Carro de avenida? |
Nem todos os automóveis nasceram para desfilar na avenida. Claro que quase todos ficam muito bem no asfalto e tem suas melhores características trazidas à tona quando suas quatro rodas encontram-se com o solo em ruas, estradas e avenidas.
As cidades têm o seu
tecido urbano desenhado para acomodar os carros, vida moderna e carros nas ruas
são conceitos simbióticos. Por que então tentar usar os automóveis de outra
maneira? Quem teve a idéia de tirar os carros da avenida?
Entramos então em um
território diferente, onde o automóvel não tem função de levar alguém ao
trabalho ou à escola. Em vez de ir buscar as compras no supermercado, neste
ambiente os carros são apenas o instrumento para ir buscar aventura.
Retiremo-lo da avenida e
vamos então para o fora-de-estrada, para encontrar aventura e emoção próximo à
natureza.
Longe do asfalto |
Em um domingo cedo,
muito cedo para o padrão boêmio da cidade de São Paulo após um sábado animado de verão, partimos em carros comuns, de avenida, para o ponto de encontro. No caminho encontrávamos o pessoal saindo das
baladas, entretanto à nossa espera estava uma experiência saindo do lugar-comum.
A trilha do Buraco do
Camel fica na região de Caucaia do Alto, entre as rodovias BR-116 Régis
Bittencourt e SP-270 Raposo Tavares, e ela é apenas uma parte dos quase 100 quilômetros
conhecidos como "Trilha do Verde", que circunda a reserva do Morro
Grande, região de densa mata atlântica.
Para chegar lá foi preparado
um comboio que se reuniu em um posto de gasolina na BR-116, troquei de carruagem
e passei para o banco do passageiro de um Lada Niva branco, dirigido por um
amigo, que havia me convidado para desistir do domingo na frente da TV para
encarar coisas bem mais bizarras do que os programas dominicais.
A Trilha do Verde
nasceu através do fechamento de uma reserva da Sabesp. Em certo momento funcionários tiveram que
se embrenhar na mata para demarcar todo território pertencente à empresa. Foi
aí que, a princípio, surgiu o “Picadão”, apelido que foi dado por funcionários e moradores
do Morro Grande. A trilha é um circuito dividido em quatro partes, sendo
separadas em trechos urbanos, totalizando aproximadamente 100 km de pura emoção
e adrenalina. É considerada uma das mais completas pelos amantes do fora-de-estrada, por ter todos os tipos de obstáculos e terrenos como, lama, terra,
atoleiros, subidas e descidas muito íngremes, onde se requer muita habilidade
dos que arriscam a entrar nela.
Em nosso comboio tínhamos
a fina arte do off-road, jipeiros experientes traziam os seus bólidos para
fugir do asfalto naquela manhã de domingo. Dois Toyota Bandeirante fechados,
sendo um de chassi curto e o outro de chassi longo, e três Jeep Ford Willys,
fechavam o grupo.
Os 4x4 e sua dedicação à aventura |
A Trilha do Verde já
foi palco de inúmeras provas e etapas de campeonatos ligados ao Jeep Clube do
Brasil, Jeep Clube de Cotia, Jeep Clube da Granja Viana, Confederação de
Motociclismo, entre outros, como uma das etapas da Copa Sudeste de Enduro de
Jeep. Também já passaram pela trilha nomes famosos do mundo dos esportes a
motor como o americano Gene Fireball e o campeão do Paris-Dacar,
categoria motocicletas até 400 cm³, o paulista de São Roque, Juca Bala.
Fatos curiosos também
serviram para dar mais emoção na história dessa trilha, como, por exemplo, o
nome dado a um dos trechos mais difíceis, que é o “Buraco do Camel”. Em
1985, a dupla brasileira que participou do célebre Camel Trophy de Bornéu
(ganhando naquela competição o reconhecimento como “Team Spirit Award"), tinha disponível
para treino o então pouco conhecido Land Rover e aquele trecho entre as rodovias paulistas, onde
vieram testar o novo 4x4, quando recebeu então o gracioso batismo como referência à
aventura patrocinada pela marca de cigarros.
Primeira edição do Camel Trophy (antes dos Land Rover) |
Quando estávamos prontos
para sair, algo como sete e meia da manhã, o líder do grupo chamou o pessoal para uma
conversa ali mesmo no posto com o objetivo de sentir a moral do grupo, conferir
equipamentos, combustível, sortimento de água e comida.
Explicou também a
grande dificuldade da trilha à nossa espera e que, diferentemente dos passeios
na avenida, não teríamos pontos de apoio, shopping centers ou balcões de
informação de como sair dali. Então soltou a bomba... Para que o domingo fosse
mais emocionante iríamos fazer o percurso do Buraco do Camel, o trecho mais
difícil da trilha e passaríamos por este percurso ao contrário, subindo onde normalmente
se deveria descer.
O curioso foi apreciar
a comemoração dos jipeiros no lugar da esperada ansiedade ou espanto pelo
repentino fato complicador que havia sido apresentado. Entramos nos carros e
percorremos devagar os quilômetros que nos separavam da entrada do tal “Buraco”.
Às margens da trilha é
possível também encontrar construções antigas como o Museu do Padre Inácio e
a estação de trem de Caucaia do Alto, além da barragem da Sabesp no Morro
Grande e tantas outras maravilhas que a sedutora natureza do local proporciona.
O líder e mais
experiente jipeiro do grupo foi à frente, de carona, no carro puxador, que era o Bandeirante
longo. Atrás, em um Willys, foi o segundo no comando e também experiente
aventureiro, como “vassoura”, que tem a função de conferir se todos os carros do
comboio estão juntos e que ninguém ficou para trás.
Os atoleiros que eram
tranqüilos e divertidos no começo do caminho começaram a ficar mais profundos e
os “facões” abertos pelas rodas dos 4x4 que passaram por ali antes de nós faziam com que o diferencial dos carros encostassem no solo. Ainda no início da aventura o líder
parou todos e uma rápida reunião foi feita para avaliar as condições da trilha naquele
dia. Alguém recomendou a colocação de correntes nos pneus, pois havia chovido bastante
nos dias anteriores. Bravo e confiante, o comboio tomou a decisão de seguir
sem as correntes, o que constatamos pouco depois, já na primeira descida íngreme, ter sido uma decisão errada.
Nos declives os 4x4, mesmo com a
primeira marcha reduzida engatada,deslizavam perigosamente no barro, e os gritos de
“não freia, não freia” tentavam evitar que os motoristas, que encaravam os barrancos
um a um separadamente, fizessem as coisas ficar ainda pior.
Um amassado no teto da Bandeirante de chassi curto, que bateu em uma árvore na lateral do
barranco depois de um leve acender das luzes de freio, foi o saldo da primeira descida, mas todos chegaram bem lá embaixo
e como a minha adrenalina já estava nas alturas, parei e fiquei contemplando a
natureza por um momento — quando meu amigo chegou e gritou, "sobe no Niva, daqui a pouco a
emoção vai começar!"
Muita lama |
Trechos de subidas e
descidas muito lisas e escorregadias vinham à frente uma atrás da outra, e como nos cruzamentos das avenidas na cidade, era necessário muita atenção para sobreviver a
todas. Eu passava um bom tempo fora do
carro, ajudando aos outros encontrar o melhor trecho para passar, alguns se
empolgavam e aceleravam demais e aí eu acabava recebendo uma benzedura do mais
puro barro da Trilha do Verde...
Atoleiros e poças fundas de lama capazes de engolir os carros até o capô exigiam perícia e a velocidade certa para serem vencidos. Diferentemente dos trechos com facões, a ajuda externa nestes casos não fazia muita diferença, e a cada passagem bem-sucedida, uma nova comemoração.
Ao meio-dia, ao paramos
para fazer um lanche, todos comentavam animados sobre algum lance específico,
dividiam emoções, checavam as condições dos carros e a quantidade de
combustível. As últimas quatro horas tiveram agitação equivalente a uns 10 anos de programas
dominicais. Lembrei de alguns conhecidos que deveriam estar acordando aquela
hora e pensando se o jogo do time preferido iria passar na TV.
Como estávamos no
sentido contrário ao tradicional, chegamos à linha do trem que cruza o local pela parte de baixo e tínhamos
que passá-la com os 4x4 para depois encarar uma bela subidona. Um esqueleto de
cavalo atropelado e umas casinhas no meio do morro eram um pequeno sinal de
civilização naquele pedaço.
Chamada também de "2ª
ao Contrário", descobrimos que transpor o “Buraco do Camelo” do modo não convencional não era
tarefa simples. Esta é a segunda parte da
Trilha do Verde e mesmo quando feita no sentido “normal” é um belo desafio, quase radical, e descobri naquele dia
que por isso mesmo vale muito a pena.
Dois dos Fords
chegaram a capotar na trilha, mas foram destombados rapidamente pelos demais
aventureiros. Um deles entretanto teve que sofrer um rápido reparo, pois a
bateria havia se deslocado quebrando um dos conectores quando estava de cabeça para
baixo. Com criatividade e improviso demos um “jeito” e o comboio prosseguiu
pelos atoleiros, que de tão grandes invocam lendas como o de um Land Rover
que estaria enterrado por ali. Como os atoleiros ocupam muitas vezes toda
largura da trilha, mesmo as motos têm que passar por dentro deles e dizem que a
lenda surgiu justamente quando um motociclista passou por cima do tal carro que teria sido abandonado
por ter ficado imerso, com o conjunto mecânico danificado.
Vencidos todos os
desafios até então, chegamos a uma área que mais parecia uma verdadeira piscina
de barro. Era ali que a inversão de sentido de percurso encontrava seu apogeu — ou
sua ruína — dependendo apenas do ponto de vista. O grande atoleiro antecedia a
subida mais íngreme da trilha, quando o trajeto normal pede que você desça o trecho íngreme,
o atoleiro o espera lá em baixo, não é exatamente fácil, mas a força da
gravidade e a inércia do veículo estão ao seu lado ajudando. Subindo a ladeira
a coisa muda. Sem espaço para ganhar aceleração, o 4x4 tem que vencer o
atoleiro e encarar o barranco íngreme na seqüência, sem espaço para embalar. Mesmo que se consiga sair do barro da parte baixa em velocidade, o que alguns participantes do comboio naquele
dia conseguiram, é muito difícil manter
a tração a partir do meio da ladeira, inclinada e bem íngreme, com muita, mas muita
erosão.
O coração do "Buraco" (quando se desce no sentido normal) |
E foi ali que o nosso
Niva quebrou. Depois de várias tentativas de vencer o atoleiro a primeira marcha parou de entrar, arriscamos de segunda mas a caixa de mudanças travou. Tentamos ser os primeiros a subir, mas tivemos que colocar
o jipe russo de lado e deixar passar os outros. Escolhemos o Bandeirante de chassi longo
como o próximo a tentar, apesar de ser o mais pesado da turma ele tinha força suficiente
para puxar o próximo se preciso. E foi. O Bandeirante até que passou pelo
íngreme barranco com certa facilidade, em duas tentativas estava lá em cima. Um
Willys vinha depois, mas só subiu puxado por uma longa corda presa ao
Bandeirante, que o ajudou morro acima. Depois de tanto esforço alguém notou que era tarde, muito tarde da noite. E o líder
do comboio chamou o pessoal para uma “conversa”.
Avaliando a situação, a
solução que surgiu foi dormir nos carros e aguardar a luz do dia para
continuar, com a cabeça um pouco mais relaxada e com iluminação natural, teríamos
menos risco de fazer algo errado ou ter um acidente. Checamos os suprimentos
básicos e concordamos todos em ficar.
Fizemos uma fogueira
para espantar algum animal intrometido e reclinei o banco do Niva. Com o
corpo molhado pelo barro o sono não veio, mas em algumas horas o raiar da segunda-feira
motivou todos a fazer um café e seguir viagem. Pensei por um momento que se tudo fosse rápido, ainda iria trabalhar naquele dia. Porém pela primeira vez na minha vida eu
perderia um dia de trabalho por ter passado a noite fora de casa. Longe da
avenida.
Um pneu limpo? Claro, jogou todo o barro longe |
Aproveitamos a luz do dia
para colocar mãos à obra e cavar um pouco mais a ladeira, tirando o barro
molhado da parte de cima. Depois de uma hora de trabalho os jipes começaram a
subir mais facilmente o trecho.
O Niva, que é muito
leve, foi rebocado para cima enquanto acelerava em sua única marcha disponível. Terminamos o trajeto
voltando para o asfalto e meu colega decidiu chamar uma plataforma para levar o
carro a partir dali. Embarquei então em um dos Willys e peguei uma
carona para a volta.
O Camel é uma trilha
exaustiva, difícil e perigosa, e assim surgem as forças que mantêm vivas o espírito
entusiasta aventureiro, coleguismo, interesse mútuo, colaboração e uma coisa
que aprendi com a turma de jipeiros, e que serve para toda a vida: o reconhecimento
sério e responsável dos pontos fortes e dos pontos fracos das máquinas e
pessoas. Só assim se obtém o sucesso.
Facões abertos na trilha |
Foi uma bela bagunça,
houve momentos de risco e tensão, acidentes e carros quebrados, mas é
disso tudo mesmo que é feito o mundo aventureiro.
Quer sossego, ligue a
TV e fique vendo o que acontece na avenida.
FM
Fotos: Equipe Traz na
Mão, 4X4 Brasil, acunha.adm.br, Brasil Fora de Estrada
Essas Bandeirante são realmente fantásticas. Certa vez, visitando a fazenda de um amigo da família, fomos à casa dele, que ele construiu no topo de uma das montanhas da propriedade, e era verão com muitas chuvas. Os carros já teriam dificuldade de subir por aquela estrada minúscula seca, com ribanceira para os dois lados e uma inclinação enorme, além disso, cheia de curvas. Resultado: colocamos todo mundo em cima da caçamba de madeira da Toyota da fazenda e subiu-se em reduzida, tranquilamente, umas 12 pessoas atrás, carregando panelas de feijoada, arroz, couve, etc, pra fazer uma pequena festa lá em cima.
ResponderExcluirDecididamente, não é a minha praia. Eu até gostaria de ter um Toyota Bandeirante modernizado (ar, direção, freio a disco, um isolamento acústico caprichado), mas não para chafurdar na lama. Não pelo menos neste nível de lama mostrado neste post.
ResponderExcluirMuito bom o post! Principalmente as passagens com o Lada. Trabalhei com quatro(!) e sei como é o comportamento do bichinho! Não é a toa que é considerado o "Land Rover pobre"
ResponderExcluirAbcs
Ótimo relato.
ResponderExcluirPorque não só de asfalto vive o autoentusiasta!
Muito empolgante! Me faz lembrar do Bandeirantes modificado de um amigo meu.
ResponderExcluirFelipe, excelente experiência, não ?
ResponderExcluirMuito bom ver um pouco do mundo 4x4 por aqui !!
LEgal mesmo! Ótimo relato, que aventura! O difícil seria explicar pra esposa... rs
ResponderExcluirMuito bacana o texto, Felipe! E que venham outros.
ResponderExcluirMas, definitivamente, não é a minha praia, ou melhor, o meu mato.
Prefiro curtir uma estrada asfaltada ou então uma trilha no mato, mas a pé.
Abraços.
Muito bom o relato!!! Não compartilho o amor pela trilha, porém. Amo dirigir em estradas de terra, talvez até mais que no asfalto, mas gosto de estrada boa, com poucas pedras, sinuosa onde possamos dar aquelas escorregadinhas inocentes sem ninguém para atrapalhar. Cresci na zona rural então pegar barro era coisa do dia a dia... várias vezes acumulava terra embaixo da carteira da escola pois eu tinha empurrado o carro para chegar à aula hahaha. Então atoleiro não é sinônimo de diversão para mim. Abração!!
ResponderExcluirNão postou uma foto do Niva? Pecado.
ResponderExcluirRenault o que esta esperando para trazer o Lada 4x4, ex Niva cujo nome foi "roubado" pela GM, de volta ao Brasil.
Ah... que saudades do meu bom e velho Bandeirantes longo, que ficou pela Argentina quando, em viagem por lá, recebi uma oferta irrecusável (com minha mãe enviando os documentos via FedEx para eu entregar ao comprador).
ResponderExcluirEra feia, barulhenta, desconfortável (embora tivesse ar e direção hidráulica, e a troca por bancos da D20 - individuais - tenham ajudado), instável... mas como eu gostava daquela força para superar qualquer obstáculo.
Boas trilhas e bons papos nas reuniões do Clube do Jipe - RJ, às quintas-feiras, junto ao Quebra-Mar da Barra...
Leo-RJ
Muito bom conferir um texto sobre as aventuras proporcionadas pelo 4x4. As experiências de vida e amizades que o meu 4x4 já me proporcionaram são únicas e fazem valer a pena cada real dedicado nele. Uma pena que, nos últimos anos os veículos desse tipo (4x4 com caixa de redução) tenham ficado cada vez mais caros e restritos, sendo preteridos pelos SUV de calçada (a única coisa radical que um dono de Ecosport pode fazer é subir uma calçada). No final, também somos autoentusiastas, mas com uma preferência por areia, duna, lama e água... rsss
ResponderExcluirSempre que vou pra casa da minha namorada, em Cubatão, passo por uma revenda de utilitários que está em processo de fechamento (mas nunca fecha, isso já tem uns 5 anos) e bem na frente, há algumas semanas, está exposto um Bandeirante cabine dupla branco.
ResponderExcluirNem sabia que essa versão existia, fiquei até surpreso quando vi.
Interessante é a divisão que se criou entre os "Bandeiranteiros" a respeito da motorização... uns preferem os motores Mercedes, outros os motores Toyota.
Ola felipe,
ResponderExcluirÉ otimo ver os jipes em ação por aqui. Mas ha um porem, nao se usa corrente em pneus para a pratica de offroad, ela destroi completamente a trilha. Corrente eh para a neve e só.
Abs
Olá Leonardo,
ResponderExcluirPermita-me discordar... as correntes não fazem tanta diferença em situações extremas como no Buraco do Camel... imagine jipes com pneus Super Swampers 35" cavando a lama... não muita diferença de um jipe com correntes...
Abraço!
Celsão
Recomendo uma participação no 18 Jipe Show de Sergipe, no 16 foram 300 off roaders brincando nas dunas do Abais e Praia do Saco, litoral sul Sergipano. Acontece sempre no mês de outubro. Programa Imperdivel para qualquer Auto Entusiasma. Mais informações em http://www.jipeclubese.com.br
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