
Quando alguns leitores, falando do Mille, disseram que entusiastas não deviam perder tempo com tão vil veículo, fiquei muito triste. Triste porque sempre acreditei que todo carro merece respeito.
Sempre achei que todo carro, por mais humilde e irrelevante que seja, é algo nobre.
Transcende a sua situação de máquina pelo simples fato de ser o supremo provedor de liberdade.
Quem nunca sentiu a sensação de libertação que é entrar pela primeira vez em seu próprio veículo? Sozinho ao volante de seu automóvel, o homem moderno se recolhe ao último refúgio onde pode experimentar algum real poder sobre seu destino, livre das amarras do vil transporte público, com seus trajetos fixos que temos que acatar, com as companhias de viagem que não desejamos ter. No automóvel, somos capitães de nosso próprio navio, senhores de nosso destino. Onde mais o somos?
Além disso, todo automóvel já sai das fábricas com um acessório incrível: impresso em seu corpo de metal está a marca da mão humana. Seus criadores, físicos e intelectuais, deixam nessa coisa uma quantidade anormal de sangue, suor, risadas e lágrimas.
Isto porque a criação de um novo automóvel, mesmo nessa era sem fronteiras e de máquinas que tornam cálculos complicadíssimos corriqueiros, ainda é um ato de coragem e fé. Coragem para criar algo do nada, e fé que isto que criamos vai primeiro funcionar direitinho, depois agradar a quem deve agradar, e depois ser reconhecido como correto. Carros novos nascem filhos de um batalhão de gente que trabalhou anos a fio contra dificuldades imensas.
E é obra de Coragem, também, porque por mais que novas técnicas de simulação tentem prever tudo, só se tem a real certeza do que o carro vai ser quando se monta o primeiro carro. Pode se cercar-se de medidas e cálculos, de clínicas e desenhos, mas quando o bicho está pronto, e podemos vê-lo ao vivo, entrar nele, ligá-lo, faze-lo andar, só aí, anos depois de bolarmos o negócio, é que vamos realmente conhecê-lo. Lesser Men should not try it.
E depois que o carro está pronto, projetado e nascido em metal, plástico, vidro e borracha, ele tem que ser produzido. Produzido muitas vezes aos milhares, todo dia, infalivelmente iguais. E montar um carro ainda é um trabalho duríssimo. Uma linha de montagem é um lugar implacável, que se move velozmente, e que não para por nada. Não se pode errar um parafuso, não se pode ir ao banheiro. Implacável. De novo, lesser men should not try it.
Para mim, um dos pontos mais fascinantes de uma fábrica de automóveis é o fim da linha de montagem. Naquele ponto, depois de ser estampado, soldado, pintado e montado, depois daquele monte de peças fabricadas em outras cidades, outros países, outros continentes terem viajado muitos km para serem montadas, tudo converge para aquele ponto único, onde um sujeito entra, sem cerimônia dá a partida, e aquilo que até ali era um objeto inanimado, parece que cria vida e parte para vivê-la. Você sempre se pergunta se vai ligar, mas eles sempre ligam. Eu não canso de me sentir embasbacado que o façam...
Mas vejo que hoje toda esta nobreza que sempre associei ao automóvel vem sendo abalada. Mais e mais, como tudo num mundo onde as utopias morrem, o motivo, o meio e o fim de tudo é o dinheiro. Dinheiro é bom e todos gostamos dele. Mas vejo hoje corporações se entregando a arte da enganação, ao ardil e mesmo a desonestidade para vender automóveis. Vejo engenheiros mais preocupados com carreira e promoção do que em aprender uma nobre tradição.Vejo o negócio permear de tal forma o trabalho dos criadores, que toda criatividade some, todo lampejo de humano que sempre houve na criação de carros some.
Não se tenta mais fazer algo melhor, mais barato, mais eficiente. O que se faz é tentar descobrir o quanto pior se pode fazer algo, sem que o consumidor perceba o engodo. Existem departamentos inteiros dedicados a esta enganação, disfarçados sob a égide de “agregadores de valor”, “otimização de produto”, “engenharia de valor”, e por aí vai.
É lamentável. Gosto de acreditar que existem empresas imunes a isto, mas será? E se são, até quando?
Como disse Rob Gordon, protagonista do excelente filme “Alta Fidelidade”, quando é interpelado por um cliente no balcão de sua loja de antiquados vinis, em momento claramente introspectivo para ele:
Cliente: Do you have Soul?
Sempre achei que todo carro, por mais humilde e irrelevante que seja, é algo nobre.
Transcende a sua situação de máquina pelo simples fato de ser o supremo provedor de liberdade.
Quem nunca sentiu a sensação de libertação que é entrar pela primeira vez em seu próprio veículo? Sozinho ao volante de seu automóvel, o homem moderno se recolhe ao último refúgio onde pode experimentar algum real poder sobre seu destino, livre das amarras do vil transporte público, com seus trajetos fixos que temos que acatar, com as companhias de viagem que não desejamos ter. No automóvel, somos capitães de nosso próprio navio, senhores de nosso destino. Onde mais o somos?
Além disso, todo automóvel já sai das fábricas com um acessório incrível: impresso em seu corpo de metal está a marca da mão humana. Seus criadores, físicos e intelectuais, deixam nessa coisa uma quantidade anormal de sangue, suor, risadas e lágrimas.
Isto porque a criação de um novo automóvel, mesmo nessa era sem fronteiras e de máquinas que tornam cálculos complicadíssimos corriqueiros, ainda é um ato de coragem e fé. Coragem para criar algo do nada, e fé que isto que criamos vai primeiro funcionar direitinho, depois agradar a quem deve agradar, e depois ser reconhecido como correto. Carros novos nascem filhos de um batalhão de gente que trabalhou anos a fio contra dificuldades imensas.
E é obra de Coragem, também, porque por mais que novas técnicas de simulação tentem prever tudo, só se tem a real certeza do que o carro vai ser quando se monta o primeiro carro. Pode se cercar-se de medidas e cálculos, de clínicas e desenhos, mas quando o bicho está pronto, e podemos vê-lo ao vivo, entrar nele, ligá-lo, faze-lo andar, só aí, anos depois de bolarmos o negócio, é que vamos realmente conhecê-lo. Lesser Men should not try it.
E depois que o carro está pronto, projetado e nascido em metal, plástico, vidro e borracha, ele tem que ser produzido. Produzido muitas vezes aos milhares, todo dia, infalivelmente iguais. E montar um carro ainda é um trabalho duríssimo. Uma linha de montagem é um lugar implacável, que se move velozmente, e que não para por nada. Não se pode errar um parafuso, não se pode ir ao banheiro. Implacável. De novo, lesser men should not try it.
Para mim, um dos pontos mais fascinantes de uma fábrica de automóveis é o fim da linha de montagem. Naquele ponto, depois de ser estampado, soldado, pintado e montado, depois daquele monte de peças fabricadas em outras cidades, outros países, outros continentes terem viajado muitos km para serem montadas, tudo converge para aquele ponto único, onde um sujeito entra, sem cerimônia dá a partida, e aquilo que até ali era um objeto inanimado, parece que cria vida e parte para vivê-la. Você sempre se pergunta se vai ligar, mas eles sempre ligam. Eu não canso de me sentir embasbacado que o façam...
Mas vejo que hoje toda esta nobreza que sempre associei ao automóvel vem sendo abalada. Mais e mais, como tudo num mundo onde as utopias morrem, o motivo, o meio e o fim de tudo é o dinheiro. Dinheiro é bom e todos gostamos dele. Mas vejo hoje corporações se entregando a arte da enganação, ao ardil e mesmo a desonestidade para vender automóveis. Vejo engenheiros mais preocupados com carreira e promoção do que em aprender uma nobre tradição.Vejo o negócio permear de tal forma o trabalho dos criadores, que toda criatividade some, todo lampejo de humano que sempre houve na criação de carros some.
Não se tenta mais fazer algo melhor, mais barato, mais eficiente. O que se faz é tentar descobrir o quanto pior se pode fazer algo, sem que o consumidor perceba o engodo. Existem departamentos inteiros dedicados a esta enganação, disfarçados sob a égide de “agregadores de valor”, “otimização de produto”, “engenharia de valor”, e por aí vai.
É lamentável. Gosto de acreditar que existem empresas imunes a isto, mas será? E se são, até quando?
Como disse Rob Gordon, protagonista do excelente filme “Alta Fidelidade”, quando é interpelado por um cliente no balcão de sua loja de antiquados vinis, em momento claramente introspectivo para ele:
Cliente: Do you have Soul?
Rob:That all depends.
MAO
MAO
