Li a matéria do Bill sobre a morte do automóvel e entendi perfeitamente seus sentimentos e confraternizo com eles.
Porém senti também que existe todo um outro lado da questão que ficou de fora. Este lado é a razão desta matéria.
Primeira verdade que temos de enfrentar: a indústria, seja ela de que natureza for, tem um objetivo primário: dar lucro. E a indústria do automóvel não é diferente. Ela faz carros que vendam muito e dêem o máximo de lucro. Em definitivo, ela não faz obras de arte perfeitas. Para que dêem o máximo de lucro, carros precisam ser baratos de produzir e serem vendidos com facilidade com boa margem. Isto nos traz a um ponto chave: o consumidor.
A indústria não pode produzir um carro totalmente individualizado para cada consumidor. Ela precisa produzir o mesmo produto de forma a agradar o maior número de consumidores dentro da população. Mas quem é esse consumidor? O que ele deseja? De que ele precisa? Para entendermos essa questão, temos que voltar um pouco no tempo.
Nos anos 60 e 70, era do carburador e do platinado, o carro era o instrumento de passeio e diversão da família nos fins de semana e a forma de ir e voltar rapidamente do serviço. Nos finais de semana, quando não se passeava, era comum pai e filhos se juntarem para lavar e encerar o carro, limpar um carburador ou regular um platinado. Muita gente fazia a manutenção do próprio carro e raro era o automóvel que não tinha uma caixa de ferramentas e peças-reserva. Os carros eram tecnicamente simples e seus donos tinham razoável conhecimento de seu funcionamento.
Porém hoje o quadro é completamente diferente.
As pessoas tem vidas atribuladas, horário de trabalho sobrecarregado, dificilmente perdem menos de três horas diariamente no trânsito congestionado, têm que administrar um complexo orçamento doméstico cheio de gastos que muitas vezes não existiam há 30 anos (TV a cabo, internet, celular, escola das crianças, plano de saúde), os dois cônjuges trabalham e quando chegam em casa têm todo um trabalho doméstico a ser feito.
Estas pessoas esperam respostas imediatas aos seus problemas. Comem em restaurantes ou lanchonetes para não cozinharem e terem de lavar louça. Deixam seus pagamentos em débito automático para não terem de ir ao banco. Querem um computador que faça por eles o que eles querem, no lugar de aprenderem a lidar com a máquina.
Estes consumidores não têm mais tempo para seus carros como tinham seus pais ou avós.
A eletrônica nos carros afastou o trabalho amador feito pelo dono. É preciso ferramentas especiais e treinamento para lidar com sistemas de injeção e ABS, por exemplo.
Alguns usuários ainda conservam até um certo nível de interesse e até são capazes de dizer alguns detalhes técnicos sobre seus carros, porém se tornaram entusiastas teóricos. Coloque uma chave de fenda na mão deles e a maioria não saberá sequer o que fazer com ela.
Esta diferença não é culpa das pessoas em si, mas de todo contexto.
A maioria dos usuários encara o carro como símbolo de status ou como mero (e caro) utilitário. Interessa a eles, do ponto de vista puramente prático, que o carro tenha um volante, um acelerador, um freio, um câmbio e que os leve para com segurança e conforto ao seu destino. Uma parcela significativa deles são aqueles que compram carros zero-quilômetro porque morrem de medo que o carro quebre e os deixe na mão no meio da rua, e uma parte destes, não por coincidência, são aqueles que nem lembram que é necessário calibrar os pneus e trocar o óleo do motor com certa regularidade.
Para este tipo de usuário interessa tanto o que há debaixo do capô tanto quanto o que há por trás da tela de plasma da TV novinha que a torna tão mais fina que sua velha TV de tubo com três anos de uso. E será também o usuário que se deleitará com os carros equipados com toda parafernália que dispensarão o motorista, através de um "chofer" digital.
Caro Bill, não é exatamente o automóvel que morreu. É o automóvel como o conhecemos que está morto e só falta ser sepultado.
Eles são e continuarão sendo feitos para a multidão, e não para você ou para mim. E, se não quisermos ficar à pé, teremos que abdicar de nossos gostos.
Então, se tiverem de vir, que venham os híbridos, os elétricos e os auto-dirigidos e toda sorte de evoluções e mutações que o automóvel possa sofrer.
E, talvez, quando eles estiverem entre nós, descubramos que estamos ficando velhos ranzinzas, que abominam Rock'n'Roll porque achamos que boa música só pode ser no estilo de Glenn Miller.