Simca (centro) fatura por dentro um DKW (esq.) e Renault Gordinis atrás (foto Luiz Cláudio Nasser) |
Corridas são corridas, criam entorno movimentado, elétrico,
motivado, e nos anos 1960, quando o país sorria, como disse sábia e
analiticamente Nélson Rodrigues, abandonando o complexo de vira-latas, era caso
à parte.
Há que se lembrar, até o finzinho da década 1950, automóvel
era artigo quase inatingível, raro, caro, e corridas com eles só para os playboys de
pais endinheirados, permitindo-se o desfrute de arriscar a integridade daquele
objeto de desejo de esmagador percentual da população pedestre. Corridas de
automóveis quando o único autódromo era o de Interlagos, em São. Paulo,
disputavam-se em circuitos de rua, inseguros por deficiência no planejamento e
execução da segurança. Creio, testemunha de época, ficar na beirada da calçada,
especialmente nas curvas, para ver passagens, pegas, disputas, derrapagens,
quase acidentes e acidentes, na verdade arriscando a vida, fazia parte da
estamina, tanto de quem corria, quanto de quem assistia ao usufruto daquelas
mágicas carruagens de sonho. Pintadas, decoradas, barulhentas, transportando os
devaneios de todos.
No Goiás
No cenário pobre porém entusiasmado dos anos 1960, quando o
Brasil descobria o ente automóvel e o início da democratização de seu usufruto,
no panorama dos veículos aqui produzidos — tempo de recordistas 99% de
nacionalização — haviam núcleos dedicados às diversas marcas. São Paulo, meca
do negócio, destacava-se pela preparação e melhorias de desenvolvimento para
Renault Gordini e DKW-Vemag. Petrópolis, a Cidade Imperial, era base de
desenvolvimento dos FNM 2000 JK — simples, a Fábrica Nacional de Motores,
sua produtora, ficava no plano, a raiz da serra. Simca era assunto
para Porto Alegre, especialmente porque Breno Fornari, projetista mecânico,
corredor, transportou seu talento e conhecimentos na preparação de Fords com
válvulas no bloco, os 8BA, 3.700 cm³, para os Simca Chambord, recentemente
lançados, e com motor assemelhado e quase 2.400 cm³.
Ao uso convencional a cidade listada como a de maior
concentração de Simcas em sua frota era Goiânia. Suas nascentes corridas, a
partir do meio da década 1960, viam a linha de largada tomada por Simcas em
variados tipos, incluindo o recém-lançado Tufão. Era o autêntico e fático traço
separador entre o projeto enviado da França e as modificações — muitas —
e melhorias — idem — realizadas pela fabricante no Brasil,
levando ao motor dados de potência, torque, rendimento e confiabilidade
desconhecidos pelos franceses.
Uma das estórias? história? lenda? a respeito de Simca,
conta-se, por hoje inidentificáveis partícipes, deu-se numa das inúmeras rodas
de entusiasmados exagerados automobilísticos, mesclando o início do convívio
automobilístico de brasilienses e goianos.
Um daqueles grupos em torno de
conversas sobre seu hobby, e onde é impossível marcar a fronteira entre
o exagero entusiasmado e a mentira sem freios. Devo esclarecer, conto o fato,
recordando-o quase cinqüenta anos após, fui tomar lembranças com o Napoleão Ribeiro,
historiador das corridas, que delicadamente escafedeu-se ao aval. Mesmo
com o Fernando Campos, jornalista especializado em Goiânia, que alegou
pane de memória. Meu irmão Luiz Cláudio, autor das fotos, idem, disse, as
imagens dissiparam-se no tempo, restando apenas os registros
fotográficos. Assim, aviso e participo que o núcleo da história é verdadeiro,
assim como o local e o cenário. Todo o resto, participantes, data, evento, podem
conter enganos e erros tão inocentes quanto justificáveis. Na essência, não tem
compromissos com fatos, pessoas e datas, assim como o autor declina de qualquer
responsabilidade, cingindo-se apenas ao juntar de fragmentos de lembranças.
Afinal, se não havia responsabilidade para o evento, porque haverá
para seu contar?
No caso específico, numa destas corridas, disputada em
Goiânia, talvez 1965, circuito descompromissado — ruas largas encerradas, curva
de 90 ou menos graus, ligando com ruas estreitas, desnível negativo, muita
gente, policiamento mais interessado em ver a corrida, e situações afins, —
cachorro perdido, criança chorando, marido brigando com mulher, soldado batendo
em bêbado, gente em busca de adrenalina, atravessando a pista... — a conversa
girava em torno do Alaerte Recarei — precocemente desaparecido —
chefe de oficina em revenda autorizada Simca, e demandado preparador da marca
na capital dos goyazes. Garantia-se, aplicara seu talento para fazer um carro
vencedor. Que não teria para ninguém, venceria, mostrando a superioridade dos
Tufão e, idem, a dos goianos na pista em sua planejada capital.
O automóvel ajudava. Não era de segunda classe, já marcado
pelos anos, tirado da missão de transporte e sacrificado para as corridas. Ao
contrário, era novo, 0-km. E nada dos classe média Renault, Fusca, DKW, ou algum
remanescente importado — como apareceu um MG TD com motor de Jeep e escapamento
vertical, ascendente, como um scrapper Caterpillar ...Nada disto, mas o novo e
superior Tufão, lançamento de sucesso, imponente, caro, em ano de recorde de
vendas, sonho da classe média. Era então referenciado pelo motor aumentado em
cilindrada, a potência a 100 hp, direção e freios muito acertados, rolar
imponente e confortável.
Nos cuidados pessoalmente aplicados por Alaerte para o
automóvel do bom e abonado cliente, renca de serviços como o
aplicação dos pneus Cinturato Pirelli, novidade radial, rebaixamento de
suspensão, garroteamento de seu curso por aplicação de cintas limitadoras
tomadas emprestadas a máquinas agrícolas, mudança na cambagem das rodas
dianteiras, material frenante mais abrasivo — naquela época de freios a
tambor e lonas, estas, especiais, eram trançadas com filamentos metálicos
garantindo mais atrito e frenagens em menores espaços.
Nas artes do preparador goiano não havia algum passo
especial, motivador da diferença e o segredo, se havia, era a soma da enorme
lista de artes e ofícios, liberada pela generosa carteira de piloto local,
turbinada pela venda de uma boiada que liberou geral para o
Alaerte aplicar-se às melhorias no global e ao motor de seu automóvel.
Na prática, esclareço, entre tantos Simcas, o personagem
central dentre tantos competidores com a marca, poderia ter sido o Neuder
Motta, Dézinho; o José Maria Macedo, Zémaria; o Newton
Arcanjo, Niltin; ou o Geraldo Alves, Geraldo Maluco —
embora este, lembro-me, até porque me deu carona, usava versão Rallye cor de
chocolate claro, possivelmente Chambord 1963. Ou, naturalmente, o Cleomar
Rezende, Tala. O apelido, auto-explicável, pontua-o como o
primeiro a ter rodas mais largas num Fusca 1200 — mas com pistões de
Aero-Willys, elevando a cilindrada a uns 1.300 cm³. As rodas
tornaram-se mais largas, via processo simplório: um ferreiro em fábrica de
carroças na vizinha Anápolis aquecia uma tira de ferro ao rubro e via
monumentais porradas provoca-a a curvar-se, fazendo um círculo com diâmetro de 15 polegadas. Após,
soldado unindo as separadas metades das calhas das rodas. Mais largas,
permitiam usar pneus Cinturato, oferecendo maior área de contato ao solo, e
maior estabilidade.
A barata
No Tufão da história, o funcionar do motor V-8, 2.450 cm³,
mostrava ter havido expansão na tropa. monocarburador duplo Zenith-Stromberg,
com gicleurs, gargulantes, ou os populares giglês cuja
medida métrica fora cientificamente estuprada com broca de diâmetro em
polegada, à base da tentativa e erro; troava virilmente, não deixava dúvidas
quanto a suas pretensões. Dizia ao que vinha. Combinava preparação cuidadosa,
onde luzia elevada taxa de compressão para o motor, novidadosos coletores de escapamento,
individuais para cada lado do motor, atracados a um par de tubos de escapamento
com duas polegadas de diâmetro, saindo dos coletores na baia frontal do motor,
percorrendo todo o vão inferior da carroceria, apontando sob o porta-malas,
onde acabava em duas trompas com umas cinco polegadas de largura nas gêmeas
extremidades. Como descritivo e para visualizar, imagine como sendo as bocas de
um par de poderosos bacamartes apontando para os competidores que assim os
veriam...
Complementava a romanceada descrição, sempre incrementada
por algum palpite ou invenção dos muitos participantes da rodinha, informação
tão técnica quanto curiosa, tão factível quanto exagerada: um dos clientes do
Alaerte, professor de Música da Universidade Federal em Goiânia, havia pego as
ferramentas de época, régua de cálculo, calculadora mecânica Facit, diapasão, e
calculado o desenho da tubulação para que as ondas sonoras auxiliassem na
rapidez de passagem do fluxo de gases. E mais: o Dr. Eduardo — que não me
lembro sobrenome, dono de grande hospital —, exercera seu poder e mandara
construir a tecnológica jabiraca em aço inox cirúrgico, com o interior polido
.... Já entendeu o tamanho da influência de caçadores e pescadores em
tal estória?
No motor o novo Castrol GTX com tungstênio líquido, um
diferenciador naquele tempo. E gasolina de aviação, 130 octanas, no aproveitar
a elevada compressão do motor. Em Goiânia, terra de enorme frota destes bichos
voadores, coisa fácil de conseguir até mesmo com os outros concorrentes, boa
parte movida por boiadas — supervisionadas via aérea....
Peço licença ao preclaro leitor para esclarecer, com fatos
passados há quase 50 anos, dizer esqueci em casa meu paquímetro de aferir
veracidade, daí desconhecer o tamanho das verdades ali expostas, assim como o
calibre dos eventuais exageros. Por isto, por cautela esclareço não fazer juízo
dos fatos. Apenas repeti-los e, com certa largueza, tento entender.
Eu estava lá, de calça Faroeste — assim se chamavam
os jeans — entusiasmado, na parte mais crítica do circuito de rua,
envolvendo o encontro entre as Avenidas Anhangüera e Goiás, à época o ponto de
maior importância econômica da capital goiana. Assim, posso dar meu testemunho
equilibrado, desinteressado, absolutamente veraz — pelo menos assim
acredito.
O ronco do motor acertado pelo Alaerte era identificável.
Quando o, digamos, Tala descia a avenida, pé no porão,
e subitamente mudava a seqüência dos pés, subindo no pedal do freio no final da
reta descendente, para reduzir a velocidade, fazer uma curva com uns 120 graus
à esquerda, e chamava o motor para frear o automóvel em segunda marcha, troava
bonito, viril, forte, como apenas os motores derivados dos Fords de cabeçote
plano eram capazes de rugir. No circuito urbano das primeiras corridas de rua,
com curvas e pequenas retas, o Tufão do suposto Tala sobressaía
dentre os inúmeros Simcas — marca característica de Goiânia — alinhados nas
corridas. Pelo ronco em meio a tantos roncos, todos sabiam — e torciam — pelo
Tufão, novidadoso, recém-lançado, seu fantástico barulho, e por uma vitória
goiana na nascente disputa regional.
Primeira volta, e o Tufão do sempre citado Tala,
passa liderando, puxando a fila dos competidores, transformando o pacato
domingo da cidade então interiorana, em miscela de barulhos, roncos e cheiros
da gasolina de aviação e, no caso dos DKW-Vemag e seu motor no ciclo de dois
tempos, a miscela feita com o lubrificante Castrol R 40. Tudo inteiramente
desconhecido naquele pedaço do Planalto Central.
Zémaria, Simca, derrapa quase 180 graus na apertada junção das avenidas Araguaia e Goiás (foto Luiz Cláudio Nasser) |
A chuva, alternada, baixara a temperatura, molhara o
circuito, criara fator de emoção nas freadas duras, naqueles tempos sem freios
a disco, hidrovácuos, servos, ABS e outras conquistas tecnológicas. A freada
era, por si só, emocionante para reduzir, em espaço mínimo, a velocidade do
carro e mantê-lo em linha reta.
Voltas seguintes, sempre marcando a liderança, dava gosto
ver a satisfação da equipe, calçada pela liderança e pelo entusiasmo motivador
do locutor da corrida, ouvido por sistema de alto-falantes presos a árvores,
postes e marquises, informando ao numeroso público sobre o desenrolar da
corrida em sua capital. O piloto do Tufão, talvez o Tala, conquistou
a simpatia dos presentes, e tudo indicava, teria resultado premiado,
previamente considerado pela grande torcida de rua, acenando, fazendo sinais,
jogando chapéus para o alto, a maior popularidade. Corrida de derrapagens,
atropelos e decolagens, dependendo do ângulo de acertar dos fardos de capim
colocados como iniciantes defensas.
Movimento no circuito e novidades na pista não faltavam, em
especial com os Renault Gordini, cuja regra de preparar a suspensão se resumia
a cortar dois elos nas molas helicoidais traseiras, deixando a frente alta,
original, solta, instigando a traseira derrapar. Ou os DKW, personalíssimos no
pipocar de seus motores no ciclo de dois tempos, chamados à responsabilidade de
auxiliar a frenagem sem freio-motor eficiente, movidos por Avgas — a gasolina
de aviação — adicionada com Castrol R 40, perfumando o ambiente — ah,
meu amigo, que saudade olorosa.
Apesar de ser corrida de automóveis, o ronco e a liderança
do Tufão do Tala relembrava a todos
eventos ainda recentes, como o transporte por lombo de burros e mulas, sempre
liderados pela mula-guia, que marchando dava o passo para ser acompanhada. O
Tufão repetia o fato. Seu ronco liderava, dava o ritmo, a contagem e,
respeitosamente, como no caso das tropas, não era ultrapassado.
Porém, subitamente, algumas voltas depois, no esperado
momento em que o ronco do motor do Tufão do Tala deveria
passar marcando outra sessão de freadas, tangências, derrapagens, não surge,
não surge, ...nada. O automóvel não passa. Passam outros Simca, outras marcas.
O Tufão acreditado como do Tala, não. Correndo, porém no sentido
horário, contrário ao circuito, passam Alaerte e seu fiel escudeiro Salim,
Tufi, Habib, Nagib, não me lembro do nome do brimo, dividindo
o peso da alentada caixa de ferramentas. Da combinação de conhecimento mais
equipamentos, poderia sair solução milagrosa para desenguiçar o inenguiçável
Tufão.
Os assistentes incentivavam em cidade quando todos conheciam
quase todos:
Corre
Laerte.
Prega u pau
Nagib, Habib. Tufi, — me esqueço —, dava força a torcida.
E indagavam
questionando:
Que qui ‘conteceu cum o Tala, sô?, era o mais ouvido
na assistência e torcida postada, firme, de pescoço esticado, olhos apertados
para vislumbrar no extremo da grande reta descendente o festejado Tufão — mas
seu ronco forte e viril não se fazia ouvir, surpreendendo e angustiando os neo-admiradores.
Teorias mis, de gente com base ou pela patuléia
desacorçoada, tentavam explicar o por quê.
freveu, sô;
quentô a bubina;
gasolina de avião faz
mal;
u tar de radiador de óleo, porquera trapaiada,
deve ter entupido ...
trocaro o pratinado pur uma caxinha eletrônica, uma
imundice ...
Em corridas de rua tudo é possível — até radiador de óleo
atrapalhar ou queimar a novidade da ignição eletrônica, apresentada nos Simca
em 1965.
Mas, na realidade dos fatos, nada ocorrera de diferente,
como descobriram Alaerte e Kalil, Habib, Dib, Nagib — não me lembro — ao chegar
ao imobilizado Tufão, cercado de público em veneração ao líder tombado. Apenas,
coisa de competições com automóveis, em especial nos circuitos de rua: líder,
chegando nos retardatários para colocar-lhes uma volta em cima, numa curva,
longe dos olhos do locutor, também perdido na dúvida do porquê, estampara um
carro que lhe rodara à frente. Na tal de porrada, capô e grade recuaram,
prensando o radiador contra o hélice, arrebentando o sistema de arrefecimento,
encerrando ali sua corrida.
Verdade? Hummm...
Mas um competidor com tal torcida popular, com um cintilante
Tufão combinando dourado e verde metálicos, com um ronco de dar inveja a dragão
de desenho animado, não poderia ser alijado da rinha por motivos simplórios,
comuns. Não. Mereceria explicação e justificativa à altura de sua superioridade
e importância. Assim, logo surgiu versão para a desistência.
Não era veraz, porém oportuna, adequada e perfeitamente
acatada por quem não testemunhara o fato, nada entendia de motores. Alguém,
ágil, criou justificativa sem noção, mas crível pelos ali entusiasmados com o
ronco sensualmente sonoro do Tufão, motivados pela torcida, explicação entre o
irônico e o desarrazoado, sem pé nem cabeça, lenda de difusão tão rápida quanto
o Tufão atribuído ao Tala.
Explicação, concordarás, brilhante. Tanto, sobrevive ao
passar dos anos. Garantia, com hipotética sedimentação técnica, que o motor
feito pelo Alaerte tinha uma taxa de compressão tão elevada, estava tão
comprimido que, em preciso momento, quando o Tala se pendurou no
pedal do freio, contraiu a musculatura para não sair escorregando pelo largo e
confortável banco naqueles tempos sem cinto de segurança, engatou a segunda
marcha, chamando pelo auxílio do freio-motor no ponto de freada, preambulando a
tangência de uma curva apertada, o retrocesso — o rumorejar do motor sendo
utilizado como freio – teria sido tão forte, mas tão intenso, tão
surpreendente, com tantas vibrações sonoras e redemoinhos do escapamento, que a
aspiração de ar por um dos canos de descarga sugara um gato à beira da pista.
Indigitado felino não alimentava paixão pela velocidade, mas apenas estava ali,
no ponto em que o asfalto se encontra com o meio-fio, a guia da calçada, abaixo
dos pés dos agitados torcedores. Tinha um olho numa atrativa felina, emanando
pré-odores de próximo cio, e outro num bem-te-vi empoleirado em galho baixo de
uma saboneteira — sapindo saponaria,
árvore muito utilizada na urbanização de Goiânia, cujos frutos permitem xampu
doméstico. Pois com tal movimentação o infeliz — ou glorioso — ou por interesse
alimentar ou bloqueado pelos hormônios da reprodução, o felino nada percebera,
fora aspirado, entupira o cano de descarga, asfixiando o motor, acabando com a
corrida e possibilidade de vitória do Tufão do Tala — e virando lenda ...
O cenário
Fisicamente possível? Cascata desarrazoada? Nem
me meto a considerar, mas tenho obrigação de pequenos esclarecimentos
temporais.
Para situar, em nosso pobre mercado daquela década, o Simca
era carro do boy de pai rico, do executivo bem-sucedido.
Seu motor, versão dos Ford V-8 revolucionando o mundo em 1932 e que abriu
caminho da viabilização econômica. Antes vê-oito só em carros com nome
sobrenome, na maioria das vezes, nos verdadeiros clássicos — não a prostituição
do termo hoje existente quando alguns incultos assim chamam velhos Chevette e
Volkswagen ...
No seu âmago mecânico, as massas reciprocantes, o desenho do
virabrequim, a ordem de explosão, características físicas, se somaram à enorme
produção e à popularização do seu troar, permitindo enorme desenvolvimento e
tecnologia de preparação. De tais implementos muitos sobrevivem até hoje como,
por exemplo, cabeçotes Edelbrock em alumínio, para melhorar taxa de compressão,
arrefecimento e troca de calor, ou os abafadores Smithy’s, para dar-lhe
som grave.
Nosso Simca utilizava versão nacional evoluída sobre os
motores ditos “60 hp” — potência ao seu surgir, no final da década 1930.
Válvulas no bloco, os cabeçotes eram lisos, chatos, um arremate aos cilindros,
identificados como tampões. Os americanos chamaram-nos, a
propósito, flathead, cabeça chata, e o nome permeou para nossa
cultura.
O motor Tufão na sua baia (carroantigo.com) |
No Brasil a engenharia de competição da Simca fez o não
obtido nos EUA, motor dos Ford 1937 básicos, ou na Inglaterra onde tracionou o
Pilot, ou França, mandado equipar o Mattford e o Ford Vedette, antecessores do
Chambord. Aqui, ganhos pesquisados em corridas revisaram-no totalmente,
aumentando o curso dos pistões em 3,3 mm, a cilindrada a 2,45 litros, e elevando
a potência dos carros de rua a gloriosos 100 hp. Para corridas a Simca chegou
ao equilíbrio de performance e resistência nos 145 hp.
Como projeto era anterior ao motor VW 1200, superado,
descontinuado, fim da linha industrial. Mas, naquele cenário de descobrimento
de nossas capacidades e do fenômeno da democratização do automóvel, tinha lugar
importante. Era o único V-8 dentre os automóveis nacionais. Outros eram L-3, L-4,
H-4 (boxer) e L-6. Assim, marcante, referencial no ronco de seu escapamento
duplo exaurindo os 8 em V, em duplo 4 x 1. No uso comum, diuturno, trocavam-se
as marmitas originais por abafadores de Alfa Romeo JK — equipamento
original neste Alfa e de vida longa, com ampla aplicação aos desejosos de
escapamento mais livre.
Difícil entender nos dias atuais, onde pululam os duplos
comando nos cabeçotes, quatro válvulas por cilindro e no cabeçote, coletores
variáveis, árvores contra-rotantes para balanceamento, tudo nos ascéticos
motores de quatro cilindros que fazem a realidade brasileira. E em todo este
cenário de eletrônica, acelerador sem cabo ou tirante, alguém ainda se lembra e
referencia o barulho de um motor? Pois é, mas foi tão marcante que, se
perguntado sobre isto e você não souber responder, seu interlocutor lamentará,
crendo-o, pela ausência ou pelo alheamento, ou eras petiz ou panaca, e não alcança
o significado do troar dos oito-em-vê naquela aridez de novidades!
RN
É sempre saboroso (ainda mais após uma macarronada de domingo) ler os deliciosos textos do Nasser. E, com a merecida autoridade, escrever sobre a história da Simca no Brasil. Fantástico!
ResponderExcluirTexto absoluto, fantástico!
ResponderExcluirOff topic: Bob, como seria a sua redação do ENEM desse ano com o tema "Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil"??
ResponderExcluirMoleza: "Lei Seca: cortina de fumaça na incapacidade de fiscalizar motoristas alcoolizados" ou então "Lei Seca, Lei Burra" . Qual você prefere?
ExcluirBoa! Voto no primeiro "Cortina de fumaça na incapacidade de fiscalizar motoristas alcoolizados" :)
ExcluirAbç!
Leo-RJ
Perfeito!!!! Sou absolutamente contra, à esta lei seca que é aplicada em nosso país. Não é educativa, ou de uma pena exemplar, e sim, para arrecadar receita. Receita esta, que deveria de ser reaplicada em uma educação, um hábito de fazer motoristas no Brasil, responsáveis. Mas sabemos, que não é o caso, e sim para única e exclusivamente, fazer receita, só! Nada neste país, relacionado a educação, funciona. Ao invés de termos em salas de aula, educação sexual, que no meu entender, e de qualquer um com o mínimo de inteligência, é extremamente mais fácil e prazeroso de fazer do que dirigir. Se desde de pequeno, eu, meus pais e quem sabe um dia, os nossos filhos tivessem com matéria didática educação no trânsito, certamente seria evitado inúmeras mutilações, perdas de vidas e diversas lesões causadas por acidentes neste trânsito, onde alguém para ter ou possuir carteira de motorista, faz aulas teóricas horrorosas, práticas de direção em que não ensinam nada que não seja por o carro para andar, e no final uma prova de direção, em que se divide o carro, com mais 3, onde cada um roda menos de 1 km, faz uma baliza onde os "avaliadores" acham importantíssimo reprovar, por "não saber estacionar", ou não soltar o freio de mão... Ai chefe, não tem como transformar ninguém, em bom motorista! Se você, precisa dirigir, de qualquer jeito, será um péssimo motorista... Mas se você for apresentado à algo que dê prazer e que goste, será um ótimo motorista.
ExcluirEscrevi a minha nestes moldes. Já estava tudo entalado. Sentei a pua!
ExcluirMibson Fuly.
Grande Nasser! Sensacional! !!
ResponderExcluirFosse eu um pescador ou caçador, seria capaz de atestar a veracidade do texto, tão completo de detalhes e sotaques.
Peço licença para colocar o link deste post na página do grupo Simca do Brasil do Facebook. Isto precisa ser compartilhado!
Texto pra emoldurar e colocar na parede, talentoso e genial contador de histórias (ou estórias). :-)
ResponderExcluirNasser, tem certeza de que nenhum dos envolvidos nessa história não é Arraiano? Lembro vagamente dessa história do gato contada por um morador da cidade das colinas...
ResponderExcluirTem coisas que só um goiano entende.
Brimo,belissima e muito divertida narrativa,postarei com os devidos créditos no meu Face!
ResponderExcluirBoa Nasser!
ResponderExcluirMas fiquei com pena do gato...
Se vc puder fale um pouco dos Simca-Abarth (ou será Abarth-Simca?), nada a ver com a mecânica do Chambord / Tufão, e sobre a lenda que ouvi certa vez, de que, finda a temporada, teriam sidos jogados ao mar porque aqui estavam sob importação temporária, ou coisa do gênero...
Foram mesmo?
"Os Simca Abarth não foram jogados ao mar. Não sei quem inventou esta estória romântica, mas rastreei as fontes acreditadas e as informações são outras. Ficaram muitos anos num depósito alfandegário e depois vendidas em leilão. Pelo menos um dos exemplares está correndo na Califórnia".
ExcluirEscrito por Napoleão Ribeiro e Fred Della Noce
ExcluirFrederico Della Noce, um dos maiores estudiosos dos Abarth Simca nos mandou correspondência informando que o destino dos Abarth Simca, que pertenceram à Simca do Brasil, não estão nos Estados Unidos como divulgamos, mas sim na Suíça e na Itália:
Chassi 080 – Coleção Möll – Suíça
Chassi 085 – Coleção Grassi – Pádua – Itália
Chassi 090 – Coleção Costa – Milão – Itália.
Frederico remeteu-nos ainda fotos do Chassi 085 que tinha recebido motor Simca V-8 nacional e, por este motivo, teve a sua traseira alongada.
O carro foi restaurado, recebeu novo motor 2000 (FIAT), mas foi mantida a modificação da carroceria o que lhe confere um aspecto estranho.
Segue abaixo as correspondências recebidas:
“Caro Napoleão,
Dei uma vista no teu site e posso te garantir que nenhum site que eu já vi no Brasil, tem informações mais precisas nem conhecimento de causa que tem os teus textos. Parabéns.
Os três Abarth que vieram para a Simca do Brasil tem os números de chassis #80,#85 e #90. Todos estão na Europa e nenhum foi ou esteve nos USA.
O chassis #85, é o carro mutilado na Simca para caber o motor Simca V8.
A parte traseira foi alongada e, na restauração do carro, foi recolocado um motor de 2 Mila e uma caixa de 6 marchas, mas foi mantida a traseira mais comprida, o que dá ao carro um perfil estranho e feio.
É difícil conceber hoje o que pode ter passado pela cabeça dos responsáveis pela competição na Simca, ao destruírem uma Maserati para fazer o Tempestade e uma Simca Abarth 2 Mila criando um monstrengo sem sentido nenhum.
Não é de estranhar que a marca tenha falido.
O carro em Padova pertence a um misto de médico, fabricante de equipamentos odontológicos e vendedor/colecionador de carros antigos.
Um abraço,
Fred Della Noce”
“Caro Napoleão,
Conforme falamos ao telefone, confirmo que as três Simca Abarth 2 Mila faturadas pela Abarth, em nome da Simca do Brasil S.A., são os chassis #80,#85 e o #90.
Não consegui rastrear a história entre 1965 e 1981, e creio que vai ser difícil, pois em 1981, em Genova, tem lugar um leilão da massa falida de uma companhia de navegação.
Os três Simca, fazem parte do acervo e foram comprados por um dos primeiros comerciantes de carros antigos de competição, que na época era uma espécie de curador da coleção de carros do falecido Conde Lurani.
Os carros hoje encontram-se nas seguintes coleções:
#80 - Coleção MÖLL - Suiça
#85 - Coleção GRASSI - Padova (Italia)
#90 - Coleção COSTA - Milão (Italia)
Posso te assegurar que estes 3 carros jamais puseram as rodas nos USA, nem para uma exibição. Todos estão em boas condições, sendo que a restauração do carro #80, é espetacular, e o carro se encontra junto de uma 2 Mila modelo 1965 (com o capot dianteiro diferente, que abre por inteiro para a frente, como um Jaguar E Type).
Também na mesma garagem encontram-se outros 74 Abarths, que formam a maior e melhor coleção Abarth do mundo.
Um abraço,
Fred”
Obrigado Napoleão e Fred, pela resposta precisa.
ExcluirSaber que esses maravilhosos veículos não foram atirados ao mar, e que se encontram preservados me deixou extremamente feliz. Mas dava até pensar que fosse verdade, vide Alfettas retalhadas, ou mesmo as shark noses das quais não sobrou nenhuma, e nem imagino o que deve ter acontecido por aqui com as Mecânicas Continental... Aliás seria um bom tema, por exemplo, que fim levou a Ferrari 750 Monza que por tanto tempo esteve na Mooca, equipada com motor Corvette, mas sua mecânica no chão da oficina. Nem ouso pensar quanto vale um carro desse hoje em dia.
Abraço!
O ronco dos Simca é para mim glorioso. Dentre todos o mais saboroso. Verdadeira sinfonia. Saudades de meu tio Domingos e seus Chambord vermelhos . . .
ResponderExcluirAAM
Interessante o processo de ampliação de tala nas rodas... fiquei imaginando a cena na mente: esquenta o ferro, baixa-lhe a porrada pra tomar forma e coloca na roda.
ResponderExcluirEu também acho que VW e Chevette não são clássicos nem merecem ser.
ResponderExcluirTexto excelente RN! Sendo história ou estória, tanto faz... O gostoso é imaginar o cheiro de borracha queimada, gasolina e óleo dois tempos, no calor de Goias vendo belíssimos exemplares nacionais correndo em circuito de rua!
ResponderExcluirDaniel Libardi
". . . o rumorejar do motor sendo utilizado como freio – teria sido tão forte, mas tão intenso, tão surpreendente, com tantas vibrações sonoras e redemoinhos do escapamento, que a aspiração de ar por um dos canos de descarga sugara um gato à beira da pista."
ResponderExcluirÔh mentira da bixiga ! Já vi absurdos na minha vida, mas estória igual essa só a MOLÉSTIA !
Tenho muita coisa bacana sobre essa época aki em Gyn pois meu pai fez parte dessa turma...desde os pegas na Av. 88 até a Praça do Cruzeiro, passando p/ Av. do aeroporto até a famosa curva do Táxi Aéreo Goiás até chegar ao Retão do Autódromo, trecho utilizado por mim na minha época de rachas e até hj em dia pela molecada daki...
ResponderExcluirMinhas mais antigas lembranças automobilísticas são do inicio da decada de 70 aqui em Goiânia e lembro-me perfeitamente dos Simca, principalmente usados como taxi. A traseira em rabo-de-peixe era o que mais atraia minha atenção como uma criança de 4 e 5 anos fanática já pelos automóveis !
ResponderExcluirCaro Nasser; Que POEMA meu caro! Maravilha de história. Causo espetacular, digno de nosso conterrâneo Malba Tahan! Vou guardar nas minhas melhores memórias. Abs. MAC.
ResponderExcluirMui respeitável post, um grato presente para os veteranos. O Sabor do molho de tomate das macarronadas de minha saudosa avó italiana, na famiglia tentam igualar, mas ninguém mais acertou.O ronco dos oito em vê dos cabeça-chatas (n/Simcas 61, 63, 64 e 67 eram devidamente "equipadas" com o escape livre dos anos verdes oq incluía simples tampão para uso familiar) dps das contumazes esticadas seguidas do alto e bom som do freio motor, tbm não eh soh inesquecível, pq tentam igualar, mas... Ab LSampayo
ResponderExcluirsintetizando resposta para os simpáticos comentários:
ResponderExcluir1. alexei, leon, obrigado. leon, em duplicidade pela inclusão do texto no valente sítio do simca;
2. irapuã, ítalo e anonimo1. igualmente grato. "arraiano" ? não atino o que seja;
3. maluhy-bei, achille. também agradecido. achille a pequena resposta publicada é um texto meu após conversar com o advogado da simca. o fred della noce complementou-a atualizando com conhecimento. Na questão, e espero que o fred esclareça, parece-me curioso que o automóvel tenha sido exportado com motor de simca. afinal, seu retorno era para cumprir o fim da autorização, e neste caso, tudo indica, teria voltado com o motor original. isto é raciocínio de advogado somado ao fato de nunca ter ouvido que tal engenho vencedor tenha sido aplicado a algum outro carro no brasil;
leonardo, voce não acredita no processo: torneiro separa o centro e o aro da da roda, divide este em dois; arranja uma comprida tira metálica, toca a aquece-la ao rubro com um fole e fornalha, leva a uma bigorna e pega de porrada. a cada uma a ponta vai-se levantando e curvando. pronto o anel, leva-se ao torneiro que solda as metades antes separada fazendo um sanduíche. ah, e voc^^e não sabe, dependendo da qualidade, constituição ou o que mais que o cara descobre no olho, em vez de solda, os pedaços voltam ao ferreiro que aquece tudo e junta as peças ao rubro derramando no encontro das faces a serem unidas, um pozinho de chifre de boi. é mole ? este goiás tem coisas inacreditáveis ...
daniel, mendonça, causo é causo, estória é estória. houvesse o motor fundido, coisa comum ninguém se lembraria.
pisca, xracer - está na hora da gente se juntar com o carlão xavier e o fernando campos para juntar estas estórias;
mac, vindo de voce, elogio geométrico em especial pela comparação ao inigualável homem que calculava. encantado;
ls - tem razão.