
Hoje em dia estamos inundados de informação por todos os lados, mesmo que poucos saibam o que fazer com ela. Não vejo nenhum problema nesta facilidade de se encontrar informações, muito pelo contrário, acho realmente saudável. Mas existem alguns efeitos colaterais: a história que vou contar hoje é de um carro fantástico, mas desconhecido a seu tempo; um carro criado para pessoas que detestam publicidade e portanto não teve propaganda ou divulgação alguma; uma verdadeira lenda sussurrada pelos entusiastas mais bem informados daquele tempo, como se fosse um segredo maçônico reservado aos mestres do mais alto grau; uma lenda. Coisa impossível hoje em dia...

O 5000GT criado por Frua para o Agha-Kahn
Tudo começou quando, no início dos anos 50, a Maserati resolveu desenvolver um novo V-8 para usar em competições de carros esporte, a ser lançado em 1955 ou 1956. Mas a catástrofe de Le Mans em 1955 (quando o Mercedes SLR de Pierre Levegh voou sobre as arquibancadas matando mais de 80 pessoas numa verdadeira carnificina nunca mais vista) fez que o grande V-8 fosse abandonado. Foi necessário que o milionário americano (na verdade um siciliano naturalizado) Tony Parravano demonstrasse interesse no V-8 para uso em Indianápolis para que o desenvolvimento fosse retomado.
O motor acabou por ficar fora do famoso oval de Indiana, mas apareceu no que se tornaria o mais brutal e ameaçador carro esporte de competição dos anos 50: o Maserati 450/S.

Criado pelo simples expediente de trocar o seis em linha de três litros do 300/S pelo novo V-8, o 450/S simplesmente era o mais veloz carro de sua época por uma boa margem, e só não teve mais sucesso porque quebrava muito (o pobre 300/S não estava acostumado com tanta força bruta). Interessante notar que até alguns Panoz aparecerem nos anos 90, este Maserati permanecia como o mais potente carro esporte de competição com motor dianteiro.
O motor é uma das obras primas desenhadas sob Giulio Alfieri: um V-8 todo em alumínio (fora as camisas semi-molhadas de ferro fundido, como o seis em linha do do 3500GT), duplo comando de válvulas no cabeçote acionado por um sofisticado trem de engrenagens, duas válvulas e duas velas por cilindro, em uma câmara de combustão hemisférica. Com quatro Webers de duplo corpo, e girando até 7.000 rpm, o motor debitava algo entre 400 e 450 cv em competição.

No ano de 1957, a empresa fez um cupê aerodinâmico baseado no 450/S, para competir na famosa (e veloz) prova de Le Mans. Desenhado pelo famoso aerodinamicista Frank Costin (depois famoso por ser o “COS” de MarCOS) e fabricado por Zagato, o carro teve atuação irrelevante na prova e foi aposentado.
Mas, numa daquelas interessantes reviravoltas do destino, foi avistado, encostado num canto da fábrica em Modena, pelo americano Byron Staver, em uma visita no ano de 1958. Staver pediu à fábrica que o convertesse para uso nas ruas, o que foi feito. O carro resultante era totalmente intratável e mal-resolvido como carro de rua, mas obviamente mais divertido que 10 supermodelos bêbadas num quarto de motel...


O primeiro 5000GT, de Touring, conhecido como "Xá da Persia"
Entra em cena então Sua Majestade Imperial Mohammad Reza Pahlavi, o Xá da Pérsia (país hoje conhecido como Irã). Para quem não sabe, o Xá, que seria deposto nos anos 80 pela revolução radical islâmica do Aiatolá Khomeini (criando um regime que perdura até hoje), era um entusiasta do automóvel de muito bom gosto, que amealhou uma das maiores e mais interessantes coleções automobilísticas de todos os tempos.
Pois bem, Sua Majestade era um dos primeiros compradores do Maserati 3500GT, e gostou muito da personalidade digna e civilizada deste primeiro carro da empresa desenvolvido para as ruas. Conversando com Alfieri, o assunto acabou passando pelo carro de Staver, cuja descrição muito interessou o Xá. Uma coisa leva a outra, veio uma ideia do monarca persa: seria possível colocar este motor, acalmado para o uso civilizado, num refinado 3500GT?
Nascia então o primeiro Maserati 5000GT. Dois carros foram inicialmente construídos, ambos com carroceria de Touring, um para ser mostrado no Salão de Turim em 1959, e outro para o Xá. Mesmo sendo esta primeira carroceria de Touring controversa (para dizer o mínimo, causou grande interesse no salão, e começou a se espalhar a lenda).
O modelo nunca esteve em catálogo, sendo fabricado somente sobre encomenda. Quase nunca apareceu na imprensa, especializada ou não, e nenhum comercial ou propaganda foi feita com ele. Apenas 34 carros foram fabricados em cinco anos a partir de 1959, e lista de compradores é impressionante: O dono da Lambretta, Fernando Innocenti (depois dono de uma marca de automóveis com seu nome), Briggs Cunningham, o Agha-Khan, Basil Read (dono do circuito sul-africano de Kyalami, que ficou com o carro do salão), Giovanni Agnelli (da Fiat), o presidente Adolfo Lopez Mateos do México e muitos outros.
Era simplesmente o mais veloz e mais caro carro de rua durante o tempo em que esteve em “produção”: chegava, com a relação de diferencial mais longa disponível, a 280 km/h, naquele longínquo ano de 1959. Cada um deles era virtualmente exclusivo, e mais de 11 carrocerias diferentes foram montadas nos 34 chassis.
E foi um carro relativamente fácil para se fazer: partindo do 3500GT, o chassi foi encompridado e reforçado, e ajustes em freios e suspensão foram feitos, mas era produzido largamente com os mesmos componentes do carro menor, inclusive o câmbio ZF e o eixo traseiro Salisbury. A única coisa realmente diferente era o glorioso motor de corrida.

Os primeiros dois carros receberam um motor pouquíssimo alterado em relação ao 450/S (acima). Basicamente, baixou-se a taxa de compressão de 9,5:1 para 8,5:1, e usou-se um comando menos agressivo, em conjunto a um diâmetro maior dos pistões (de 93,8 mm para 98,5 mm) resultando em 4.935 cm³ contra 4.477.9 cm³ do carro de competição. Debitava 340 cv a 5.500 rpm.
Os carros subsequentes foram ainda mais civilizados por um motor extensamente alterado (abaixo). Sumia a o trem de engrenagens que acionava os comandos, substituído por corrente. O diâmetro dos cilindros fora reduzido e o curso aumentado, para 94 x 89 mm, resultando em 4.941,1 cm³. Mas a mais importante modificação era a injeção de combustível: um equipamento multiponto Lucas inglês, mecânico. A potência baixou para 325 cv a 5.800 rpm, mas num motor bem mais civilizado e tratável.

As carrocerias são normalmente associadas aos donos dos carros: O primeiro, com carroceria Touring, é hoje conhecido como “Xá da Persia”. Três deles foram fabricados. O segundo, e mais comum (22 carros), é a carroceria de Allemano. Frua fez uma belíssima carroceria para o Agha-Khan, que acabou por ser a base estilística do Maserati Quattroporte de 1963. Dois 5000GT “Agha-Khan” foram fabricados, um para o próprio e o outro para seu arquiteto particular. O mais belo é talvez a criação de Ghia para Innocenti e Cunningham, abaixo.


Mas tudo isto sabemos hoje apenas; durante a sua época somente uns poucos sabiam da sua existência. Uma das poucas vezes em que apareceu numa revista especializada foi na
Autocar inglesa de 30 de março de 1962, onde o repórter Bernard Cahier conseguia um passeio no carro destinado ao Sr. Innocenti. Ele atingiu 152 milhas por hora (243 km/h), e ficou absolutamente estupefato com o carro. A reportagem se chamava: “Maserati de 5 litros e injeção, somente por encomenda”.


Nas fotos acima e na primeira do post, o mais comum 5000GT: carroceria Allemano
Mas a mais interessante reportagem da época foi a breve descrição de um passeio ao volante de um “Xá da Persia” (talvez o terceiro carro produzido), escrito por Hans Tanner e publicado na revista inglesa Motor Racing, em fevereiro de 1960. É interessante porque além de descrever o carro, dá uma idéia para gente de como as coisas eram diferentes em 1960. Alta velocidade não era ilegal nem imoral, e o estado da arte do automóvel ainda era ditado por pequenas empresas perdidas no interior da Itália... E que um Maserati de rua é desde sempre um grã-turismo, como gostava Alfieri e seus aristocráticos clientes: veloz, mas sempre seguro, silencioso e tranquilo. Tanner andou com o lendário piloto de testes da Maserati, Guerino Bertocchi, uma pessoa que trabalhou com os irmãos Maserati antes da guerra, e permaneceu no mesmo posto por toda sua vida. Dizem que num 250F, o único mais rápido que Bertocchi era Fangio. Vejam que legal:
“- Devagar agora, ein Signor Bertocchi!! – disse o sorridente guarda no portão.
- Não se preocupe! - foi a resposta, e lá fomos nós, imediatamente atingindo 128 km/h em primeira marcha. Logo, o cinco-litros lá na frente estava quente o suficiente, e resolvemos tomar alguns tempos com o carro. Eu cronometrei o primeiro quilômetro a exatos 270 km/h, e o segundo a 278. Com um bocado de tráfego na estrada, e tendo que reduzir a velocidade para ultrapassar, nós fizemos uma média de 246 km/h de Modena até Bolonha, levando apenas seis minutos e cinquenta segundos para cobrir os 28 km. Lembrei que antes da Autostrada Del Sole, pela antiga Via Emiglia, eram 30 minutos em um carro normal...
Na volta, Bertocchi me avisou que ia tentar algo especial: existe na pista uma curva longa desenhada para ser feita a 200 km/h. Entramos nela a bem mais que isto, e ele acelerou ainda mais. Na saída da curva, chequei a velocidade: 250 km/h.
Se existe mais alguma coisa para falar sobre este fantástico carro, é que a estas velocidades são muito fáceis, tudo acontece na maior suavidade e silêncio. A 270 km/h o carro parece estar a 150. Meu único medo é que, nas mãos de um motorista menos habilidoso, isto se torne perigoso...”

O 5000GT com carroceria Bertone
O 5000GT, além de ser um grande carro, fabricado exclusivamente sob encomenda de milionários e nobres, selou definitivamente a personalidade da marca Maserati, intimamente ligada a seu engenheiro-chefe, o grande Giulio Alfieri.
Sob Alfieri, a Maserati se consolidou como uma marca diferente de supercarro italiano: enquanto Ferraris (e mais tarde Lamborghinis) eram para garotos, um Maserari é um Gran Routier por definição, um carro para adultos. Não é a toa que sempre foi mais caro que todos, e mesmo tendo desempenho inferior, sempre foi preferido por sua clientela exclusiva. Silenciosos, confortáveis, espaçosos, e com espaço para malas: adjetivos poucas vezes usados para um Ferrari, mas sempre num Maserati.

O 5000GT com carroceria PininfarinaE o motor, o principal (e às vezes único, como já contei
aqui) componente fabricado em casa, tem que ser um motor de corrida. O seis em linha (3500GT, Sebring, Mistral) tem suas origens no motor do 250F, um dos maiores carros de F-1 de todos os tempos, e com o qual Fangio se tornou imortal. E o V-8 do 5000GT, sem a dupla ignição, se tornaria o coração de todo Maserati de verdade. Quattroporte, Ghibli, Indy, Mexico, e finalmente a obra prima de Alfieri, o Bora. Até meados dos anos 80, você ainda podia comprar um Quattroporte com este V-8. Não era uma balela de algum publicitário sobre origens nas pistas, mas sim um autêntico motor de corrida dos anos 50 ali debaixo do capô. Se você olhasse de perto, provavelmente poderia ver até a marca no cabeçote, no lugar onde iam as segundas velas do 450/S...Quem mais poderia oferecer isso?
MAO
Já que engrenei neste assunto, em breve conto para vocês a história do Bora, e o motivo porque a Maserati morreu com este incrível V-8. Até lá!