google.com, pub-3521758178363208, DIRECT, f08c47fec0942fa0 OS TRÊS MELHORES EMPREGOS DO MUNDO - AUTOentusiastas Classic (2008-2014)

OS TRÊS MELHORES EMPREGOS DO MUNDO

Bob Wallace e mais um dia duro de trabalho (foto Jalopnik)

"Jornalista, revista Rolling Stone, 1976 a 1979 
Produtor, Atlantic Records, 1964 a 1971
Qualquer tipo de músico, exceto clássico ou rap 
Diretor de cinema, qualquer tipo exceto alemão ou mudo 
Arquiteto (trocar por dono de loja de discos)"

A certa altura do filme “Alta fidelidade”, o protagonista Rob Gordon (personagem do sempre ótimo ator John Cusack) chega em casa e encontra a ex-namorada lendo esta lista em voz alta, lista esta que ele mesmo tinha escrito em uma folha de papel e deixado em cima da mesa: os cinco melhores empregos de sonho.

Se você nunca viu este filme merece parar um pouco para fazê-lo; é uma grande história de encontro da liberdade por meio de um amadurecimento repentino, ainda que tardio. Uma fábula pop deliciosa sobre pessoas que, movidas por um interesse especial mútuo (no caso, a música, visto que Rob é dono de uma loja de discos raros) se encontram e firmam amizades duradouras mesmo aparentemente sem ter nada mais em comum. O apelo para os entusiastas de qualquer coisa, carros inclusive, me parece óbvio.

Mas enfim, contei isso porque sempre que o assisto novamente, penso nesta lista em particular entre as outras tantas que são feitas filme afora. A minha versão dela nunca tentei colocar em uma ordem definida, nem nunca completei os cinco. Mas existem três empregos que para mim estão claramente muito acima de todos os outros. Não nenhum deles pagava particularmente bem, mas isto, veremos, não importa. Em ordem cronológica:

Piloto de testes e competição, Maserati, ca. 1930-1969 
Piloto de testes, Lamborghini, 1963- 1975 
Editor, revista Car inglesa, 1975-1988

O fato de que no mundo real as pessoas que tiveram estes empregos tenham se conhecido, cada uma delas tendo alguma influência sobre a outra, não é mera coincidência. Nem o fato de que estas histórias convergem também para um lugar só, a cidade de Modena, na Itália. Nem, muito menos, a época em que existiram.

A nossa história começa com o encontro entre dois deles, em 1959, naquele paraíso de ilha isolado lá no fim do mundo: a Nova Zelândia. Todo ano, aproveitando o recesso de inverno europeu, algumas equipes daquele continente viajavam meio mundo para participar da temporada de competições do verão neozelandês.



Uma dessas equipes naquele ano foi a Maserati, trazendo dois magníficos 250F (acima), o lendário modelo ainda hoje considerado o ápice do F-1 de motor dianteiro. O chefe da delegação era um senhor barrigudo e simpático chamado Guerino Bertocchi. Já era uma lenda então: em 1926, quando os irmãos Maserati apareceram na Coppa Florio com o primeiro carro de sua marca (o tipo 26, de oito cilindros em linha, 1,5 litro e 120 cv), o piloto era o mais velho dos irmãos, Alfieri. Mas a seu lado estava um jovem mecânico de bordo chamado Guerino Bertocchi. Alguns dizem que Bertocchi foi o primeiro funcionário da pequena empresa, então sediada em Bolonha.

Bertocchi foi um pouco de tudo na Maserati, de mecânico a administrador, mas onde ele realmente mostrou algum talento foi dirigindo. Não o suficiente para se tornar piloto de sucesso em competições (apesar de ter tentado bastante e ser por muito tempo o “reserva” da equipe oficial), mas ainda assim, uma habilidade acima da média.

Targa Florio 1926: Alfieri Maserati e Guerino Bertocchi no tipo 26

A Maserati era, até 1957 com o 3500GT, um fabricante exclusivamente de carros de competição. Mesmo quando Adolfo Orsi (famoso empresário modenense que criou um império a partir de uma infância pobre e difícil) comprou a empresa em 1937 e a transferiu para Modena em 1939 (para um prédio hoje histórico onde a empresa ainda está), pouco mudou.

Bertocchi então passou a personificar uma função importante em qualquer empresa até hoje, com a diferença de que hoje o seu trabalho é feito por multidões de profissionais, as vezes instalados em imensos campos de prova: piloto de teste.

Hoje ser piloto de teste é algo muitas vezes enfadonho, marcado pela repetição e por procedimentos rígidos, e com muito pouca análise (que fica a cargo de outros profissionais). Naquela época era totalmente diferente. Era o piloto de testes que encontrava todos os problemas de todos os sistemas de um carro, e sugeria soluções em conjunto com os engenheiros e os testava de novo. Sozinho, fazia o trabalho que hoje é feito por montes de engenheiros de desempenho e integração, por imensos laboratórios diversos, e um batalhão de gente. Era um campo de provas personificado. E tinha enorme influência sobre o produto final, portanto. E passava a vasta maioria de seu tempo nas estradas, dirigindo.

Pois bem, voltando ao verão da Nova Zelândia em 1959, uma das missões de Bertocchi era checar como andavam as equipes locais que usavam Maseratis. Na equipe de John Mansel, que tentava manter com um dos primeiros 250F ainda competitivo com um orçamento pífio, descobriu que o carro já tinha corrido cinco vezes naquele ano sem ter o cabeçote desmontado. Quando perguntou a Mansel como isso era possível (as molas de válvulas do 250F duravam pouco e tinham que ser trocadas depois de cada corrida), este responde que não sabe, mas “fale com os meninos ali que eles te explicam”.

Guerino Bertochi no tipo 61 da Camoradi

Bertocchi então se aproxima de dois meninos de macacão, todos sujos de graxa, que davam uma pausa no trabalho fumando enquanto o velho 250F saía para mais uma volta de treino. Os dois pareciam nem ter saído da adolescência, meninos mesmo. Guerino pergunta para o mais alto dos dois, um loirinho magrelo de cabelo escovinha chamado Bob Wallace.

Wallace explica então que o segredo era nada menos que a famosa criatividade kiwi (apelido dos neozelandeses, que vem da ave-símbolo do país) em ação. Vivendo em uma ilha isolada no fim do mundo, esta criatividade apareceu e floresceu espontaneamente e se tornou conhecida característica dos seus cidadãos: criativos e sem preguiça alguma, os kiwis são capazes de verdadeiros milagres mecânicos. Um exemplo era o “segredo” de Wallace: sem peças de reposição, o rapaz pegou uma mola de Maserati e foi ao ferro-velho local; depois de muito procurar descobriu que as molas dos caminhões Chevrolet de seis cilindros em linha serviam perfeitamente. Aparentemente, nunca mais tiveram que ser trocadas...

Impressionado com a habilidade do menino, Bertocchi diz para ele que o seu futuro não estava ali, mas sim em equipes de competições de fábrica, de preferência a Maserati. “Se você decidir vir para a Europa, me procure assim que chegar a Modena!”

Não era o que se pode chamar de convite formal, mas era um convite. O jovem de 20 anos então, no ano seguinte, faz o impensável: arruma suas malas e sua caixa de ferramentas e parte para tentar a vida a milhares de quilômetros de sua ilha natal. E sem falar uma palavra de italiano...

Ao chegar lá as coisas não começam bem: o falastrão Bertocchi provavelmente não acreditava que o moleque neozelandês ia levar a sério seu convite quando o fez. Infelizmente, não havia lugar para ele na Maserati. Wallace acaba por arrumar emprego com um americano: Loyd “Lucky” Casner era um piloto de avião que se apaixonara por Maseratis de competição e que tinha pretensões de ser piloto, mas que ficou famoso como dono de equipe: a sua equipe, Camoradi, serviu no início dos anos 1960 como uma equipe semi-oficial da marca, competindo principalmente com o novo tipo 61 “Birdcage”.

Masten Gregory no tipo 61 "birdcage" da Camoradi. Pintura de Nicholas Watts

Wallace então vira peça-chave na Camoradi, e com ela se torna conhecido no mundinho de competições européias. Aprende italiano e o dialeto de Modena; faz amizade e se diverte no tempo livre com outros expatriados vivendo na cidade naquele tempo, gente hoje famosa como Phil Hill e Wolfgang Von Trips. Leva uma vida que anos depois lembraria com carinho: “Não existe vida melhor para um jovem solteiro do que a vida que levávamos em Modena no início dos anos 60...”

Quando a Camoradi acaba, Wallace vai trabalhar na equipe do Conde Volpi, a Scuderia Serenissima, e lá, se junta com o grande Giotto Bizarrini. Lá aperfeiçoa uma vocação que até ali tomava segundo plano: a de piloto de testes e avaliação. O Conde, sabemos, estava então de relações cortadas com a Ferrari, e tinha que se virar modificando carros usados, e Wallace era peça-chave nisso; rodando com os carros nas estradas ao redor de Modena e nas pistas, e com seu conhecimento mecânico, ajudava  Bizarrini a criar carros fantásticos como seu famoso Testarossa modificado e o Breadvan.

Mas a Serenissima logo também pára, e nosso herói acaba indo trabalhar no subúrbio de Maranello, casa da Ferrari. Mas seria por pouco tempo. Corria o ano de 1963 e Ferrucio Lamborghini causava frenesi na região com sua nova fábrica em Sant'Agata Bolognese, que pretendia derrubar o todo-poderoso Enzo Ferrari de seu pedestal. Ao receber um convite para ser o piloto de testes da nova marca, decidiu arriscar. Afinal de contas, pensou, na Ferrari era apenas mais um mecânico…

Jovens com liberdade para mudar o mundo. Da esquerda para a direita, Bob Wallace, Paolo Stanzani, Ferrucio Lamborghini e Gianpaolo Dallara. Na sua frente, talvez sua maior criação, o Miura.

Escolha realmente acertada... Wallace entrou para o mais lendário time de engenharia já criado, e é um caso clássico de ser a pessoa certa na hora e lugar certos. Com Gianpaolo Dallara e Paolo Stanzani, usando um motor desenhado por Giotto Bizarrini, esta equipe de jovens (os três tinham apenas 25 anos em 1963) simplesmente vira de pernas pro ar o pequeno mas incrivelmente influente mundinho dos carros esporte italianos. Com o Miura e depois o Countach, fazem de Lamborghini um nome mundialmente conhecido e admirado da noite para o dia.

O trabalho de Wallace era realmente um sonho. Imaginem pegar um protótipo de Miura e sair para rodar pelas estradas européias de manhã, e depois passar o dia dirigindo. De tardinha, conversar com Dallara e Stanzani sobre suas anotações, e com eles discutir o que deve ser feito para melhorar o carro. Logo as modificações estavam feitas e mais um passeio repetia o ciclo novamente. E um carro esporte com placas de fabricante “Prova” (teste) dificilmente seria parado pela já tranqüila polícia italiana dos anos 1960. Fora que o tráfego era bem mais tranqüilo então. Podem imaginar isso? Não é um jeito ruim de se passar os dias... não mesmo.



O mais legal ainda é o Jota (acima): frustrado porque Ferrucio não autorizava mudanças no desenho da carroceria do Miura, aerodinamicamente falha por gerar muita sustentação (lift) dianteira, Wallace simplesmente o faz sozinho em seu carro de testes. Este carro, continuamente aperfeiçoado em tudo pelo seu “dono”, e com um objetivo inicial de servir para competições, se tornaria o ápice do modelo. Mas seria apenas mais um protótipo se em uma de suas visitas o Xá do Irã, famoso por sua paixão pelos carros de Modena, não encomendasse uma cópia para si. No fim, apenas seis cópias desse monstro de 385 cv são vendidos.

Mas o mais famoso trabalho de Wallace foram os três anos de estrada que transformaram um psicodélico protótipo de Bertone em um carro de verdade. Que fizeram de uma carroceria tão nova e diferente, quase alienígena na verdade, algo funcional e possível.  Um carro que era tão diferente e doido que acabou por ter como nome uma expressão meio chula de completa estupefação, em dialeto modenense: Countach!

Wallace e o protótipo do LP400: outro dia de trabalho duro

Mas um pouco antes do primeiro Countach aparecer, começa para nós a história de um terceiro personagem, destinado a ter outro emprego de sonho: Mel Nichols. Australiano, Nichols se formara em jornalismo e por um tempo seguiu esta profissão sem falar sobre carros. Mas como era um de nós, acaba por trabalhar na mais importante publicação australiana da época, a revista Wheels. Seu talento apareceu rápido em famosos testes com os muscle cars australianos da época como o Holden Monaro GTS e o Falcon GT-HO. Diferente de todos os outros, as histórias de Nichols aconteciam nas vastas estradas solitárias daquele imenso país, cobrindo distâncias enormes em pouquíssimo tempo…

Sabendo que Bob Wallace estava passando uma temporada de férias na Austrália, vindo de um tempo visitando a família na vizinha Nova Zelândia, Nichols então o procura para falar sobre a Europa e seu trabalho na Lamborghini. O que ouve o deixa bobo, estupefato. Wallace conta sobre uma cidadezinha num vale no centro da Itália, onde, num raio de menos de 100 km, os maiores, mais exóticos, potentes, velozes e caros GTs do mundo são criados. Uma comunidade de artesãos orgulhosos que revolve ao redor de algumas pequenas fábricas onde não só o dinheiro e o negócio movem todos, mas sim primeiramente a vontade de fare qualcosa di bello, de deixar sua marca no mundo, de preferência em automóveis totalmente apaixonantes. Ali, mesmo antes de conhecê-la, Nichols começa a ouvir um chamado que seria importantíssimo em sua vida: o chamado de Modena.

A infame foto que fez a fama de Nichols: 145 mph no Ford Falcon GT-HO phase III em 1970. Nas estradas vazias e sem limite da Austrália nessa época, este carro era capaz de médias de velocidade acima dos 200 km/h, horas seguidas a fio

Juntando algumas economias, Nichols segue os passos de Wallace e parte, com a cara e a coragem (e alguns contatos firmados por carta com alguns fabricantes) para a Itália. Corria o ano de 1973. Chega à Itália, pega um Fiat 124 cupê novinho emprestado pela Fiat e parte não para Modena, mas para Palermo, onde seria disputada pela última vez a Targa Florio, pelas ruas e vilas da Sicília. Depois de uma semana incrível com novos amigos como Brian Redman, parte para Modena, onde se instala em um hotel. Fica lá por um mês, e neste mês escreve três histórias memoráveis: “Ianque aceita um desafio siciliano” (sobre andar de Corvette no circuito da Targa Florio), “De Mônaco a Modena. Rápido” e “O Sr. Ferrari está lhe aguardando” (uma visita à fábrica e seu fundador). As três são enviadas para a revista Car inglesa, então uma publicação de vanguarda, e elas são prontamente compradas e publicadas. Em mais um mês, Mel Nichols era colaborador da revista. Em dois anos, aos 27 anos de idade, editor.

Temos que lembrar aqui do seguinte: A imprensa inglesa na época, apesar de respeitada e tecnicamente corretíssima, andava estagnada. Os veteranos jornalistas se sentiam parte da indústria e não da imprensa, e se preocupavam muito pouco com a prosa, em tentar fazer o texto minimamente interessante, exagerando no técnico. A Car mudaria tudo isso de forma definitiva, e muito imitada até hoje. Foi um australiano chamado Doug Blain que começou o famoso formato da revista: imagens artísticas e belíssimas; crítica feroz a então decadente indústria local; textos magníficos escritos com maestria sobre aventuras e carros épicos. David E. Davis, Jr disse: “Doug Blain trouxe o interesse de volta àquela floresta petrificada da imprensa automobilística inglesa.”

Nichols pegou a revista e o conceito de Blain e a levou a um nível muito superior. Sua Car é ainda hoje uma delícia de ler, cada edição uma obra de arte, uma ode a tudo que há de bom no automóvel. Sucesso estrondoso em uma época em que o entusiasmo pelo automóvel parecia, como hoje, em decadência. Se hoje consideramos os ingleses, como povo, um dos mais entusiasmados por carros, devemos certamente isso a esta revista. Diz Jeremy Clarkson, o famoso apresentador do programa Top Gear, da BBC, sobre a mais famosa história de Nichols, “Comboio!”, uma aventura a alta velocidade para trazer três Lamborghinis dourados de Modena para Londres em 1977:

Comboio!

“...é a melhor história sobre dirigir carros que já foi escrita. Estou tentando até hoje fazer coisas assim, só que em televisão.”

Uma das três histórias originais vale ter um trecho reproduzido aqui, a “De Mônaco a Modena. Rápido”, pois é emblemática para este post. Outro encontro de Nichols e Wallace, desta vez em Mônaco depois do GP de 1973. Nichols volta para Modena no protótipo do Countach, passageiro de um impassível, seguro, mas extremamente veloz Wallace:

“... nós nos livramos do tráfego, os caminhões e os túneis e chegamos ao trecho reto final, indo para casa. Estamos a 6.500 rpm em quinta marcha. Bob solta um pouco o pé abaixando a rotação para 6.000 rpm, enquanto checa a estrada adiante, embaçada pelo calor escaldante. Quando percebe que está livre, o seu pé vai ao fundo de novo, e a patada é tão forte que você jura que estava em segunda ou terceira. Ele estabiliza a 6.700 rpm, a assim a gente permanece por muito tempo. Eu estou sem noção de velocidade, porque o protótipo não tem velocímetro. Certamente estamos andando bem, mas somente depois, na minha cama de hotel, eu faço a conta: a quinta dá 40 km/h/1.000 rpm, o que significa 268 km/h... Nunca iria imaginar tanto, tão estáveis e seguros que estávamos…”

O LP400 no pátio da fábrica, 1974

Esta história sozinha é citada repetidas vezes por todo mundo, um clássico extremamente influente. Relendo-a hoje o que chama a atenção é a segurança e tranqüilidade de Wallace dirigindo o carro. Contraste total com o seu mentor Bertocchi, da Maserati. Este gostava de colocar medo em todo mundo, sempre freando no último momento, e ultrapassando somente quando parecia impossível. Quanto mais assustado o passageiro, mais Bertocchi estava feliz. Já Wallace chegava a ser frio demais: na viagem com Nichols recusou as provocações de um Ferrari Daytona, e manteve sua velocidade segura. Era um profissional, que odiava ter que, por exemplo, perder quatro dias em Mônaco para deixar o carro exposto ao público, quando podia estar trabalhando com ele para resolver os problemas. Sem contar o romantismo incrível do trabalho solitário de nosso herói: aquele foi apenas mais um dia de trabalho em seu “escritório”...

E não é à toa que Wallace e Bertocchi tiveram fins bem diversos. Com o fim do desenvolvimento do Countach em 1975, Wallace já estava cansado do clima industrial ruim da Itália, das greves, intrigas, comunismo em crescimento, das politicagens internas da empresa...Com as novas normas de impacto e emissões vindas dos EUA, o desenvolvimento de automóveis prometia complicar sobremaneira, tirando o romantismo e a diversão. Decide que a graça tinha acabado. Se muda para os EUA, onde abre uma oficina para cuidar de carros italianos exóticos perto do aeroporto de Houston, Texas, onde vive até seu último dia, 17 de setembro de 2013.

Wallace dirigindo, no fim de seus dias de Lamborghini (foto ruoteclassiche)

Já Bertocchi tem fim bem diferente. Quando os Orsi vendem a Maserati para os franceses da Citroën, este está tão entrincheirado na empresa que se achava imortal. Com seu irmão e seu filho Aurelio ocupando cargos de diretor, e ele mesmo chefe da inspeção final e testes, não acreditava que nada pudesse abalar sua situação. Nem ligou quando os franceses começaram a controlar estoques e descobriram que ele mantinha um esquema escuso de pedir peças de reposição em duplicata para vender fora da empresa. Primeiro seu irmão e seu filho Aurelio foram demitidos. Com Aurelio imediatamente contratado por Alejandro De Tomaso, o falastrão Guerino Bertocchi começa a falar para os clientes que o novo Maserati Bora não prestava, e que eles deviam comprar um Pantera de seu filho... A Citroën mandou um funcionário se passar por um cliente francês, com um gravador no bolso do paletó, gravou tudo, e o demitiu sumariamente. Fim lamentável para uma verdadeira lenda viva da empresa.

Um Deauville, último carro que Bertocchi dirigiu

Contratado imediatamente por DeTomaso, Bertocchi acaba por ficar finalmente sem sorte e vem a falecer quando o De Tomaso Deauville que dirigia colide com um caminhão, numa demonstração para um cliente alemão, que por sorte escapa com vida.

Mel Nichols, em foto recente

Já Mel Nichols ainda está entre nós, apesar de raramente escrever hoje, ocupado com cargos administrativos de sucesso na empresa que publica a Autocar inglesa. Ele mesmo diz que:

“A vida mudou nas revistas automobilísticas de hoje. As matérias extensas e indulgentes que adorávamos são menos comuns (apesar de ainda apreciadas por alguns leitores), enquanto nos concentramos em escrever menos e mais rápido, perseguindo um fluxo mais denso de notícias e alimentando os websites que vão governar nosso futuro.”

Incidentalmente, não posso deixar de notar, este humilde blog nasceu para remar contra esta maré. Aqui escrevemos o que gostaríamos de ler, sem pressa e sem nenhum outro compromisso a não ser a qualidade. Se vamos ter sucesso com isso ou não, só o tempo dirá...

Bob Wallace realmente soube quando sair: os anos 1970 e 1980 mudaram tudo em Modena e hoje o que era artesanal, artístico e humano se tornou meramente técnico e industrial. O romance de três jovens engenheiros mudando o panorama mundial dos automóveis ficou no passado. Hoje, a Lamborghini, a Maserati e a Ferrari diferem de qualquer fábrica do mundo apenas na qualidade e preço dos carros que fazem; o desenvolvimento é feito por um batalhão de engenheiros que, como uma fábrica de projetos, são reduzidos a tarefas pequenas e repetitivas, com cada vez menos espaço para erro. De carros que eram a visão de engenheiros especiais como Dallara e Alfieri, temos hoje apenas carros supereficientes, mas sem paixão aparente em sua criação, sem o lampejo do humano que os fazia brilhar de forma especial.

Bob Wallace em 2013, pouco antes de falecer,  aqui em sua oficina

E agora, com o recente falecimento de Wallace, parece que uma última ligação com aquele tempo também se foi. Os santos lá em cima que se preparem; o som de um protótipo Lamborghini qualquer deve estar ecoando seu característico berro de doze cilindros pelas estradas do céu... Desejo apenas uma coisa a este que foi um dos meus ídolos, e o cara com o melhor emprego com o qual um entusiasta pode sonhar:

Godspeed, Bob Wallace!

MAO


Nota: o tradicional "Saiba mais" desta vez virá num post separado. Tenho muito a falar sobre os três livros que inspiraram este post, então vocês vão ter que esperar um pouco. Até lá!

34 comentários :

  1. Belíssimo texto.

    Acabou de cair a ficha para mim: realmente, o que me faz às vezes ficar chateado em minha profissão, é a falta de um certo idealismo, e também romantismo. Hoje em dia, a palavra da vez é: "Quanto ganharemos com isso?". Existem coisas que são incompatíveis, e a paixão e a fria visão financeira são exemplos disto.
    Lembrei-me da época em que tinha meus 22, 23 anos de idade; eu trabalhava em uma equipe pequena de Super Stock (categoria abaixo da Stock Car da época), e mesmo estando somente em 4 pessoas, tínhamos verdadeira paixão pelo trabalho, tanto que varávamos madrugadas em busca de detalhes preciosistas que nos fariam ganhar alguns décimos de segundo. Tudo isto para compensar a falta de recursos financeiros.
    Não tenham dúvida: é a paixão que move o mundo.

    Parabéns pelo artigo, MAO.

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    1. ArkAngel,

      Quem nunca trabalhou com paixão por salário baixo ou inexistente pode não acreditar, mas é o que lembramos, onde aprendemos e crescemos. É isso aí!

      Obrigado pelos elogios!
      MAO

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  2. Outra obra-prima de texto. Personagens interessantíssimos assim merecem ser mais conhecidos e apreciados.

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  3. Obrigado, MAO, por mais este poema em prosa. Só uma correção: na foto da ruoteclassiche, Wallace não está dirigindo um Urraco, mas sim um dos protótipos do Countach. Dá para perceber pela "escotilha" na janela lateral.

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    1. Alexandre,

      Acho que você tem razão, vou acertar lá.

      Obrigado a você pela visita!
      Forte abraço,
      MAO

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    2. MAO, por falar em correção.
      Sem querer ser chato mas já sendo.
      O nome correto do carro é Deauville e não Deuville como constou na legenda da foto.
      Aliás tem um em São Paulo e é um belo automóvel.
      Abraços.

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    3. CSS
      Pelo contrário, é ótimo quando um leitor aponta algum erro. Já foi corrigido.

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  4. Texto incrível MAO!! Ótima história, ótimos personagens e a ligação entre eles é coisa de filme de cinema!!
    O AE é sim um refúgio de entusiasmo e vocês estão no caminho certo! Quanto maior é o texto e quanto mais voltas ele dá, melhor pra mim!

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  5. Fiquei arrepiado com o texto MAO. Larguei uma promissora carreira no ramo de TI para me aventurar no mundo automotivo. Paixão de infância, doença de longa data, loucura sem cura ou qualquer que seja a 0 denominação dada científicamente para o que sinto por estuturas metálicas movidas por motores a combustão interna. Porém ao adentrar a familia que faço parte hoje, percebi que muito da paixão contada na revistas que "poluiam" minha mente com ideias interessantes sobre ter o melhor emprego do mundo não passava de uma ideologia fomentada por mais alguns loucos apaixonados por carro. Dentro da indústria hoje, pouco se vê de paixão. carros sao apenas meio de gerar lucro e sentimento é algo que é desprezado, seja do lado da engenharia, quanto dos outros lados. Se me arrependo? as vezes sim... preferia as vezes continuar o mesmo sonhador, imaginando pessoas apaixonadas por carros, trabalhando para ganhar seu sustento, como textos lindos comp esse que tive o prazer de acabar de ler há 5 minutos.

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    1. Tentei complementar a resposta do Marco, mas me faltou uma argumentação mais forte, a adicionar. Até que ontem me deparei com um artigo delicioso. Segue um trecho (Lutz = Bob Lutz):

      "...
      No matter where he went, Lutz fed the image of his mystique as a "car guy," that most capricious of motorists. "In every automobile company I found that when I got there, my reputation would cause the car guys to come out of the woodwork," he said. "Every company's got them. But in a lot of companies, they lay low. Because they're afraid the financial system is going to brand them as irresponsible. But when I get there, it suddenly becomes legitimate. Then you could empower them, and they invariably do great work."

      Such is the tao of Lutz, a constant battle between the "financial guys" -- who are all in New York, he dismisses, and which, given his background, is a considerable source of irony -- and the "car guys" in the trenches of the engineering division, who just want to be left alone to do great work.
      ..."

      As alusões do gênero não se limitam ao trecho citado, vale a leitura ao colega entusiasta.
      http://www.autoweek.com/article/20131126/CARNEWS01/131129880

      Não tenha dúvida que este é um dilema de muitas pessoas. Mas há na Indústria atual, sem dúvida, ainda espaço para muito entusiasmo. Precisa haver, caso contrário a indústria automotiva sucumbirá. Se o sujeito que faz o carro não é apaixonado por aquilo, como esperarmos que o cliente o seja ? Projeta-se, constroi-se, vende-se, "coisas" para locomoção. Aí algum especialista da moda descobre que, pasmem, os jovens não nutrem mais aquela admiração e ânsia por um automóvel. Meu amigo, multitasking. Nós estamos a anos relegando a uma posição cada vez mais baixa, o critério da paixão. E ao citá-la, de repente, parte-se do princípio que ela não pode ser aliada a critérios sem dúvida fundamentais a saúde financeira de uma empresa. Pode ser aliada, e será, gearheads que vejam uma porta entre-aberta não pensarão duas vezes. Esse compromisso aliás não é coisa nova, sempre existiu, o que faltam é pessoas dedicadas a optimizá-lo.

      Marco, segunda vez que comento um post seu, segunda vez bastante impressionado. Parabéns pelo apanhado histórico, tenho certeza que não foi fácil. Muito obrigado por nos alimentar com formidável cultura automotiva. Olhar para frente relevando o passado é certamente o caminho do sucesso, mas nossa ignorância (diminuída por pessoas como você) ameaça sempre esta rota.

      É muito gostoso estas doses de saudosismo, saudável. Mas hoje temos portas para concretizarmos o que esse pessoal uma vez já fez. A lógica está conosco. Anônimo, manda bala e faz aquele treco de encher o peito, orgulho do papai !!!!!!!!!!!


      Eduardo Cenci

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  6. Anonimo,

    Sim, hoje a indústria está triste. Entusiasmo nenhum, dinheiro e interesses políticos e de carreira na frente de tudo. Um mar se mediocridade guiado por pessoas que não entendem o caminho real da felicidade e realização pessoal.

    Mas não desista. Se desistirmos, eles tomam conta. Força aí.

    Sabe aquele ditado que o mal prospera quando homens de bem nada fazem? Não tenho capacidade de prender bandidos, mas posso fazer meu pouquinho todo dia para vencer este mal aí. Conto contigo para fazer o mesmo!

    Forte abraço, e obrigado pelos elogios!
    MAO

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  7. Barbaridade! Esse texto é um coice nas costas, verdadeira patada! Fantástico mesmo, MAO!
    Imagino a empolgação desses mecânicos àquela época. Puro entusiasmo! Viver assim é bom demais...

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  8. Tenho uma curiosidade imensa em saber mais sobre Pampas e Belinas com tração 4x4. Nas reportagens que encontrei não especifica nada sobre as soluções adotadas nos carros. Cambio, caixa de transferencia, diferenciais enfim tudo...
    Daria um otimo post aos senhores.

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  9. Consegui achar alguma coisa
    note como as revistas antigas eram mais interessantes.
    http://quatrorodas.abril.com.br/acervodigital/home.aspx?edicao=295&pg=50

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  10. Como sempre, sensacional...sem retoques!

    MFF

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  11. Excelente texto, desfrutei muito dessa leitura, obrigado pela oportunidade!!

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  12. vitor marques25/11/2013, 10:31

    Parabéns pelo texto MAO, era uma época em que carros eram obras de arte ligadas a pessoas pelo seu trabalho e suor e não ao marketing como é hoje.

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  13. Prezado MAO, texto impecável e arrebatador que só apaixonados pelo tema conseguem escrever e outros não menos ligados se deliciam em lêr...

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  14. MAO meu caro,
    muito bom mesmo. Aprendi finalmente o que era a Camoradi e a Sereníssima.
    E Bob Wallace faleceu há pouco, que coincidência o livro que lemos justamente nessa fase final dele !
    Ainda acredito em um pouco de romantismo nessas marcas, mas só quando vejo carros como o Lamborghini Veneno, e o exclusivo Ferrari P4/5 de Glinckenhaus. Maseratis estão em baixa na minha opinião, e Ferraris de produção normal... bem, deixa prá lá.

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  15. MAO,

    O sucesso já é uma realidade aqui. Muitos dos leitores não comentam neste espaço, mas uma parcela significativa concorda que os mais preciosos textos em língua portuguesa na internet sobre a história do automóvel e seus personagens são atualmente seus.

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    1. Nerd de Carro,

      Sei que o amigo exagera, mas obrigado pelo elogio!
      Comente sempre!
      MAO

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  16. E os 20 mil km do Bigorna?

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    1. Anônimo,

      Se você se refere ao Cruze, acho que não vou postar mais nada dele, já falei o suficiente.
      Aos 24 mil Km e prestes a sair novamente com a família pelas estradas do Brasil, de férias, continua completamente confiável. Não fiz nada nele a não ser usar, continua igual... sem assunto para post.

      Taí, bom apelido, Bigorna Vermelha!
      Grato,
      MAO

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  17. Caro MAO; Eu não oconheço, fato que lamento e talvez possa remediar um dia. Mas, por outro lado, quase o conheço atravez de suas letras, o que muito me agrada. Se este texto fosse um jogo de futebol, seria daqueles que a jogada foi tão linda que a torcida sakria de bom grado do estádio e pagaria o ingresso de novo. E se vc tivesse salário no AE, mereceria ganhá-lo em dobro. Mais uma vez, pois este não é o seu primeiro golaço nem será o ultimo. Mahar aqui no Rio fala muito bem de vc. Vindo aqui, e se for vê-lo, à tarde ou a noite, claro, diga-lhe que me sentiria horado em convidá-los para um jantar e um bom vinho (menos o Mahar que não bebe), apenas para amenidades. Diga que o convite foi do dono do "Opala Fittipaldi" .Abs e tudo de bom. MAC.

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    Respostas
    1. Caro MAC,

      Muito obrigado por suas palavras! Na verdade, elas é que são o maior pagamento!

      Estou devendo uma visita aos meus amigos cariocas, quando for lhe contato sim via Mahar.
      Grande abraço!
      MAO

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  18. Olá meu nome e Daniel, sempre gostei de automobilismo se possível falo nisso o dia inteiro e nunca encontrei algum amigo que gostasse tanto ou tivesse um bom conhecimento sobre o assunto. Até que conheci próximo aqui de casa o grande AG que enriqueceu meu conhecimento e virou um grande amigo. E acabou me apresentando este Blog, que hoje sou apaixonado e só tenho a agradecer como esse belíssimo Post sobre essa linda historia que não conhecia. Obrigado, são poucos os que intendem essa paixão o porque, que no fim deste post eu estava emocionado.

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