Hoje em dia um carro de Fórmula 1 é uma grotesca caricatura. Ultra-avançado, incrivelmente veloz e eficiente mesmo após recorrentes tentativas de fazê-lo menos rápido por meio de regulamentação, é sem dúvida alguma uma máquina incrível, e um feito de engenharia notável. Mas a sua relevância como automóvel, e mesmo como máquina de competição está muito aquém do que poderia ser.
Outro dia tentei assistir uma corrida de F-1, depois de anos sem fazê-lo. Dormi profundamente, coisa que não fazia há muito tempo àquele horário do dia. E podíamos ficar aqui o dia inteiro colocando teorias sobre como melhorá-la (as minhas preferidas são uma "Formula Libre" e uma corrida de cabeça para baixo, onde os carros estariam presos ao "teto" por pressão aerodinâmica em pistas especialmente construídas para tal:; sim, eu tenho problemas), mas prefiro ao invés disso contar uma história do passado, sem nenhuma intenção maior a não ser apenas contá-la mesmo. As conclusões desta vez, deixo com vocês.
O carro sobre o qual falaremos é um Bugatti tipo 51, a máquina de Grand Prix (a F-1 do pré-guerra) de Ettore para o começo dos anos 30. Equipado com um oito em linha de 2,3 litros, duplo comando de válvulas no cabeçote (copiado de Miller) e um compressor mecânico tipo Rootes, era um belíssimo bólido azul que teve relativo sucesso, incluindo uma patriótica vitória no GP da França em 1931. Como qualquer Bugatti, antes de ser apenas uma obra de engenharia e um carro de competição, era uma expressão do profundo senso artístico e estilístico de Ettore, uma obra de arte em alumínio virolado e rodas fundidas junto com os tambores de freio. E em movimento, uma sinfonia de barulho, poder e velocidade que apaixonou todos os que tiveram a sorte de vê-los em ação a seu tempo.
O chassi 51133, sobre o qual falarei especificamente aqui, foi a montaria do famoso Louis Chiron (acima, com o carro) em 1931, e do futuro dono de restaurante nova-iorquino René Dreyfus, em 31 e 32. Parece que em algum ponto de do ano de 1931, Ettore deu o carro para Chiron (o que significa que Dreyfus correu com o carro do companheiro de equipe em 1932), e este, ao redor de 1933, acabou por vender o carro para Monsieur André Bith, de Paris, herdeiro de uma fortuna farmacêutica.
O que vocês tem que entender aqui é que um carro de GP em 1933 era perfeitamente usável nas ruas. Na verdade, muitas equipes ainda dirigiam o seu bólido pelas estradas européias, indo de pista em pista. Caminhões para transporte eram coisa rara e exótica, e os carros de competição ainda eram intimamente ligados com aqueles dirigidos nas ruas e estradas mundo afora. Quando não eram, como no caso dos Bugattis, exatamente os mesmos...
E assim o senhor Bith o fez; colocou paralaminhas em cima das rodas (cycle-fenders), pintou-o de preto e rodou feliz com seu Bugatti de Grand Prix, participando principalmente de competições amadoras, ralis e outros eventos, por muito tempo. Mas André era amigo de Jean Bugatti (filho de Ettore e pai do sensacional tipo 57), e um dia, em um encontro na cidade-luz com o velho amigo que passava por lá, viu algo que o deixou bobo: Jean veio com sua obra prima, o magnífico tipo 57 Atlantic (abaixo).
André Bith ficou louco; tinha que ter algo assim de qualquer forma. Contatou outro amigo, Andre Roland, que trabalhava na fábrica da Bugatti, e este o ajudou a concretizar seu plano maligno: fazer um Atlantic tendo como base o muito menor tipo 51 que já tinha e adorava. O carro foi entregue a empresa "Carrosserie Louis Dubos", em Paris, a 2 de abril de 1937, e ficou pronto em 20 de julho do mesmo ano. O resultado, que pode ser visto nas fotos abaixo (tiradas pelo amigo Belli em Peeble Beach este ano), foi simplesmente espetacular.
Reparem que o curvão do carro de competição, com seu acabamento em alumínio virolado, permanece dentro do cupê. O acabamento é sensacional, e a difícil releitura do longo Atlantic para o curto chassi do tipo 51 ficou perfeita. Reparem que o bocal do tanque de combustível está atrás do motorista, dentro do carro! Reparem também nas quatro saidas de escape, tal e qual o Atlantic.
Só podemos imaginar como deve ter sido rodar pela Paris dos anos 30 em sensacional carro de corrida vestido a rigor como foi o "Dubos Cupê". O carro pode não ter o maior espaço e sofisticação dos Atlantic de Jean Bugatti, mas provavelmente numa pista fechada, faria seu pedigree aparecer. Veloz, vocal e cacofônico até hoje; em 1937 devia ser algo de outro mundo.
Bith vendeu o carro quando a Segunda Guerra se aproximava, e ele desaparece dos registros por um tempo, até aparecer nos anos 50 em uma coleção americana, onde foi separado de seu chassi, e vendido em partes. Muitos anos depois, em 2003, a Nethercutt Colection consegue juntar as duas partes separadas, e montar o carro novamente, e o mostra em Peeble Beach daquele ano. Em sua restauração, recebeu uma ajuda inusitada: um certo senhor francês de 90 anos chamado Andre Bith.
Podem imaginar algo assim acontecendo em Peeble Beach em 2079? Pois é...
MAO
Que maravilhoso, esplendoroso, espetacular, de outro mundo esse Coupe !
ResponderExcluirMais uma história maravilhosa. Chapeau!
ResponderExcluirAgora, imagine o que devia ser dirigir um bólido de GP com uma carroceria adaptada e uma distibuição de massas totalmente diferente da originalmente prevista, especialmente em ruas de paralelepípedos ou em estradinhas por onde 50 anos antes só trafegavam veículos a tração animal. E isso com aqueles pneuzinhos de bicicleta. Esse M.Bith merecia uma medalha, não fosse pelo simples fato de ter sobrevivido!
MAO, faço o comentário apenas para registrar minha presença e lhe dar os parabéns, pois não há o que complementar em um texto tão espetacular!
ResponderExcluirMAO,
ResponderExcluirVocê aumenta minha ansiedade com esses textos espetaculares.
PK
MAO, muito bacana mesmo, esse eu não conhecia.
ResponderExcluirAté a cor é sensacional.
Abraço.
Brilhante analogia,o curioso é que o carro de sonho nos mantem acordados enquanto o espor.zzzzzz
ResponderExcluirMagnífico!
ResponderExcluirTô babando nesse interior caramelo.
Histórias sobre carros (ou jóias?) que reaparecem e são trazidos novamente à plenitude são fantásticas.
ResponderExcluirGostaria que o mesmo viesse a acontecer com o Aérolithe, o "pai" da linhagem.
Belo texto sobre um belo carro!
Sds,
Der Wolff
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ResponderExcluirUm Bugatti da era de ouro já é raro, um Bugatti de competição mais ainda....mas um desses, nascido para as pistas e aeródromos daquele tempo, vestido com uma carroceria inspirada talvez no mais bonito carro da sua época- e de todas, de todas... - é totalmente inesperado!!
ResponderExcluirMaravilha de história e de carro!
Sinal dos tempos, MAO!
ResponderExcluirVocê não deve ir apenas a um médico, engenheiros conhecem apenas a sua parte do projeto e assim vai. Mundo superespecializado.
Mas a estória é bem legal!
Estupefaciente! :-)
ResponderExcluirAlguém me explica por que todos carros dessa época usavam cambagem positiva? Lembro de ter lido que era por causa do perfil abauluado das estradas do tempo das carruagens, é isso?
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ResponderExcluirO Anderson fala sobre a cor, que hoje e um vinho escuro com elementos de perola.
ResponderExcluirQuando o carro foi originalmente restaurado pela Nethercutt, era em preto. Mas ai deu uns defeitos na pintura, e o Jack Jr. decidiu repintar-lo nessa cor atual.
Nao sei dessas coisas, mas prefiro o carro em preto. Nem acho que essa cor de vinho poderia ter existida nos anos 30. Se fosse o meu, seria em preto ou uma azul escura, sem ser metalica ou perola.
Mais uma coisa. Esse carro e muito pequeno. As fotos nao dao referencia de tamanho, mas e quase tamanho de um brinqueido. Illusao otica!
E a Joel, o interior e realmente fenomenal! Muito pequeno, e com acesso dificil, mas fenomenal.
Demais esse bugatti hein!
ResponderExcluirO Ferrari P4/5, que foi feito tendo como base a enzo é de certa forma assim.
Não é um carro de GP, mas é também uma máquina incrível e única.
Rex, é que aqui preto é uma cor tão comum que quando vejo carros de cores exóticas como esse vinho, fico encantado.
ResponderExcluirPreto e prata por aqui é tão comum que já virou a cor dos NÃO entusiastas.
Saudações.
Oi Anderson. Dei uma palestra na FAAP em setembro, e notei (sem saber dos porques) a "color trap" no mercado brasileiro nesse momento. So preto ou prateado; branco reservado aos taxis. Disseram os estudantes que e porque ninguem quer chamar atencao, e que os valores na revenda sao mais altos. Mas concordo com voce que nao ha nada como cores vivas e vibrantes! Quem entre as fabricas nacionais vai enfim quebrar a "color trap"?
ResponderExcluirPreto? Em pais tropical?
Pelos menos aqui nos temos os nossos brancos e uma grande variedade de cores prateadas, algumas frias, alumas mornas, e algumas ate quentes. Vivas e vibrantes? Ainda nao, mas aguardo o dia...
A história é sensacional, mas não deixa de ser um pouco deprimente. Nos anos 90 carros velhos eram Fusca, Variant, Brasília, Chevettes... hoje em dia carro velho é... Fusca e Chevette! Nem envelhecer esses eletrodomésticos conseguem mais!
ResponderExcluirDe fato a tendência é que os carros (assim como as pessoas) se tornem cada vez mais impessoais, comuns e sem graça. Ok, é estranho reclamar disso num produto feito em série, mas no passado cada projeto tinha um pouco da alma, do pedrigree da fábrica, nem que fosse um estranho Brasília com seu motor da segunda guerra. Ainda eram produtos de fabricação em massa, mas pelo menos eram cópias de algo original. Hoje um Fiat só difere de um Volks na marca. E no ritmo que a Fiat muda sua logomarca, logo logo nem isso vai ajudar a diferenciar.
Creio que muito em breve lançarão os carros descartáveis (biodegradáveis, óbvio), pois ninguém mais vai dar a mínima mesmo. Ou será que nossos filhos vão se ocupar em restaurar VW Foxes ou Chevy Celtas? Qual será a relevância desses carros daqui a 20, 10 ou mesmo 5 anos?
P.S: por "eletrodomésticos" me refiro aos carros mais novos, não ficou claro no comentário anterior porque mudei o parágrafo de lugar. Maltita tecnologia, hehehe...
ResponderExcluirAproveitando, não quero parecer um Amish, reconheço que os carros de hoje são muito melhores do que Chevettes e Fuscas. Mas quebrou joga fora...
Rex,
ResponderExcluirO "color trap" preto /prata existe mesmo, mas eu diria que isso é um fenômeno tipicamente paulista (ou paulistano, pra ser mais exato): nas outras capitais do país, a gama de cores é bem mais abrangente. Em Porto Alegre, chama a atenção a quantidade de carros vermelhos, da mesma forma que o branco é muito mais comum no norte/ nordeste (o que faz todo o sentido, considerando o calorão que faz por lá.)
Pessoalmente, tenho uma hipótese, digamos, histórica pra explicar essa fixação por carro preto em SP: deve ser alguma memória "atávica" dos tempos do Cardeal Arcoverde, que deixava a galera embasbacada ao desfilar pela cidade (no banco de trás, é claro) a bordo de seu reluzente Cadillac preto.
Vamos por partes:
ResponderExcluir1º Maravilha de história MAO, parabéns!
2º O carro é espetacular mesmo!!!!
3º Não me considerem um Troll, mas os comentários do Rafael Ruivo não condizem com um verdadeiro Autoentusiasta.
Não se pode julgar os carros antigos como ruins.
O Fusca entre outros, tem seus defeitos ou particularidades únicas, assim como todas as mulheres que conheci...
O entusiasta (auto ou não) que realmente aprecia como se deve as melhores coisas da vida, sabe que deve-se relevar certos detalhes, pois se trata de um caso de paixão/amor e isso não tem nada de racional, muito pelo contrário!!!!!!
O Autoentusiasta que tem Fusca, Chevette, Opala, Maverick, whatever, sabe das diferenças entre suas jóias e os carros "modernos", e trata de guiá-los respeitando as características do carro e seu projeto.
Ninguém aqui obrigaria o pai ou avô a correr uma maratona de 42km sem ele estar preparado para isso, e se insistir nisso, que pelo menos respeite os limites dos "velhinhos" para não "fundi-los" depois.
Aliás, 21.529.464 consumidores não podem estar errados!
Thulum, o detalhe é que aqui em Porto Alegre os taxi são vermelho/alaranjado.
ResponderExcluirEu não compraria um carro vermelho aqui em Porto Alegre pois estariam o tempo todo acenando pra mim pensando que sou um taxi (experiência própria).
Assim como acredito eu que um carioca não compraria um carro amarelo e nem o paulista um branco.
Outro problema com as cores é que as próprias fabricas não disponibilizam outras cores que não seja o preto/prata.
Alexboni
ResponderExcluirAcho que não me fiz entender com clareza: queria mostrar que os carros velhos de hoje são os mesmos de dez anos atrás, porque os "eletrodomesticos" não servem nem pra isso - não envelhecem, pois quebram e são descartados antes. No fundo é o velho clichê: não se fazem mais carros para durar, ao contrário dos já citados Fuscas e Chevettes.
Enfim, revendo depois de um dia vejo que o que escrevi não é grande coisa mesmo, de um jeito ou de outro ;-)
Anderson,
ResponderExcluirDesculpe, minha lembrança de carros vermelhos no RS provavelmente vem das ocasiões que em que estive em outras cidades gaúchas, e não de POA.
Por falar em carros brancos em SP, eu mesmo (que não sou taxista) comprei um, em 2007. Tá certo que foi por encomenda - o carro teve que vir de carreta desde Vitória. Questão de gosto pessoal - pra mim, o branco era a melhor cor para aquele modelo específico. Mas também tenho notado um ligeiro aumento no número de automóveis particulares brancos nas ruas de SP, talvez refletindo o "revival" na popularidade dessa cor na Europa. Como dizem os ingleses da revista Car, "white is the new silver"!