Fotos: Chrysler
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a Chrysler Corporation, como suas conterrâneas, voltou a produzir os mesmos carros e motores que parara de fazer em 1942 para se concentrar em material bélico. Por sua vez, a maioria desses carros de 1942 tinha seus motores originados nos anos 30, uma época que, vista depois do salto tecnológico da segunda guerra, parecia um tempo muito distante. Mas obviamente nenhum dos fabricantes americanos estava parado.
Em 1949, a GM dava o primeiro passo evolutivo: seus novos V-8 Cadillac e Oldsmobile selavam a configuração básica do V-8 americano, com válvulas no cabeçote acionadas por varetas e balancins a partir de um comando central no bloco, câmara de combustão de seção triangular (wedge) e taxa de compressão alta para aproveitar os avanços em combustíveis.
A Chrysler, porém, iria mais além. Estava então imersa em intensa pesquisa sobre eficiência de motores para determinar de forma conclusiva qual seria o seu motor do futuro. Trouxe da Europa uma série de motores das mais variadas configurações, de um Alfa Romeo DOHC e um Riley com dois comandos no bloco (ambos com câmara hemisférica) até Fiat OHC e Rolls-Royce com válvulas em “F”, com a finalidade de testar e descobrir a melhor configuração.
Não foi difícil chegar ao que hoje é óbvio: a câmara de combustão hemisférica com válvulas opostas e vela de ignição central. Mas os primeiros Chrysler Hemi não seriam V8; o primeiro era um motor de teste de um cilindro, DOHC, com comandos acionados por um eixo e engrenagens (acima). Depois foi desenvolvido um motor que seria o substituto dos então correntes seis e oito em linha da empresa (com válvulas laterais e cabeçote plano). Este motor , chamado pelo código interno A173 (abaixo), era um seis em linha com duplo comando de válvulas no cabeçote, e 235 polegadas cúbicas de deslocamento (3,85 litros). O seis em linha parecia promissor, mas foi logo em seguida descartado em favor do então popularíssimo V-8.
A Chrysler nunca havia feito um V-8 então, mas rapidamente reconheceu que era a configuração ideal para o mercado americano. O V-8 permitia altos deslocamentos volumétricos em um tamanho externo reduzido, e com centro de gravidade mais baixo que um motor em linha. Além disso, permitia diâmetros de cilindro maiores (o comprimento do motor não era problema como em um oito em linha), que em conjunto com cursos menores de pistão possibilitava rotações mais altas, algo agora possível e desejável, mais fáceis e suaves. Fora o fato de que o V-8, desde que Henry Ford tinha lançado o seu famoso Flathead em 1932, era sinônimo de potência e suavidade para o público americano, e se tornava não só uma decisão de engenharia, mas também argumento de venda.
Os ingredientes do famoso Chrysler Hemi então se alinhavam: um V-8 com câmara de combustão hemisférica. Mas faltava ainda definir como acionar as válvulas opostas...
Hoje parece estranho, numa época onde os comandos localizados no bloco (e acionados por correntes ou engrenagens simples) são quase extintos, mas no início dos anos 50, comandos no cabeçote eram raros, exóticos e caros. Mesmo na Europa, onde eram mais comuns, comando no cabeçote era coisa relegada na maioria das vezes a exóticos carros esporte. A Chrysler então, para simplificar e baratear não só a produção, mas também a manutenção de seus novos V-8, e de quebra criar um motor mais compacto e baixo que um DOHC, chega no sistema de balancins e varetas acionando válvulas opostas. Em 1951, inicialmente deslocando 331 pol³ (5,4 litros) e oferecendo 184 cv, nascia o Hemi V-8 (abaixo).
O Hemi se tornou uma lenda de alta performance nos anos que se seguiram, e foi logo adotado pelos hot-rodders americanos como a mais violenta opção de propulsor disponível. Mas com o tempo a Chrysler descobria que aumentando o deslocamento, taxa e alimentação, conseguia se manter à frente da corrida de potência sem precisar recorrer ao exótico e caro cabeçote hemisférico. Logo, o V-8 de bloco grande “RB”, conhecido como wedge (devido à câmara triangular, feito cunha, ou wedge em inglês), se tornaria o motor de alta performance da Chrysler, e o Hemi era abandonado.
Mas este não foi o último capítulo desta história. No início dos anos 1960, a Chrysler, para conseguir melhorar sua competitividade nas provas da Nascar, e impulsionada por um grupo de engenheiros liderado pelo Ramcharger Tom “Chrome” Hoover (saiba mais clicando aqui), resolve reviver o cabeçote Hemi. Mas desta vez, em cima do motor RB de bloco grande e 426 polegadas cúbicas, ou sete gloriosos litros.
Em março de 1963, o desenhista Frank Bialk estica uma enorme folha de papel em sua prancheta, e começa o desenho acima, sem saber que fazia história. Usando o Hemi anterior como base, Bialk acaba tendo que rotacionar as válvulas em direção à admissão, para conseguir um tamanho razoável para os balancins, que como no antigo V-8, eram montados em um eixo comum. Mesmo hoje, o desenho é de uma elegância ímpar.
O motor de competição resultante fez miséria na Nascar e em pistas de arrancada; foi para as ruas em 1966; se tornou o mais temido e lendário motor americano. Chamado de “Elefante” por seu tamanho e poder, o Hemi 426 é algo inacreditavelmente exagerado, o ápice de uma era onde motores bravos faziam a gente chorar quando ligados, só com a gasolina que evaporava em quantidades industriais por todas as frestas e buracos... Um bom Hemi 426 de rua é reputado com mais de 500 cv reais, potência respeitável até hoje.
Quem viveu esta época diz que não há nada próximo ao momento em que um Hemi abre as borboletas de seu segundo carburador quádruplo.
Quem viveu esta época diz que não há nada próximo ao momento em que um Hemi abre as borboletas de seu segundo carburador quádruplo.
O Hemi, com toda sua complexidade, ajudou a pôr o fim nessa era. A Ford planejava para 1970 um cabeçote Hemi para seu 427 (7 litros) “FE” de competição, mas partiu para colocar um comando em cada cabeçote, criando o hoje raríssimo Ford SOHC 427. A Chrysler, para não ficar para trás, planeja mais uma evolução do Hemi: quatro válvulas por cilindro.
Este motor, chamado por seus criadores de “Doomsday machine” (“a máquina do juízo final”), e com a designação interna A925, foi inicialmente desenhado tanto com o comando no bloco, como com um moderno esquema de dois comandos em cada cabeçote. Um círculo se fechava: como os primeiros Hemi experimentais dos anos 40, o ápice deste tipo de motor também seria DOHC. E como o seis em linha A173 de 1947, também morreria sem ser visto fora da engenharia da Chrysler... Abaixo, o belo layout mostra de um lado o arranjo DOHC e de outro o com comando no bloco.
Um executivo da Chrysler, preocupado com a escalada de custos do programa de competições, vai até à Nascar com a foto abaixo, de um motor em teste, na manga. Lá, afirma que se fosse permitido à Ford andar com um motor de comando no cabeçote, isso é o que eles veriam saindo da Chrysler: um exótico DOHC de 32 válvulas.
Temendo uma escalada de custos na categoria, a Nascar proíbe motores com comandos no cabeçote, relegando o Ford SOHC às pistas de arrancada, onde foi um adversário admirável do Hemi por muito tempo. Não demora para também o Hemi 426 sair de linha, e findar a era dos muscle cars americanos.
A Chrysler hoje tem um outro V8 Hemi em produção, mas isto é história para outro dia...
MAO
Para saber mais:
Show DEMAIS o post!
ResponderExcluirMuita coisa nova ai, pra eu que sou leigo a respeito dessa txurma de Muscles, apesar de curtir muito os V8!
PQP imagina se esse V8 32 válvulas sai do papel?! OMG!
V8 é V8...Lembro que na minha juventude, o primeiro V8 que abri para ver como era por dentro, foi um 8BA flathead, de tão simples foram fabricados milhões. Carreteras, cabeçotes aletados, coletores para dois, três, quatro carburadores, Edelbrocks e outros, taller argentino, que época...
ResponderExcluirluiz borgmann
Interessante essa história de como os americanos trataram a ideía de comando no cabeçote. Mais interessante ainda é pensar que até hoje ainda produzem motores de grande desempenho com comando no bloco. Em minha humilde e leiga opinião, nada se equipara aos pequenos e "giradores" motores alemães. Muito mais entusiáticos do que os enormes e preguiçosos americanos. Tenho carros com as duas configurações, inclusive o clássico 302 da Ford e o 250 GM. Particularmente prefiro os 6 em linha, mesmo com configurações "preguiçosas" como o 250 do meu Opala ou o 261 da minha Veraneio do que os V8 OHC.
ResponderExcluirConfesso que sou paixonado pela história evolutiva da engenharia automobilística, principalmente em relação a motores.
Cada propulsor tem a sua magia, respeito todos eles e gosto de poder desfrutar de cada um, com seus defeitos e qualidades. Os mágicos 6 em linha da GM são meus favoritos, mesmo menos agressivos do que os V8, em especial o 3.0 que saiu no Omega até 94, esse motor é uma delícia.
Ótimo post, são de leitura muito agradável.
Um abraço,
André Malzoni
MAO
ResponderExcluirNão sei até q. ponto é lenda-ouço há muito tempo q. as origens do Chrysler Hemi são as idéias e trabalhos do "mago"do Corvette Zora Arkus-Duntov,q.,mesmo antes de emigrar para os EUA,já era conhecido como projetista/construtor de componentes para preparação de motores(cabeçotes Ardun).Consta q. o projeto seu,de um cabeçote de câmaras hemisféricas,imaginado para os flathead Ford,percorreu um caminho tortuoso e nebuloso para chegar à Chrysler.A ideia foi acolhida e desenvolvida com imenso sucesso,como se viu então.
Não consigo recordar do lançamento do motor Emi-Sul da Simca do Brasil/Chrysler, sem um sentimento de justiça kármica- o cabeça-chata Ford TINHA q. ter cabeçotes Hemi...
Não sou fã da "escola americana" de automóveis, mas como eu gostaria de ter 2 chargers 68 (440 sixpack e 426 hemi) e um plymouth aar cuda small block!!!!
ResponderExcluirPena que estes carros hoje custam uma fábula, bem mais do que eu sonho poder pagar. Guiar qualquer um dos três já seria um sonho realizado.
Das 3 americanas (pensando na era dos detroit muscle), só consigo achar graça na Chrysler e seu modo nada racional de agir.
"Quem viveu esta época diz que não há nada próximo ao momento em que um Hemi abre as borboletas de seu segundo carburador quádruplo."
ResponderExcluirMAO, sensacional post!!!
Suas postagens fazem muita falta!
GiovanniF.
Eu tava com saudade de mais um post épico do MAO... esse foi mais um de tirar o folego!
ResponderExcluirEspero que não demore para vir os próximos! :D
As pontas dos dedos ficam geladas com os posts do MAO.
ResponderExcluirAcho que todo muita gente aqui sabe o quando eu estudo, gosto e vivo com a cabeça nos motores V8 da Chrysler. Só dela.
MAO, um grande abraço,
Eduardo Zanetti
que pena que com essa onda ecológica o brasil não vai passar por essa fase de motores enormes, na atualidade, em seus carros, mas eu ainda acredito na engenharia e na indústria brasileira pra desenvolver algo no país na faixa dos 3 litros e mais de 300 cv
ResponderExcluirSó tem tamanho e safadeza. Mas que americano é bom de marketing é inegável.
ResponderExcluirnao se esqueçam que a ford ta produzindo motores ohc e dohc atualmente . . .
ResponderExcluirGabola,
ResponderExcluirO cabeçote Ardun de Zora veio realmente antes do Hemi, e não dá para imaginar que não houve alguma influência dele no desenho do Chrysler, principalmente no lay-out de comando no bloco.
Mas o desenvolvimento já andava dentro da Chrysler quando o Ardun apareceu. No livro que indico (escrito por um engenheiro da Chrysler que presenciou tudo), não há menção do Ardun.
MAO
Fla3D, Eduardo Zanetti, GiovanniF,
ResponderExcluirQuem é vivo sempre aparece.
Tempo anda curto, mas acompanhem este espaço que de vez em quando a gente consegue...
Grato pelos comentários!
MAO
Certa vez num encontro de Lindóia tive a oportunidade de ver de perto um Challenger R/T 426 Hemi 1970. Como todo bom fã de Mopars, quando abri o capô e toquei aquela usina de força me senti um ateu que encontrou Deus. Me dei por satisfeito, apenas aquilo valeu a viagem pavorosa de BH ao encontro (chovendo canivetes). Eis que meses depois chega um reboque na oficina (eu trabalho com antigos) e o bendito Challenger estava lá com um "barulhinho" no motor. Já fechei vários V8, big e small block, mas o prazer de tirar do carro, desmontar (nunca bati tanta foto repetida em minha vida), retirar os cabeçotes fixados por estojos, os mancais fixos com 4 parafusos, observar que o pistão literalmente entra na câmara de combustão, espremendo aquelas válvulas enormes como se cada compressão fosse a última... Nem precisa dizer que praticamente implorei pro meu chefe (Mestre ObiWala) a montagem do motor. Nem precisa dizer também que ele negou ferrenhamente durante toda a espera das novas peças. Felizmente a compaixão bateu na alma daquele sem coração (ou foi a canseira que dei) e me foi permitido colocar as patinhas trêmulas no Elefante. Vos digo com o maior orgulho e recomendo a experiência à todos (AG deve saber bem do que estou falando), fechei o malvado, funcionei e tive o maior orgasmo sonoro da minha vida quando escancarei aquelas 8 borboletas a plena carga. Fica aqui minha experiência, a mais feliz de todas, melhor que a primeira transa, melhor que tutu com couve, melhor que um powerslide a 120Km/h...
ResponderExcluirForte abraço a todos! E MAO, vc se supera.
O MAO fica um tempo sem postar, mas quando retorna...chega na voadora! rsrsrs
ResponderExcluirFiquei maluco durante a leitura, strondou mesmo! :D
Sobre a limitação que a Nascar impôs, realmente é de se perguntar o quanto isso prejudicou o desenvolvimento dos carros de rua, pois até bem recentemente os americanos se apoiaram bastante em motores OHV.
ResponderExcluirTudo bem que atualmente, mesmo a maioria dos carros americanos vendidos hoje em dia usa motores OHC ou DOHC, mas mesmo assim só o fizeram por terem levado uma coça daquela dos japoneses.
Caso a NASCAR não fosse tão cheia dos limites, é muito possível que pudesse continuar a ser laboratório de novas tecnologias e hoje em dia tivéssemos unidades V8 de rua muito superiores às atuais.
Com essa tradição todo, só digo uma coisa: vida longa à Chrysler!
ResponderExcluirMAO, uma justa homenagem seria ao Dodge Dakota RT 5.2 litros, o veículo de série mais potente já fabricado no Brasil, entre carros e pick-ups.
Abraço
Muito legal Mao.
ResponderExcluirVc poderia emendar e falar do Hemi nacional, o nosso Emi Sul V8 da Simca.
Quando conheci o Hemi fiquei pensando em como colocariam 4 válvulas por cilindro. Hoje como a Fiat é dona da Chrysler, podiam por o Multiair no Hemi..
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