
Há quase exatamente 55 anos atrás, em novembro de 1954, numa fria manhã de inverno em South Bend, Indiana, Ferry Porsche entregava o protótipo acima para a Studebaker, junto com alguns motores-reserva. O carro estava fadado a nunca ser produzido, mas foi crucial para a empresa de Stuttgart: foi com o dinheiro do contrato selado em 1952 para desenvolvê-lo que a obra da fábrica hoje famosa pode começar finalmente.
A história, revelada por Karl Ludvigsen em 1974 (e publicada ao redor do mundo, em diversas revistas, aqui na seção “Painel” da falecida Quatro Rodas) é a seguinte:

Por meio de um contato via Max Hoffmann (o famoso representante da marca suábia nos EUA), Ferry sela um contrato para desenvolver um sedã compacto (para os padrões americanos) para a Studebaker, então em uma ótima fase de vendas e perspectivas futuras. De volta a Stuttgart, é alocado o número de projeto para o projeto, selo tradicional da aprovação do conceito: “Tipo 542 – sedã seis-cilindros Studebaker”.
A ideia inicial de Porsche, de um avançado carro de motor traseiro refrigerado a ar, monobloco e com uso extensivo de alumínio e magnésio na mecânica, foi logo substituído por realidades únicas da empresa de South Bend.
Primeiro, um esquema tradicional de motor dianteiro e tração traseira foi solicitado. No motor, apesar da Studebaker não estar avessa à refrigeração a ar, foram solicitadas versões refrigeradas a água e ar, para posterior decisão quando estivessem prontos.
Outro problema apareceu quando os americanos declararam não estarem dispostos a usar nada além de ferro fundido no motor. Sua fundição, acostumada a este material denso mais tradicional e conhecido, se recusava a aventurar-se com as ligas de alumínio e magnésio tão caras à Porsche. E depois havia o problema do monobloco.
A Studebaker só fazia carros com chassi separado, por um problema pragmaticamente simples: suas carrocerias, como era tradicional então em carros deste tipo, ia apenas do curvão para trás (a “frente”do carro era montada depois) , e a fábrica de carrocerias era ferramentada para fazer carros deste comprimento. Além disso, carrocerias eram enviadas de pé em vagões ferroviários especiais para outra planta na Califórnia, e mudar tudo isso para um carro com o comprimento total seria inviavelmente caro.

A Porsche resolveu isso criando um segundo “monobloco” para ser aparafusado no curvão (acima). O resultado foi que os ganhos de peso por se usar um monobloco sumiram completamente, e o carro pesava o mesmo que um com chassi.

Para o motor, a Porsche desenvolveu um incomum V-6 a 120 graus entre bancadas, OHV com comando central no vale do “V”, varetas e balancins. Com pistões de alumínio forjado, e deslocando três litros, debitava 98 cv a 3.700 rpm na versão refrigerada a ar (542 L, Luft, acima), e 106 cv a 3.500 rpm na versão refrigerada a água (542 W, Wasser, abaixo). Os pesos, a seco, eram de 220 kg para o 542W e 206 kg para o 542L, vantagem clara para o refrigerado a ar, pois este peso não conta a água, o radiador e a tubulação necessárias para fazê-lo funcionar. O motor era 10% maior em deslocamento que o Studebaker Champion 6 da época, e era maior que o do Aero-Willys também (este com 2,6 litros como o nosso), bem como do Nash Rambler. Como disse Ludvigsen em 1974, a fórmula de durabilidade do VW permanecia: faça um motor relativamente grande, que gire baixo, e mantenha-o bem aquecido.

A Studebaker enviou para Stuttgart vários componentes (e seus desenhos) que deviam ser usados no novo carro: maçanetas de porta e travas diversas; a caixa de direção de setor e sem-fim da Saginaw, câmbio de 3 marchas com overdrive do Studebaker Commander, o sistema de freio com tambores de 9 polegadas, e as rodas de aço estampadas de 15 polegadas. A suspensão dianteira era independente, e a traseira de eixo rígido com molas helicoidais.
Durante 1954, Ferry Porsche utilizou o protótipo em várias viagens pela Europa, inclusive quando foi ao Salão de Genebra, mas o carro permanecia um segredo bem guardado.
Quando entregou o carro finalmente, Porsche já sabia que a empresa já havia perdido o interesse. Uma espiral de problemas iniciado com a nova linha de 1953 já drenava o caixa da empresa, que estava se unindo a Packard e em pouco tempo desapareceria totalmente. Não havia como gastar o necessário para ferramentar a produção do tipo 542. Mas o carro chegou a ser extensamente avaliado, por ninguém menos que John Z. De Lorean, então chefe do departamento experimental da Studebaker.
Em sua pasta, naquele dia 55 anos atrás, Ferry levava uma última tentativa de fazer um carro com a empresa de South Bend: o esquema básico da proposta do tipo 633: um sedã de duas portas e quatro lugares, com um quatro cilindros contraposto de dois litros refrigerado a ar na traseira (abaixo). Como se era de esperar, não houve interesse e o 633 permaneceu um carro no papel apenas.

Muitos apontam hoje o tipo 542 como o primeiro Porsche de 4 portas, antes dos recentes Cayenne e Panamera. Mas o carro era apenas um contrato de engenharia; seria vendido como um Studebaker e foi criado dentro de especificações dirigidas por esta empresa. Não poderia nunca ser um Porsche, como o Opel Zafira também não é, apesar de ser também um projeto da empresa de Stuttgart-Zuffenhausen.
E o mais interessante é notar que, sem saber desta história toda, Ed Cole e a Chevrolet criariam um carro impressionantemente próximo da ideia inicial de Ferry para o Studebaker: o Chevrolet Corvair de 1959.


MAO

A primeira vez que li algo escrito por Karl Ludvigsen, tinha 10 anos e revirava a coleção de revistas Quatro Rodas de meu avô. Ludvigsen era figurinha constante na seção de notícias "Painel" da revista durante os anos 70, quando a revista ainda era uma leitura decente. Tempo bom que não volta mais...
Mas Ludvigsen começou a escrever bem antes; foi um dos fundadores da revista que hoje conhecemos como Car and Driver ainda nos anos 50, e foi editor da Motor Trend, bem como um dos autores originais da nossa querida Automobile Quarterly.
Além disso, Ludvigsen teve longa carreira na indústria automobilística, iniciando na General Motors em 1956 como engenheiro-projetista, onde terminou, durante os anos 60, como um executivo de relações com a imprensa, ligado especialmente ao departamento de Design. Teve postos na Fiat durante os anos 60, e foi vice-presidente da Ford Europa durante os anos 80.
Mas a verdadeira paixão dele, e seu legado, sempre foi a história do automóvel. Exímio pesquisador, acumulou uma biblioteca que hoje é referência para o estudo deste tema, sediada na Inglaterra. Gente como ele é rara e indispensável: sem sua diligente pesquisa, nunca saberíamos metade do que vocês leem diariamente aqui neste blog. Ludvigsen, junto com pessoas como Chris Nixon, Beverly Rae Kimes e Griffith Borgeson, são a fonte em que todos nós escribas bebemos. A fonte de todo SABER.
Para minha sorte, os temas preferidos de Ludvigsen são também os meus preferidos: Porsche, Mercedes-Benz, Corvettes e Corvairs. Desta forma, minha estante está recheada de obras deste meu ídolo: da história completa da Porsche ( Porsche: Excellence was expected), até a excelente compilação de 100 anos de competição da Mercedes, sem contar clássicos como a história do nascimento da VW, "Battle for the Beetle". Seus livros de fotos inéditas de sua biblioteca, o "Ludvigsen Library series" são leves mas interessantíssimos.
Quando se debruça sobre um tema, vocês podem ter certeza que ele será esgotado. Não há uma pedra sequer que Ludvigsen não levante para olhar embaixo, e seu detalhismo é, por falta de uma palavra melhor, impressionante. As vezes a gente cansa um pouco ao enfrentar 5 páginas sobre os diagramas de aberturas de válvulas de um obscuro Porsche de competição dos anos 60, mas na maioria das vezes ele é simplesmente genial. Nos coloca em um imenso escritório cheio de enormes pranchetas onde se projeta o Porsche 917 freneticamente nos últimos dias de 1968; nos põe a conversar com Ed Cole sobre os segredos e sutilezas de seu Corvair; nos coloca nos sapatos de Ferdinand Porsche enquanto ele cria os Mercedes de competição dos anos 20.
Nascido em Kalamazoo, no estado americano de Michigan, a 24 de abril de 1934, Karl Ludvigsen comemora hoje 75 anos de idade. Ainda em plena atividade em sua casa na Inglaterra, lançou recentemente uma obra magnífica sobre o Professor Ferdinand Porsche e os carros que criou antes de seu filho Ferry colocar seu nome em carros e o tornar 10 vezes mais famoso do que já era, "Genesis of a Genius". Que assim permaneça; o nosso mundo é melhor com ele exatamente assim.
Parabéns, Karl, e que os Deuses do automóvel o tenham sempre em bom lugar!
MAO
Nota: para uma amostra da obra de Ludvigsen, visitem a sua página no site de sua editora:
http://www.karlludvigsen.com/