas, além de poder utilizar o nome Ford no carro. Um
patrocínio negociado por Walter Hayes, personagem importantíssimo do qual já falamos aqui, e que deu à equipe as verbas necessárias até certo ponto.
As modificações no GT40 ao
longo do tempo fizeram com que o P68 já nascesse com formas mais arredondadas,
alongadas e lisas, o que se sabia ser melhor para as altas velocidades que se
precisa atingir não só em Le Mans, mas notadamente lá, quando a reta de Hunaudières (também chamada de reta de Mulsanne), que leva à curva de Mulsanne, não tinha
as duas chicanes de hoje, e eram mais de cinco
quilômetros de pé no fundo.
Apenas nessa reta, com alguns km/h a menos que os concorrentes, ao final de um dia inteiro significavam algumas voltas de desvantagem. Como curiosidade, o recorde de velocidade máxima atingida em Le Mans pertence ao WM 88 com motor Peugeot V-6 biturbo, que atingiu 405 km/h em 1988. Esse número não é preciso, algumas fontes dizem 407 km/h.
Len Bailey foi contratado para a tarefa de fazer o P68 aerodinamicamente eficiente, já que ele tinha alguns anos de experiência
com o GT40, sendo o principal responsável pelas alterações para melhorar o fluxo de ar no carro nas sucessivas versões vitoriosas em Le Mans, e o carro novo já iria ser definido com
muitas soluções implementadas.
Fotos do modelo 1:6 em túnel de vento |
O protótipo na capa da revista mais antiga do mundo |
Outra vista da primeira unidade. Perfil liso como um bagre ensaboado |
O desenho geral é puríssimo, limpo, maravilhoso para a
maioria, mas o comportamento em velocidades altas era muito criticado por todos
que o dirigiam. Instabilidade direcional era a reclamação principal, mesmo com
a parte traseira alongada para gerar o mínimo de turbulência, e com um valor de
downforce de 272 kgf, conforme divulgado pela equipe. Os dutos NACA
para admissão de ar do motor, logo atrás dos vidros das portas, e duas aberturas quase na extremidade traseira superior se incumbiam
de fazer entrar ar para o cofre, com a saída sendo no final da carroceria, em
zona de baixa pressão para sugar o ar quente para fora e evitar que houvesse um
efeito de frenagem aerodinâmica muito grande.
Saídas de ar quente na traseira |
Mas muitos problemas afligiram o carro, e das seis
corridas em que participou não terminou nenhuma, amaldiçoado por problemas
elétricos e mecânicos, em várias delas nem ao mesmo largando, por problemas nas
classificações. Havia de tudo. Motor quebrado, diferencial estourado, coxim de
motor rompido, chicotes elétricos em curto por entrada de água, freios que vazavam fluido, absurdo atrás de absurdo para um nome importante a zelar. Um tremendo
furo n’água. Isso tudo em 1968.
Pelos regulamentos, carros de habitáculo aberto podem ter altura mínima menor, mesmo que tivessem uma cobertura temporária, e Bailey seguiu essa regra, fazendo
porém, apenas uma pequena abertura na parte superior que era facilmente removível. Uma interpretação de
regras bastante no estilo do “levar vantagem”. Com isso, o carro não era
confortável, pelo pouco espaço para a cabeça e o piloto Frank Gardner, contratado para os testes de desenvolvimento e para as corridas, reclamou
bastante.
Na foto acima e abaixo, nota-se a pequena janela removível no teto |
Simplicidade para trabalho, nada de exibição |
A forma e a área frontal
favoreciam o baixo arrasto, com Cx 0,27 e área frontal de apenas 1,3 m². Chegava a 350 km/h
com 430 cv a 9.000 rpm e 37,3 m·kgf a 7.000 rpm. O motor era alterado em
relação aos de grande-prêmio, pois a durabilidade tinha que ser muito maior. Ao
invés de uns 500 km de treinos classificatórios e corrida na F-1, precisava
durar no mínimo 3.500 km para provas longas.
Mesmo com tudo que já se sabia e o trabalho em túnel de vento, a força para baixo ficava praticamente só na dianteira. Pilotos do naipe de John Surtess e Jack Brabham o dirigiram, e se recusaram a correr, pois o carro era mesmo muito instável nessa primeira configuração, sem nenhuma aleta, spoiler ou aerofólio. O que se descobriu posteriormente é que quase toda força aerodinâmica para baixo (downforce) atuava na dianteira, com a bela traseira, lisa, sem praticamente nada de força.
O que se decidiu foi "estragar" a forma geral, por isso o nome spoiler (estragador), para melhorar a segurança com melhor dirigibilidade. Adicionou-se primeiramente pequenas aletas abaixo dos faróis, como o Bob Sharp fez em um DKW e um defletor na borda traseira, para melhorar a difícil situação de um carro
que anda muito mas não se mantém comportado em altas velocidades, uma situação
ruim até mesmo em provas curtas, que dirá horas e mais horas assim.
Melhorou, mas só começou a ficar bom quando um defletor grande foi colocado na traseira, como Ferrari e Porsche, entre outras marcas, já sabiam.
Defletores na dianteira, outro bem pequeno na traseira |
Com defletor grande na traseira |
Tomada de ar na frente muito próxima do solo, curvas maravilhosas |
Seu chassis era um monobloco de
alumínio, reforçado com peças de aço onde fosse necessário, como fixações de
suspensões e do trem de força. Bem tradicional para o período. A fixação
entre os componentes era feita por rebite e cola. Os elementos laterais, saliências, abrigavam os tanques, um de cada lado, total de 122 litros. A massa total
com tanques cheios, pronto para rodar, era de apenas
670 kg.
O trem de força tinha a mesma função
estrutural inaugurada no Lotus 49, com o motor fazendo parte da estrutura do
carro. Ele é parafusado no monobloco e as suspensões traseiras são parafusadas
no motor, mas aqui com travessas de aço de reforço.
O Cosworth e a parede de fogo onde ele é fixado |
Motor, transeixo, escapamento; barra de reforço entre os amortecedores |
Dois desenhos em corte com os componentes principais |
Uma arte incrível de Peter Hutton |
Especulava-se que no futuro houvesse
uma utilização de tração nas quatro rodas nesse carro, pois as mangas de eixo
dianteiras têm dimensões que fazem isso ser possível.
Mas isso nem foi ao menos tentado, já que não
houve tempo. Tanto na dianteira quanto na traseira as suspensões são muito
similares aos F-1, com o tradicional duplo braço em forma de “A” na frente, com
a traseira com um triângulo inferior invertido, com dois pontos de fixação na manga de eixo e um na estrutura, braço simples superior, molas montadas ao redor dos amortecedores(coil-over) e barras estabilizadoras, numa clara tendência a fazer um projeto o mais
próximo possível da categoria da topo, inclusive com o elemento-chave, motor e
câmbio, sendo o mesmo utilizado nas duas categorias.
Braço inferior da suspensão invertido, que em inglês é chamado de "reversed wishbone" |
Mas a falta de tempo de testes e
melhorias, o desenvolvimento normal de qualquer carro, não só de corrida,
custaria muito caro à toda a equipe e à Ford.
De cara, na prova de Brands Hatch, a
BOAC 500, o carro foi classificado na segunda posição para a largada, para isso
ajudando muito o piloto, que era
nada
menos que Bruce McLaren, que colocou o P68 entre dois Porsches 904 da equipe de
fábrica.
O Sr. McLaren ao comando, na primeira prova; pena ter durado pouco |
Nessa estréia, em 7 de abril de 1968, um dos carros deveria ter Jim
Clark e Graham Hill no comando. O contrato de ambos era com a Lotus na Fórmula
1, e a Firestone conseguira adicionar uma cláusula que os impedia de usar outra
marca de pneu em corridas. Como o P68 usava Goodyear, não foi possível
concretizar a intenção. Os dois então aceitaram um convite para uma prova de Fórmula 2 em
Hockenheim, na Alemanha. Ironia do
destino, o carro difícil de dirigir não foi o que Clark pilotaria naquele
domingo, e um acidente ainda sem explicação certeira colocaria fim à vida
terrena do escocês duas vezes campeão do mundo de Fórmula 1, e um dos grandes
nomes da arte e ciência da pilotagem.
No mínimo um arrepio na espinha senti ao descobrir esse fato, pesquisando para o texto, alguns dias depois de decorridos vinte anos da morte de Senna e quando também se falou diversas vezes de Clark, nas inevitáveis comparações.
Infelizmente, o melhor resultado do F3L foi a pole
position na 1000 Quilômetros de Spa-Francorchamps, na Bélgica. Mike Spence conseguiu a o
melhor tempo, mostrando que o carro tinha potencial. Com essa façanha, batia
até mesmo o GT40 da equipe de John Wyer, a mesma que venceu em Le Mans no mesmo
ano. Mais impressionante ainda, a diferença de tempo foi de cerca de 4
segundos, e o piloto do GT40 segundo colocado era Jacky Ickx, não de pouca habilidade (foi seis vezes vencedor em Le Mans). Na corrida, nada
de proveito, com o F3L abandonando depois de apenas uma volta completa.
P69
Para o ano seguinte, resolveu-se
radicalizar, construindo uma nova carroceria, a ponto de se chamar o carro de
P69.
Todos os painéis externos de
carroceria eram novos, alterando completamente o desenho do belo P68. Ficou
mais baixo, mais curto e mais largo. Era outro carro, sem quase nada da beleza de capa de revista do P68. A mecânica não tinha nada novo, sendo
idêntica à do anterior.
A real novidade era o sistema de
aerofólios móveis, enormes e altos, suspensos por delgados suportes e
aparentemente frágeis, seguindo a tendência da F-1. Eram interconectados,
acionados hidraulicamente e parcialmente automáticos, alterando o ângulo de incidência de acordo com a velocidade. Para frenagens de emergência,
o piloto podia alterar o ângulo manualmente, gerando o máximo de arrasto.
Na primeira corrida de 1969
os dois carros estavam inscritos, o P68 e o P69. Jack Brabham iria pilotar o
carro do ano anterior, mas já nos primeiros testes a instabilidade o aborreceu
a tal ponto que um aerofólio traseiro igual ao usado no P69 foi colocado no
P68, atuando exatamente sobre as suspensões traseiras, uma criação do gênio americano Jim Hall para seu Chaparral. Esse P68 foi pilotado
por Dennis Hulme e Frank Gardner, e apesar da estabilidade melhorar bastante,
mais uma vez problemas de motor levaram-no a abandonar.
Aerofólio enorme, a última tentativa de sucesso |
Como na Fórmula 1 haviam ocorrido acidentes devido a
quebra desse tipo de aerofólio,
a FIA
resolveu adotar a mesma proibição para todas as categorias, e o P69 não se
beneficiou desses apêndices. Com todos os problemas que
impediram o carro de andar distâncias longas, fica evidente que não haveria
como melhorar a estabilidade, já que é preciso andar para testar e desenvolver. Somando esse
problema básico com o fato de que dinheiro não estava sobrando para a empresa de Alan
Mann, resolveu-se terminar com os trabalhos, morrendo assim um projeto que
deveria herdar os sucessos do GT40.
Um
final melancólico para um carro que merecia outra sorte.
O P69 é visivelmente mais curto |
Não dá mesmo para acreditar nesses suportes de aerofólio |
JJ
Fotos: fordgtforum; peterhuttonillustrator.com; burgolracing.ch; autowebalta.ru; tech-racingcars.eu; ultimatecarpage.com; gtplanet.com
Incrive é não termos competições muti marcas com carros nacionais, palpaveis para a maioria dos consumidores... seria a melhor forma de evoluirmos nossos carros e uma tremenda vitrine para o esporte no brasil, e para que as marcas mostrem o que elas realmente tem de melhor e não qual carro o seu vizinho vai gostar mais.
ResponderExcluirOu um carro que é melhor que "conseguiu" ser melhor que Mercedes, BMW e outras gigantes com anos de historia apenas com um comercial....
Abçs
Thallys Augusto
Antigamente (anos 80) tinha o "Campeonato de Marcas". O Passat levava todas. Não sei por que acabou, talvez o JJ possa explicar.
ExcluirAcabou porque as outras fábricas desistiram de competir com o melhor carro do sistema solar, quiçá da Galáxia e resolveram disputar provas de autorama que saía bem mais em conta...
ExcluirFantástico texto para um carro maravilhoso. Pena que o maravilhoso ficou apenas no visual.
ResponderExcluirÉ muito estranho que o sucessor do GT-40 tenha sofrido com falhas de qualidade tão primárias, falhas amadoras até. Ainda mais se olhar o projeto do carro, aparentemente foi muito bem desenhado.
Ao que tudo indica, justamente o desenho que era a maior virtude do carro foi justamente o causador dos problemas de aerodinâmica. E se não me engano, a Ford havia cortado a verba para o departamento de competições naquele período, confere JJ?
Excelente JJ, este é mesmo um dos mais lindos carros de corrida já feitos.
ResponderExcluirabs
Ora.
ResponderExcluirParece o caro do Corredor X!
Interessante.
PM
Lembra o Bianco.
ResponderExcluirAcho o Bianco bem mais harmônico e bonito
ExcluirSempre achei o P68 um dos mais lindos SP, quando visto de frente, 3/4 de frente (primeira foto do topico) e/ou visto num plano frontal/superior (foto com numeral 17). Já o perfil (vistal lateral) sempre me pareceu meio esquisito, especialmente com a traseira mais longa.
ResponderExcluirEstranho mesmo (para o padrão de conhecimento da epoca) era um carro de linhas tão bonitas e limpas ser tão ruim de equilíbrio aerodinâmico, a ponto de não ter tido sua dirigibilidade plenamente corrigida mesmo com aqueles aerofólios enormes.