O Zé Dias tinha comprado um Triumph TR6, ano 1972, que, lembro bem, lhe tinha saído mais barato que o 914 me custara. Naquele tempo, ao redor de 1981, o pessoal fugia dos inglesinhos, já que sua fama era de encrenca e, pior, difíceis de se resolver. Há que ficar claro aos mais novos que a dificuldade em comprar peças era de toda ordem. Não era só custo financeiro. O custo maior era o sacal. Não havia essa abençoada internet, então, como é que você descobria quem raios por esses continentes afora tinha a tal peça? Qual o preço? Mandar dinheiro pra fora, importar, era uma burocracia de matar, e por aí ia a chateação sem fim. Não havia por onde começar a busca. Seria preciso o célebre Inspetor Maigret para achar o fio da meada da investigação. Hoje vem peça de Triumph da Austrália. Isso era inimaginável, inimaginável. Muito da valorização dos carros antigos se deve à abençoada internet.
Triumph TR6 |
Imagine a demora e a insegurança nesse rolo todo? Então você acabava caindo nas mãos de um iluminado, um ente superior, na maioria uns mal-humorados dos infernos, pior que funcionário público com azia, que se aproveitava da sua situação, que ele bem sabia quão dependente era. E assim você lá chegava, piando fino feito um pintinho de granja, pedindo encarecidamente que ele arranjasse um tempinho para lhe importar aquela maldita peça que lhe faltava para seu amado esportivo andar. “Meu grande Buda, lamento pelo seu desconforto estomacal e muito me alegra presenciá-lo expelir sua flatulência com tanto vigor, mas seria possível me trazer esta rebimboca inglesa?”
Em resposta ele te esfolava no espeto, demorava um século, mas acabava trazendo a diaba da peça.
A grande diferença da marca Porsche perante as outras aqui no Brasil foi ter a Dacon como sua representante. A Dacon, que ficava onde hoje é um showroom da VW, em São Paulo, era uma empresa séria e eficiente, e prestava boa assistência técnica. Não era barata, mas ao menos tinha praticamente tudo à pronta entrega e seus mecânicos eram plenamente capacitados. Isso se refletiu no nome da marca aqui no Brasil, além de valorizar seus carros, já que dono de Porsche, se tivesse a grana, não ficava a pé.
Painel do TR6. Bonito, sem dúvida |
Quadro de instrumentos "Stuttgart" |
Já os proprietários de Triumph estavam entregues aos soturnos, o que era o caso do meu amigo Zé. Porém deu-lhe a louca e um belo dia ele me aparece com o seu TR6 vermelho. Dali a poucos dias, numa bela manhã de inverno, logo cedinho, lá estávamos nós em viagem de capotas arriadas para a sua fazenda nas serras de Poços de Caldas; ele no TR6 dele e eu no meu 914. Dois playboyzinhos? Não; dois autoentusiastas curtindo a fundo. E lenha na Anhangüera. A potência dos carros se equivaliam, mesmo o motor dele sendo um 6-cilindros em linha e com 1/2 litro a mais de cilindrada. O dele, se me lembro bem, rendia coisa de uns 105 cv, ao menos é o que diziam, então, o meu tendo potência semelhante, andávamos ali meio juntos nas retomadas, até que as curvas viessem e nelas o 914 o despachasse. Eu lhe dizia que era questão de braço, nessas enchidas que os amigos dão nos amigos, mas não era, não, pois dava nitidamente para ver sua luta para me acompanhar, enquanto que 914 nem aí, seguindo tranqüilo e fazendo curvas atrás de curvas como se seguisse num trilho, uma beleza. O TR6 dele era bom de curva, sim. O dele já era dos suspensão traseira independente, por braço arrastado, que começou com o TR4 A, uma grande evolução em relação aos Triumph anteriores de eixo traseiro rígido. Essa evolução foi bem-vinda o bastante para que os dela dotados passassem a ter o emblema IRS atrás, indicando o tipo de suspensão traseira (IRS é a sigla em inglês, independent rear suspension).
Nas retas também era a mesma coisa. Tudo ia emparelhado até lá pelo final da minha 3ª marcha (o meu tinha 5 e o dele, 4), mas do meio da 4ª marcha em diante o 914 ia pouco a pouco se distanciando, e isso a aerodinâmica explica. E assim íamos, nenhum querendo trocar de carro, experimentar o do outro, já que não havia melhor carro para cada um estar; e essa é uma sensação das boas, a de não se desejar mais nada. Quando isso acontece com mulher a gente acaba casando.
E foi numa dessas retas que um cara num BMW azul nos assustou nos passando num VUUFFF! e sumiu adiante, não nos dando tempo nem de ver que modelo era. Só poderia ser um 3.0 CSL ou coisa que o valha, já que esse daí tem um lingüição de 6 cilindros que rende seus 200 e poucos cv, ao menos desconfiei que era. Foi uma tremenda humilhação, o que nos derreou de tal maneira que logo paramos num posto para tomar um café e tentarmos levantar o moral um do outro, dizendo que tudo bem, que aquele BMW andava muito mais e coisa e tal, mas que os nossos podiam tirar a capota e que o legal era viajar sem capota, etc, etc.
Só vim a tirar a minha forra desse modelo da BMW quando há poucos anos dirigi um, de ano 1974, e realmente vi o quanto esse danado anda bem, mas o quanto anda bem nas retas, pois nas curvas ele deixa a desejar. A BMW ainda não adotara sua regra universal de todos seus modelos terem distribuição equânime de peso sobre os eixos, ou seja, 50-50%. Esse 3.0 CSL, como constatei dirigindo-o num autódromo, tem algo acima de 56% de peso sobre o eixo dianteiro, o que deixa sua traseira demasiadamente leve, então, num autódromo travado como em que o testei, era como dirigir um martelo deitado com a cabeça para frente. Ele entrava na curva dando forte subesterço, saindo de frente, e bastava uma acelerada um pouco mais forte para que ele soltasse a traseira, ela abrindo um leque, e seguisse de lado. Tudo bem, até que é divertido, tipo drifting, mas muito pouco eficiente, já que não podemos despejar forte potência nas saídas de curva. Observando esse modelo no Mundial de Marcas da época se vê que a fábrica compensa isso lhe colocando enormes pneus na traseira, além de enorme aerofólio. Sendo assim, sorte dele não nos pegar no trecho das curvas, senão seria o meu 914 que o paparia fácil, que eu agora sei.
Já que falamos do Éder Jofre no capítulo passado, conto uma rápida dele, que tem a ver com o que foi dito, do pequeno invocando com o grande. Certa vez ele se encontrou com o Muhammad Ali, antes chamado Cassius Clay. No papo dos já então aposentados do ringue, luvas penduradas, o Clay lhe disse ser seu admirador e que imaginava qual luta fariam se eles tivessem sido do mesmo peso – o Clay era peso-pesado, e o Éder, um peso-galo que lhe passaria por entre as pernas. A resposta do Éder foi imediata, como seus socos, na lata: "Sorte sua não sermos do mesmo peso!" E o ficou encarando. É assim que reage um campeão. Nada teme. O 914 era um campeão das curvas. Quem o dirigisse tinha mais é que topar a parada com qualquer um que viesse nas curvas. Naquele BMW eu daria um nó, desde que nas curvas.
O barulho do cascalho sendo vagarosamente amassado pelos pneus do 914 ainda escuto. Era preciso pegar um trecho cascalhado de uns 8 km para chegarmos à fazenda da família do Zé. Antes, logo ao pegarmos o cascalho, eu não aliviara o ânimo e segui me divertindo com o jeito dele escorregar nas curvas, e assim fui indo e deixando o Zé no poeirão lá para trás. O meu era um Porsche, um bicho bruto, tanque de guerra; essa era, e é, a fama, justa, e ele seguia sem chacoalhos, sem nhéc-nhéc, enquanto que o Triumph do Zé ia na maciota, pois num chão assim ele dava a impressão de ir desparafusando todos os parafusos, todas as porcas, fora o pavor de rachar o cárter, essas coisas. E segui tocando forte, e mais forte – curvas ao lado de belos despenhadeiros em meio aos cafezais –, e mais forte, até que do nada virei passageiro e o 914 deu um instantâneo cavalo-de-pau de 180°. Nem deu tempo de ter medo de despinguelar lá pra baixo, e tudo parou, agora com o carro virado pro lado oposto de onde vinha.
Bom, pensei. Acho melhor esperar quieto o Zé. Ele não vai entender nada. Desliguei o 2-litros e fiquei a escutar os canarinhos-da-terra, a cheirar o cheiro bom da terra, o cheiro dos cafezais que dão o melhor café do mundo, a pensar no quão bom é andar calmo por aquelas serras, o quão bom é escutar o mugir das vacas, o marulhar dos regatos e quão bom é não escutar nada quando se deita a cabeça num cheiroso travesseiro para dormir.
Vindo devagar chegou o Zé, que parou ao meu lado, porta com porta, e daí ele falou daquele jeito dele:
— Ué?
AK
AK
Bato palmas de pé pelo brilhante texto! Poderia virar um filme...
ResponderExcluirkkkkkkkkkkkkkkk maravilhoso... Mas que crueldade acabar a história nesta hora!!
ResponderExcluirUm filme bem longo com várias partes pra ficarmos esperando dia após dia incansavelmente. Excelente texto AK parabéns!
ResponderExcluirAK:
ResponderExcluirJá sei o que você respondeu pro Zé: Já fui , e como você estava demorando, voltei pra ver se não tinha quebrado nada . . .
Belo texto!
AAM
Mania de terminar os causos feito penúltimo capítulo de novela...
ResponderExcluirQue grosseria do Éder Jofre.
ResponderExcluirAnônimo,
ExcluirGrosseria nada. O Éder sempre foi muito bem educado. Na certa o Clay falou isso com um certo ar de superioridade, ele grandão e o Éder pequeno, essas coisas, e o Éder logo deu-lhe um corretivo. Fez muito bem.
Você o julgou sem ter estado presente para saber o clima do momento.
Poxa Arnaldo, terminar o texto assim de sopetão é tortura!!! Ficou aquele gostinho de quero mais...
ResponderExcluirTá vendo Arnaldo... depois você acha que é exagero meu te comparar ao João Kleber quando se trata de suas histórias...rs
ExcluirIrretocável meu amigo... e quem nunca virou passageiro em um momento de enfiar o pé na jaca e fazer de pantufa que levante a mão!
Abração!
AK,
ResponderExcluirVi um 914 preto a umas 2 semanas, numa oficina perto de Brasília.
Se por fotos ele impressiona, ao vivo é puro deleite. Uma pontinha da minha inveja boa pra vc, viu?
Abraço!
Mais um belo e hilariante causo do AK, parabéns!
ResponderExcluirMorri de rir pensando na cena de voçê na contra mão.
Como dizem: "malandro é o gato, que já nasce de bigode"!
Abs
KKKKKK,,,, KKKKKKK delicia de texto.... mto bom... Parabéns......
ResponderExcluirAK,
ResponderExcluirParabéns pelo texto.
Imagino quão rápida deve ter sido a transição desde os instantes finais em que você tinha o carro sob controle, na mão, e o momento do cavalo-de-pau.
Vicente
Vicente, você tem um e você sabe o quão rápido foi, tanto que foi logo nesse ponto.
ExcluirQueria te agradecer pelo link das fotos que estão neste post. Você foi certeiro nisso também. Obrigado.
Espero que estes posts contribuam para que desista duma vez da infeliz idéia de vender o seu.
Forte abraço e obrigado pela contribuição..
Arnaldo,
ExcluirContribuir com o Autoentusiastas é um prazer e uma honra. E ajudá-lo num post então, nem se fala. Toda vez que pensava em vender o 914 (porque não tenho $$ suficiente para comprar todos os carros que gostaria) acontecia algo que me fazia desistir, como os momentos de prazer ao dirigí-lo. São anos de aprendizado e conhecimento adquiridos no carro, que me fazem gostar mais do carro a cada dia.
Primeiro aquele post do BOB do opala nas 25h de 73, agora mais esse excelente do 914... vocês querem nos matar de nostalgia, é?
ResponderExcluirPois se for este o Objetivo, estão conseguindo, e é muito bom "morrer" de tal forma!!!
Parabéns Arnaldo por mais um post FANTÁSTICO e que nos enche de vontade de voltar ao AE para ler cada vez mais histórias como esta, tão bem contadas!
Um abraço!
É...naquela época não tinha internet, mas por outro lado também não tinha radares, nem pontos na carteira, nem estradas permanentemente lotadas, nem posturas tão forçadamente politicamente corretas, nem drogas pesadas por toda parte, nem tanta violência gratuita...
ResponderExcluirNo fundo, tenho saudades daquela época.
Posso estar totalmente errado, mas parece que as pessoas eram mais calmas, respeitavam mais o próximo, a competitividade pessoal não era tão acirrada, sei lá.
BlueGopher,
ExcluirTambém sinto o mesmo. Talvez dê pra reverter, não sei.
Falando em competitividade, Arnaldo, você já ouviu falar numa ideologia para andar de moto chamada "The Pace"? FIquei encantado com a abordagem deles na questão do prazer, ao mesmo tempo preservando a segurança.
ExcluirQueria eu ter vivido esta época!
ExcluirPorque me desculpem quem quiser, não são LED que me fazem gostar de um carro, não mesmo.
O problema com os textos do Arnaldo Keller é que os comentaristas ficam sem muita margem para acrescentar algo, salvo tecer os merecidos elogios.
ResponderExcluirSobre guiar em estradas cascalhadas, sei muito bem dos prazeres e dos riscos que elas oferecem. É como jogar tênis no saibro, escorregando para chegar numa bola perdida (nossa, faz anos que não entro numa quadra...).
Gosto muito da estrada que vai para Poços de Caldas. Na saída de Águas da Prata, há uma longa curva para a esquerda, quase uma parábola, que começa com a topografia truncada e vai se abrindo para um skyline maravilhoso, mostrando as montanhas de Minas Gerais ao fundo. Quem tiver sorte, consegue subir a serrinha acompanhado de um trem lá no alto, numa estrada de ferro paralela.
São coisas que o motorista que apenas quer chegar rápido não consegue perceber, mas que para os mais atentos é quase uma epifania ver o raios solares banhando repentinamente o interior do carro, logo que você sai dessa curva - dirigindo de manhã.
Isso mesmo, JT!
ExcluirSaindo de Águas da Prata, um pouco antes dessa curva à esquerda, junto ao barranco do morro, aquele morro de mata fresca, tinha um alto cano d'água que despejava um tarugo de água direto logo ao lado do acostamento, numa reentrância. Então, quando eu vinha de Minas, de pra lá de Poços, com um calor lascado, nada de ar-condicionado aquela época, e com carro sujo de poeira por andar atrás de comprar novilhas, eu metia o carro debaixo dessa bica e era um tróó de água. Refrescava o carro e dava uma boa lavada.
O trenzinho peguei uma vez, de Águas da Prata para Poços, quando minhas filhas eram pequenas. Muito legal. espero que ainda tenha, ainda faça essa linha turística. Lindo, sim.
Você descreveu certinho o que sinto quando passo ali. Obrigado..
Veja como evoluimos: antes tínhamos um "custo sacal" para importar peças. Hoje, o "custo sacal" é apenas para importar veículos antigos. As peças agora vêm apenas com o custo financeiro, mesmo.
ResponderExcluirAK
ResponderExcluirDe que cor era o seu Porsche?
Tinha essas simpáticas calotas , ou rodas de liga?
Saúdacoes
Arnaldo, a maneira como tu termina o texto é perfeita.
ResponderExcluirEspera valeu Naldo! Texto gostoso de ler. Hoje meu primeiro Sabado livre para descansar depois de seguidas vitorias. Estou tirando a moto para pilotar no parque nacional perto de casa. Nao tem absolutamente nada, apenas a black stripe perfeita, cachoeiras, arvores e tudo que e bicho inclusive Sasquatch. Grande abraco meu amigo, cheers!
ResponderExcluirAK, como sempre uma boa história. Continue escrevendo!
ResponderExcluirQueria aproveitar para perguntar sobre os conversíveis, roadsters e afins. É viável ter um para o dia-a-dia, como único carro? Moro no interior, então a segurança não me preocupa, mas queria saber de questões práticas, como enfrentar chuva com capota de lona, se a manutenção desses sistemas é cara/complexa demais, se o sol queimando o coco não enche o saco, enfim, como é a convivência com um carro assim. Até hoje só tive uma voltinha num BMW Z3 e foi apaixonante, mas é aquela coisa de momento, instante, não tenho parâmetro para saber como seria a convivência.
Agradeço pelo texto e pelos eventuais comentários.
L.
Valeu Arnaldo! Grande post! E que vontade de ter essa verdinho da foto...
ResponderExcluirMuito bem escrito o texto, parabéns! A cada texto teu que leio me bate uma vontade maior de comprar um bixo desses, que já venho namorando há algum tempo!
ResponderExcluir