Uma grade bem conhecida, mas não de cabeça para baixo |
Houve um tempo de pequeno
automóvel alemão — famoso na Argentina e no Brasil por sua completa identificação
e resistência — utilizando como slogan
em seus anúncios ter motor de ciclo de dois tempos, e apenas sete peças móveis —
virabrequim, três bielas e três pistões. Coisa aparentemente distante ao
usuário comum, porém relevante, pois motor assemelhado, no ciclo de quatro
tempos, tinha umas 70 partes móveis. Uma antecipação da lógica do Dr. João
Gurgel: peça que o carro não tem, não
quebra.
A história da carroceria de 8 partes é pouco conhecida. Foi lembrada por Geoffrey Hacker, historiador estadunidense empunhando a bandeira dos carros com carroceria em compósito de fibra de vidro em seu país. Coisa meio romântica. Conto e comento.
Mudança, caminho
O pós-Segunda Guerra Mundial alterou o mundo, mercado, veículos. No caso americano, três anos de Esforço de Guerra, sem fabricar de veículos civis, apenas os destinados ao conflito, havia formidável mercado a ser satisfeito e, nele, uma nova fatia, suprida por carros com perfil esportivo, e não apenas sedãs conversíveis. MGs, Jaguares, Singers, Morgans, Allards, trazidos da Inglaterra, o surgimento de pequenos fabricantes locais, como a Glaspar, inicialmente com mecânica Willys, depois o que vestisse, e motivou a produção do Chevrolet Corvette, vestido com o compósito de fibra de vidro. E os Woodwill no mesmo caminho.
O mercado se cindira: as grandes fabricantes estadunidenses, GM, Ford e Chrysler, tomavam 75% do mercado. As outras nove, se estapeavam pelos restantes 25%, em regime de salve-se quem puder. A GM, apesar da exceção, tropicava em sua aventura — não nos consultou, a você ou a mim, que teríamos repelido, clamorosamente — fazer o esportivo com primária e sem emoção transmissão automática com duas marchas. O Corvette vendia pouco, menos que o imaginado e a capacidade da fábrica montada especialmente para sua diferenciada produção.
O mercado ainda mostrava espaço a pequeno fabricante — desde que superada a principal barreira do negócio: o processo. Fazer carro sobre mecânica usada, sem operações padronizadas e sem a carroceria adequada à estrutura mecânica não dava volume, encadeamento econômico, nem futuro na atividade.
Robert Heidreich e Milo Reckow, alemães, fabricantes de autopeças, nos EUA, procuraram o famoso e controvertido designer Howard “Dutch” (holandês) Darrin (1897–1992).
Dutch Darrin e a maquete do Frazer 4-portas, conversível |
Enorme distância entre os
quase clientes e o profissional. De reconhecimento internacional por seus
trabalhos nos EUA e na Europa através da Hibbard & Darrin, para a Packard,
Renault, Rolls-Royce, sociedade com Harley Earl, depois semi-deus de estilo na
GM, criador da Stylenlyte, chapa de alumínio leve. Vida criativa e movimentada.
Após a guerra transformou-se em consultor e designer da Kaiser, fabricante nascida na contramão da tendência nos EUA. Desenhou o Frazer, o Kaiser, o Manhattan, o Henry J, e fez mágica: combinou chassi do Kaiser J — no Brasil erroneamente chamado Junior —, com motor Willys BF161 Hurricane — aqui de Jeep, Rural, Pick-Up, Aero, Maverick ... —, carroceria esportiva, dois lugares, seguindo a distribuição de volumes implantada pelo Jaguar XK. Mas o que o marcava, referenciava, fazia história, era a grande revolução nas portas, sem abrir para fora ou para cima, mas correndo para dentro, embutindo-se nos para lamas frontais. Foi de pouca duração. Não por si, mas por a Kaiser, novata no ramo, sair do negócio.
No folclore destas
histórias, Darrin recebia pequeno percentual por unidade vendida e, ao fim,
atrasada em pagamento, a Kaiser pagou-lhe em espécie — com Kaiser-Darrins...
À Darrin os alemães
pintaram cenário, disseram da crença de haver mercado e, acima de tudo, para
quem utilizasse chassis estrangeiro, pois as usinas americanas não o
aproveitavam, nem o vendiam com mecânica montada — os rolling chassis —, a quem quisesse construir esportivo
personalizado. Ao final sugeriram o chassis do DKW, insólito carrinho de 2T, de
resistência conhecida, perdido em meio a tanta produção e tão variada
importação.
Paciente, Darrin ouviu e concluiu sem tato, dizendo ser tudo possível, porém inviável transformar o DKW num esportivo. O produto final custaria mais que valeria.
Os alemães não desistiram, voltando no dia seguinte, propondo US$ 1.500 por uns traços do que fazer. Detalhariam o produto e iriam construi-lo. Darrin faria um modelo em argila em escala ¼. Iniciou trabalhar baseado apenas em medidas, e Peter Sartori, distribuidor da marca, aproximou-se do projeto, trazendo um chassi, experiência e o revendedor Henry Lindsey, dono da Flintridge Motors, em Costa Mesa, em torno de Los Angeles.
Simples
Darrin, preso ao conceito de baixar custos, não desprezou o desafio, nem procurou uma folha em branco para começar do zero. Ao contrário, manteve a estrutura mecânica original, fugiu de reduzir o chassi, foi desmontando partes para aproveitar ao máximo: rodas, calotas, pneus, instrumentos, grupo óptico, instalação elétrica, portas, dobradiças, conjunto do limpador de pára-brisa, botões ... Obedecido o modelo em escala, ao final, montado o protótipo, viu-se, a largura fora mantida. Altura reduzida em 14 cm, medida na ponta da armação do pára-brisa, o mesmo do DKW, com colunas, limpadores, tudo recuado, incluindo a parede de fogo, em 15 cm — ficou a 1,27 m com altura máxima. Comprimento cresceu 25 cm, criando harmonia de estilo.
O DKW doa muitas peças para o Flintridge |
No processo, a chave do brilho: não se meteu a
fazer uma carroceria especial, completa, e o processo de arrancar a original
trocando-a pelo modelo novo. Ao contrário, aproveitou o mais possível da
estrutura original, em chapa de aço, para nela agregar as novas partes. Itens
difíceis, as portas foram aproveitadas, mas reduzidas em altura, gerando nova
acomodação aos usuários, mais próximos do solo, definindo cintura mais baixa.
Eram revestidas no então novidadoso material, o plástico reforçado com fibra de
vidro — o FRP, fiberglass-reinforced
plastic. O restante da carroceria foi moldado no mesmo composto, e eram
apenas oito peças — a removida carroceria de aço Auto Union DKW F93, o nosso
Belcar, tinha 992! Trabalho de mestre, apesar de outras linhas, outra proposta,
mantinha a identificação da marca, respondia pelo gosto do consumidor dos EUA
naquela época.
Os moldes foram construídos na Flintridge, mas
uma surpresa os aguardava. Pronto o protótipo em dezembro de 1956, foi levado a
Los Angeles Auto Car Dealers Exposition
— um salão dos concessionários —, e em apenas três horas após o lançamento,
toda a capacidade produtiva foi vendida. O carrinho, o Flintridge DKW Darrin Mark
II era bonito, tinha
assinatura do famoso Dutch, permitia
uso familiar, e apresentava vantagem adicional, o custo: carroceria cupê, US$
2.995 e teto removível 10% a mais. Esportivos especiais, como no caso, custavam
mais. Conversível de grande produção, como o Ford Thunderbird, custava US$
2.500.
Surpresa adicional, um principal do governo de Porto Rico — ainda país independente, antes de se transformar em estado dos EUA —, visitando a exposição, se interessou e logo depois propôs incentivos fiscais para ter uma indústria de automóveis em seu espaço, sediar a produção, oferecendo 10 anos com isenção de impostos. Isto e mais mão-de-obra de menor custo, permitiria baixar custos, e elevar lucros. A rapidez nas vendas redimensionou todo o planejamento mercado e projetou produção para 300 unidades por mês, exigindo mudança geral. Desde a consciência da necessidade por mão-de-obra especializada, com intimidade com o novidadoso material, até projetar uma operação fora do país. Passo imediato, um acordo de negócios com a Woodwill Fiberglass Body Corporation, uma das pequenas e mais conhecidas da especialidade, situada a poucos quilômetros, em Santa Ana, na mesma Califórnia.
Estrutura comercial montada, a Flintridge Motors Manufacturing Corporation tinha registro de fabricante de veículos no estado. E também era distribuidora, montando rede própria entre os revendedores Auto Union DKW nos EUA. Até este ponto havia gasto US$ 75 mil em planos, projeto, protótipo. A Dutch pagaram US$ 10 mil.
Quem sabe?
O
pequeno motor de 900 cm³, 45 hp SAE (38 cv DIN), sem fricotes, e o peso reduzido em 160 kg, relativamente ao
sedã normal, trazendo-o a 750
kg, dava alegria ao uso dos 5 ou 6 passageiros. A parede
de fogo, o pára-brisa, a estrutura da coluna A mantida como pilar estrutural,
dava comportamento firme, pouca sensação de torção, uma declaração de qualidade
e seriedade. A Auto Union estendeu a garantia, reconhecendo o processo
industrial, fechando o pacote.
Design e preço, simpáticos, motivavam os clientes. Mas o projeto e o processo produtivo, fazer um carro resumindo-o a apenas 8 partes de compósito de fibra de vidro, auto-estruturáveis, vestindo a ferragem da mecânica, surpreendia especialistas pela simplicidade e obviedade. Era uma inovação mundial.
A produção antecipou-se à vigência do acordo e vantagens porto-riquenhos, iniciando-se na Woodwill no 1o de julho de 1957. No processo produtivo a Auto Union ainda não se programara industrial e comercialmente para fornecer apenas o chassi rolante, forçando o utilizar automóvel novo, 0-km, tirado do estoque da concessionária Flintridge para se transformar no Flintrigde Darrin Mk II pelo retirar dos itens a ser agregados e os outros, desnecessários, retornando à revenda e daí indo ao estoque de peças.
Em 1o de outubro projetava-se a aceleração industrial atingir 200 unidades/mês.
A história começou bem — mas não se sabe como
acabou. Apesar da preparação, do foco em manufatura com processo, com a
carroceria adaptada ao carro, evitando um diversionismo na mão-de-obra, do
brilhante projeto de Dutch Darrin e
suas oito partes, não foi à frente. Aliás, pouco se desenvolveu se considerado
o pretendido e o volume construído: 25 veículos no máximo, calculam os
arqueólogos da história do automóvel. E, lamentavelmente, sequer existe uma em
condições de exposição para mostrar o bom projeto do DKW Darrin, e sua incrível
carroceria de 8 partes – vamos combinar,
a dificuldade de sobrevivência num mercado rico e variado em produtos como o
estadunidense, para um carro com motor em ciclo 2T, e encontrar mecânico com a
ferramentinha de marcar o ponto de ignição...acaba com qualquer um.
Foi também o último projeto de automóvel completa da lavra de Darrin.
Foi também o último projeto de automóvel completa da lavra de Darrin.
Acho muito legal ver o Nasser sair daquele formato semanal de notícias para nos contar estas histórias.
ResponderExcluirEu também, pois estas histórias põe-nos a pensar em viés diferente, a analisar sucessos e fracassos; nas soluções que outrora eram possíveis e hoje não mais, e vice-versa.
ExcluirNada melhor do que a história para nos proporcionar momentos de reflexão - e claro, também bons momentos de entretenimento; o aprender sorrindo.
Esse carro deveria ter vindo para o Brasil, competir com o Alpine (Willis Interlagos). Baixo peso, conversível e com mecânica DKW, comum no Brasil, fariam do DKW Darrin um sucesso por aqui! Parabéns pelo texto e pelo blog.
ResponderExcluirDaniel Libardi
Nasser, uma enciclopédia automotiva
ResponderExcluirObrigado RN!
ResponderExcluir______
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Os DKW marcaram época aqui no Brasil... lembro bem na década de 70 ... qta inovação automotiva simplesmente foi esquecida, ignorada ou foi sub-utilizada na evolução automotiva...
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