Em 1983, a Ford, através de sua divisão Motorsports, queria retornar ao Campeonato Mundial de Rali com o sucesso que havia experimentado no passado.
Antes de se chamar Motorsports, o braço esportivo europeu era o AVO (Advanced Vehicles Operations), Operações de Veículos Avançados, que havia criado em 1970 o Escort RS 1600, sob o comando de Walter Hayes. Esse Escort era um avanço esportivo a partir do carro básico, que já possuia tração traseira, e foi elogiado desde seu lançamento pela excelente dirigibilidade, e pelo motor Cosworth BDA (belt-driven, A series), de duplo comando acionado por correia dentada e 4 válvulas por cilindro.
Do RS (Rallye Sport) original, a Ford foi evoluindo até chegar na década de 80 ao Escort RS1700T, que não havia feito um bom papel devido à forte concorrência de várias marcas. Os participantes do campeonato mundial de rali eram Audi, Austin Rover, Lancia, Mitsubishi, Nissan, Peugeot, Porsche, Renault e Toyota. Nada fácil, portanto.
No campeonato mundial, o regulamento em vigor era o Grupo B, os famosos "carros-canhão", que levaram os pilotos e copilotos a um nível de exigência inéditos, com vários tipos de atividades de relaxamento e concentração entre os estágios de cada prova, devido às velocidades alcançadas.
Era esse, então, o palco que a Ford Motorsport deveria adentrar. O rali é uma modalidade de esporte a motor de enorme importância na Europa, especialmente na Inglaterra, que poderia ter seu nome mudado para "Ilha dos Autoentusiastas", ou, se considerarmos todo o Reino Unido, "Arquipélago dos Autoentusiastas".
Na época, a presença do público ao longo das estradas durante a etapa britânica do mundial era de dois milhões de pessoas, fora a audiência de televisão.
Os requisitos para um novo carro, projeto B200, pensado para enfrentar tudo isso, estavam traçados:
Foram contatados Gordon Murray e Patrick Head para tentar uma contratação para o projeto, mas ambos estavam sem possibilidade de sair de suas atividades correntes. A Ford, então, trabalhou de forma a gerenciar um projeto dentro de casa, com auxílio de especialistas onde fosse necessário.
Na época, a presença do público ao longo das estradas durante a etapa britânica do mundial era de dois milhões de pessoas, fora a audiência de televisão.
Os requisitos para um novo carro, projeto B200, pensado para enfrentar tudo isso, estavam traçados:
- o máximo de peças Ford existentes, visando um projeto rápido e fácil manutenção;
- utilizar o motor 1700T, que havia sido produzido em grande quantidade;
- acesso mecânico facilitado, com cobertura dianteira e traseira escamoteáveis, expondo todas as suspensões, freios e direção, bem como tanque de combustível e motor;
- segurança máxima, pois o carro deveria ser homologado para uso em ruas e estradas;
- visibilidade excelente.
Foram contatados Gordon Murray e Patrick Head para tentar uma contratação para o projeto, mas ambos estavam sem possibilidade de sair de suas atividades correntes. A Ford, então, trabalhou de forma a gerenciar um projeto dentro de casa, com auxílio de especialistas onde fosse necessário.
Em setembro de 1983, havia quatro conceitos básicos prontos, oriundos de 30 desenhos, ou sketches, onde os requisitos haviam sido considerados.
Conhecendo o que a Ford havia feito há tantas décadas, é claro que o carro não poderia ser apenas eficiente, deveria ter também um estilo agradável e ter características internacionais, como convém a uma empresa presente em quase todo o mundo. Os desenhos feitos dentro de casa foram confrontados com a proposta do estúdio Ghia, e este acabou sendo o escolhido, após muita discussão com Filipo Sapino, o chefão do estúdio na época, que achava absurdo utilizar o pára-brisa do Sierra, bem como os quadros de vidros das portas deste.
No final, o requisito de fácil troca de peças da Ford foi aceito. Esse foi um ponto importante, pois sabe-se que vidros muito inclinados provocam reflexos desagradáveis ou mesmo perigosos, além da deformação da imagem ao passar pela espessura do vidro. Somado a isso, quanto mais vertical, menor a insolação dos ocupantes, fator importante para conforto e conseqüente concentração.
O desenho do interior é da própria Ford, já tornada célebre pela perfeição ergonômica do Escort Mk3, o primeiro que veio a ser produzido no Brasil. Usava vários componentes existentes como:
- lanternas traseiras, alavanca de cãmbio, puxador de porta, maçaneta de vidro, todos do Sierra;
- relógio e cronômetro de teto do XR3i
.
Mecânicamente, o carro foi definido com 2 lugares, motor BDT de 1,804 litro, com 253 cv, instalado longitudinalmente entre-eixos na traseira, inclinado de forma a permitir a passagem de um cardã até à caixa de câmbio (transeixo) acoplada ao eixo dianteiro, e depois, dela ao eixo traseiro.
A transmissão trazia três diferenciais de acoplamento viscoso, desenvolvida pela Ferguson Formula Developments, a mesma célebre empresa que fez o Jensen Interceptor com tração nas 4 rodas (ver aqui). O acoplamento viscoso com silicone e multidisco era ainda novidade, e a Ford foi ousada em colocar as esperanças em algo relamente novo, atitude não muito comum em empresas grandes.
Tudo isso trouxe uma distribuição de peso de 50% em cada eixo, e a variação de distribuição de força variava de 36 frente e 63 traseira no asfalto, até 46:54 em superfícies soltas.
O acionamento de tração nas 4 rodas era feito por alavanca simples mecânica, para a maior confiabilidade possível.
O chassis foi definido como de aço e colméia de alumínio, (honeycomb), com dois subchassis de aço, um dianteiro e outro traseiro, para as suspensões. A seção central, onde está a cabine dos ocupantes, em compósito de fibra de carbono e Kevlar para o máximo de resistência a impactos, recheada por uma gaiola de tubos de aço. Cintos de 4 pontos e colunas dianteiras muito mais fortes do que de veículos comuns completavam a célula de segurança do pequeno Ford.
Os freios eram 4 discos com ventilação reforçada por dutos, suspensões ajustáveis com 2 molas e 2 amortecedores por roda, de braços triangulares superpostos na frente e atrás.
Os painéis de carroceria de efeito apenas estético e aerodinâmico, foram feitos em compósito de plástico e fibra de vidro, e sempre pintados de branco, em todas as unidades.
No mesmo mês de setembro, o pacote do projeto foi apresentado à direção da Ford na Europa e à diretoria de operações internacionais, comandada por ninguém menos que Robert A. Lutz, o ainda não tão famoso Bob, que com seu típico entusiasmo automobilístico, aprovou junto aos outros diretores a quantia de 250 mil libras esterlinas para a construção de um protótipo até março de 1984.
Apesar de algumas vozes contrárias ao investimento lógico (elas sempre existem dentro das empresas), foi claramente explicado pelo pessoal de marketing que o carro de rali reforça a imagem do produto, que é o carro, ao passo que uma participação em Fórmula 1 ajuda a reforçar a imagem da marca como um todo, já que as conexões com os carros de rua não são facilmente visíveis.
Em um tempo com ainda não muitos computadores, nem facilidade de transmissão de dados, engenheiros da Ford partiram para Turim, com desenhos dos componentes mecânicos, para que a Ghia colocasse suas ideias ao redor. Após a aprovação do primeiro mock-up (maquete) pela Ford, as informações de construção e os modelos físicos das peças foram enviados à empresa de Ken Atweel, fabricante de réplicas do GT 40, para a construção da primeira carroceria do protótipo número 001.
Depois de tudo montado, em 12 de março de 1984 o carro foi submetido à direção da empresa, e foi dada aprovação para que o programa fosse em frente, com mais dois protótipos para testes de rua, dois para rali e dois para certificação do Reino Unido, inclusive um para ser destruído em teste de impacto a 48 km/h.
Na fase de desenvolvimento dois profissionais foram chamados a participar. Malcolm Wilson, piloto de rali, e hoje o chefe de equipe da Ford no mundial, através de sua empresa M-Sports, e Jackie Stewart, que dispensa apresentações, para o refinamento de dirigibilidade em asfalto.
Esses testes mostraram superaquecimento de motor, dos freios e dos ocupantes, todos problemas solucionados pela adição das entradas de ar no teto. O intercooler, trocador de calor ar-ar, foi colocado justamente no alto, e as duas "orelhas" vistas apenas em algumas fotos, são para refrigeração dos freios traseiros, e foram colocadas apenas nos carros de competição, não nos de uso em rua.
Interessante foi a empresa responsável pelas peças em plástico/fibra de vidro para a produção dos cinco protótipos após o 001. A Reliant, fabricante do modelo Robin, de 3 rodas, foi a escolhida, e várias outras atividades foram confiadas a esta estranha empresa, notória por fazer um dos carros mais fora dos padrões existentes. Tendo tido bons resultados, a Reliant foi responsável também pela engenharia de todas as fixações e articulações dos painéis externos, pela cápsula de fibra de carbono e Kevlar, além da montagem final de todos os carros.
O lugar onde os RS 200 nasciam era uma antiga fábrica de munições da Segunda Guerra Mundial, em Shenstone, uma edificação com paredes resistentes a bombas feitas de muito concreto, por isso mesmo, muito frias no terrível tempo inglês. Mas o carro que de lá sairia nada tinha de frio.
Após a apresentação ao público no Salão de Turim em 12 de novembro de 1984, a Ford anunciou o retorno ao Campeonato Mundial para 1986, o que requeria um final de 1984 sem pausa para descanso, e a busca de participações no campeonato britânico já em 1985. Neste ano, Malcolm Wilson venceria uma prova do campeonato britânico, o Lindsfarne, na primeira participação do carro.
Bastante promissor, mas com alguns problemas, como a potência de 456 cv nessa versão de rali de fábrica, menor que a dos Lancia e Peugeot do mundial, e a massa de 1.180 kg, também acima dos dois principais concorrentes.
A construção dos 194 exemplares de produção foi atribulada, e requereu esforços de todo o time. Um gerente de qualidade estava certo dia em um fornecedor próximo a Londres, quando foi avisado que deveria trazer algumas peças que estavam com entrega atrasada. Rapidamente após a finalização das mesmas, estas foram colocadas no porta-malas e este gerente seguiu em direção a Shenstone, para em poucos minutos, sentir um cheiro de queimado, e descobrir um incêndio em seu carro, pois a soldagem das peças ainda estava muito quente, tendo causado fogo.
Em novembro de 1985 o Departamento de Transportes do Reino Unido deu sua aprovação para que o carro circulasse em vias públicas, e a FISA, o poder desportivo da FIA na época, homologou o carro para competições internacionais em janeiro de 1986, após a contagem de todas as 200 unidades necessárias para homologação no Grupo B, que não puderam ser entregues aos clientes antes desse processo.
Mesmo assim, dadas as características excepcionais de dirigibilidade, e uma suspensão sem igual à época, a Ford Motorsport entrou com equipe oficial no Mundial de 1986, conseguindo de cara um terceiro lugar no Rali da Suécia, com Kalle Grundel. (foto abaixo).No mesmo mês de fevereiro, o primeiro carro de cliente foi entregue, o chassis 082.
O Rali de Portugal, em março, começaria a mudar o futuro do RS 200 e de toda uma geração de carros espetaculares. Joaquim Santos, participando como piloto local oficial, sofreu um acidente que matou três espectadores, notórios em ficar no meio da estrada naquela prova. Fanatismo puro.
Dois meses depois, na ilha da Córsega, Henri Toivonen e Sérgio Cresto pereceram quando seu Lancia Delta S4 saiu da estrada e caiu em uma ravina, provocando uma explosão. Imediatamente a FISA determinou regras de limitação de potência, para ao final de 1986, como fora anunciado, acabar com o Grupo B, formado por carros de no mínimo 200 unidades produzidas dentro do intervalo de um ano, com turbocompressores, tração integral e potências absurdas para a época e para o tamanho dos motores derivados de unidades de rua.
Faltaria desenvolvimento para o belo carro, que acabou sendo bastante usado em provas locais, principalmete no "Arquipélago dos Autoentusiastas" e mais notadamente, nas provas de autocross, categoria que pode ser classificada de insana, corrida em terra, com a largada em asfalto.
Hoje, sempre se encontra algum RS 200 à venda na Europa, e dificilmente algum é original em sua totalidade, pois a maioria foi utilizada em competições, com potências sempre variando.
JJ
Dois meses depois, na ilha da Córsega, Henri Toivonen e Sérgio Cresto pereceram quando seu Lancia Delta S4 saiu da estrada e caiu em uma ravina, provocando uma explosão. Imediatamente a FISA determinou regras de limitação de potência, para ao final de 1986, como fora anunciado, acabar com o Grupo B, formado por carros de no mínimo 200 unidades produzidas dentro do intervalo de um ano, com turbocompressores, tração integral e potências absurdas para a época e para o tamanho dos motores derivados de unidades de rua.
Faltaria desenvolvimento para o belo carro, que acabou sendo bastante usado em provas locais, principalmete no "Arquipélago dos Autoentusiastas" e mais notadamente, nas provas de autocross, categoria que pode ser classificada de insana, corrida em terra, com a largada em asfalto.
Hoje, sempre se encontra algum RS 200 à venda na Europa, e dificilmente algum é original em sua totalidade, pois a maioria foi utilizada em competições, com potências sempre variando.
JJ
fotos:
preromanbritain.com
forums.motortrend.com
groupbrally.com
forum.autohoje.com
Obrigado pelo texto JJ, acho fantástico os carros de Rally, em especial esses monstros do grupo B.
ResponderExcluirQue venham outros posts sobre os outros monstros do brupo B. :)
JJ, excelente post! O RS200 e o Delta S4 foram os mais belos carros do Grupo B, apesar de quase indomáveis. Show!
ResponderExcluirAlguém reparou a bitola do escape do monstrinho??? Turbo ignorante, 40cm de escape de 4" de diametro, que coisa linda!!! Sou louco pelas maquinas do Grupo B, e admiro muito os insanos que as pilotavam.
ResponderExcluirJJ, o Delta S4 merecia um post semelhante... que tal?
quem teve um RS 200 durante um tempo, não sei se ainda o tem, é o Udo Kruse, ex-presidente da Ford Autolatina. lembro dele dizendo numa entrevista, há muito tempo atrás, e eu querendo saber que diabos era esse Ford que não conhecia...
ResponderExcluirJoão, não tinha insano, tinha ET!
ResponderExcluirCom o aparato que se tem hoje não é difícil o gropo B voltar.
Ia me esquecendo de falar do carro.
ResponderExcluirÉ louvável terem se preocupado com a aparência do RS 200. Só acho o preço um tiquinho alto demais já que assaltaram as prateleiras de peças de Fords mundanos.
Quanto a Reliant, ela foi a segunda maior fabricante de carros de fibra de vidro, só perdendo pro Corvette.
Quem viu o Top Gear domingo sabe, hehe.
Ótimo posto JJ, esse carrinho era realmente um projeto muito interessante mas que infelizmente teve vida curta (menos ainda que o famoso e mortal S4).
ResponderExcluirEra de uma elegância ímpar sendo para mim o segundo carro mais bonito de rally dos anos 80 sendo superado apenas pelo longo e baixo Lancia 037 rally.
Pena que aqueles acidentes horríveis - tenho o anuário de 1986 detalhando - acabaram com esses carros titânicos.
JJ
ResponderExcluirVocê citou o Walter Hayes. A história dele precisa ser conhecida, pois é uma beleza e uma aula. Recomendo lerem-na no Wikipedia em http://en.wikipedia.org/wiki/Walter_Hayes
Esses carros do Grupo B foram o auge em relação a ralis que já existiu ou existirá. Para a época era o top de tecnologia, mesmo que com pouquíssima eletrônica embarcada, o ápice da mecânica pura.
ResponderExcluirSem falar das histórias/mitos/lendas que esses monstros deixaram, como a sensacional passagem do Delta S4 do Toivonen andando no Estoril e marcando um tempo de 1,5 segundos acima da pole do Senna no mesmo ano...
O gozado é que os carros da atualidade do WRC são mais rápidos que os do Grupo B, com a metáde da potência e mais pesados. Evolução exponencial da tecnologia.
Pra mim
O Grupo B merecia um super post aqui no AE!!!!!
http://www2.uol.com.br/bestcars/supercar/grupob-1.htm
Também tenho o anuário de 1986...
ResponderExcluirUma deliciosa e insana viagem!!!!
Bravo!!
ResponderExcluirabs,
Faço coro ao pedido de um grande post sobre os monstros do grupo B.
ResponderExcluirMark
Nao tem como nao morrer: "http://www.youtube.com/watch?v=lWHnfm3LN4Q&feature=related"
ResponderExcluirreparem no som do motor! pela aceleracao (+ e -) parece que não ha tracao. tem q ser bom de braco mesmo.
"Bom de braço"????
ResponderExcluirPra mim, foram OS MELHORES PILOTOS que já houveram no automobilismo!!!
That's why racing needs TWO balls...
ResponderExcluirJJ, que maravilha de post!!! Parabéns!!! curti demais!!!
ResponderExcluirJoão Lucas, 4"? eu juraria que tem mais... que medo!!!
Thiago, valeu pelo link, fechou o post com chave de ouro... que loucura! sei lá que velocidade o piloto estava, mas e aquelas ribanceiras? Pikes Peak, hoje? só no playstation! rs*
Abs
Aliás, pra quem não viu o link do Thiago, este faz links para vários outros videos um mais loko que o outro! RECOMENDO!
ResponderExcluirFla3D, Mark,Joao Lucas e Galto,
ResponderExcluirtenho nos planso escrever sobre o Grupo B, lógico. Mas não sei quando conseguirei.
Bob,
Walter Hayes tem uma história que também merece ser registrada no AUTOentusiastas. Qualquer hora eu tomo coragem para falar dele.
JJ,
ResponderExcluirÓtimo texto, adorei. Aprendi um monte, thanks!
MAO
Que maravilha !!!!
ResponderExcluirTô vendo que encontrei o melhor blog sobre carros na net mesmo !!!
Muito interessante a história do RS200. Sou fã do Grupo B (mesmo sendo "novinho" se comparado a época). Outros carros que poderiam ser mostrados aqui seriam os Audi quattro, Lancia Delta S1 e, acredito eu, os poucos conhecidos "da geral", o Metro 6R4, Renault 5 Turbo, Mazda RX7 Rally entre outros.
Abraços
Kiko Molinari