
Eu tive uma S10 uma vez. Era na verdade uma Blazer, ano 1996, básica, com o motor de 2,2 litros e injeção monoponto, a gasolina.
Antes de andar mais para frente nesta história, tenho que dizer que fui criado dentro de Chevrolets, e ainda hoje, apesar de uma série de absurdos perpetrados pela marca ao longo dos anos, tenho um lugar bem no fundo do peito que ainda é completamente apaixonado pela marca. Não o suficiente para turvar meu julgamento, mas algo que permanece lá no fundo da cabeça, sempre querendo sair. Quando eu gosto de um Chevrolet, gosto de verdade.
Mas voltando àquela Blazer. Sabem aquela máxima de carro que bebe muito, mas pelo menos anda? Bem, a Blazer era lenta feito Kombi 1200 carregada de cimento, mas bebia feito um Landau enfurecido. Exatamente o contrário... E também era um carro enorme, mas sem espaço interno. Não fazia curvas bem, mas era dura e sacolejante feito um cabrito montês no cio. O motor era vibrador, não tinha força em baixa nem em alta, era áspero e renitente a qualquer dia e hora, quente ou frio. E tudo quebrava, tudo fazia barulho, e nada funcionava direito.

OK, estou exagerando nas cores aqui para efeito dramático, mas só um pouco: o fato é que a Blazer foi o pior carro que já tive. Simplesmente, depois dela nunca mais tive um Chevrolet zero-km. Sim, era ruim a ponto de traumatizar qualquer um. Não é de se estranhar então que toda vez que o assunto passa por S10, tenha calafrios de ojeriza.
Mas aí, semana passada, bons 14 anos depois, acabei por passar uns dias viajando com uma S10 cabine dupla novinha, com o novo motor de 2,4 litros flexível. Ao iniciar a viagem, lembrando-me daquele camburão vermelho Goya de 1996, me preparei para o pior. Parecia que ia ser uma viagem longa e sofrida.
Mas o fato é que tive uma enorme surpresa. Primeiro, o compromisso entre estabilidade e conforto deste carro é outra coisa completamente diferente do que me lembrava. Está muito bom realmente, a ponto até de entusiasmar. E o carro não pula mais, seu complexo de cabrito montês completamente curado. Não sei o que fizeram, mas funcionou perfeitamente. E o ruído interno está agora também bem baixo. Todos os comandos principais do motorista (direção, câmbio, pedais) estão infinitamente mais agradáveis, e parece que realmente alguém gastou muito tempo acertando eles, o que deveria ser regra em um carro que permanece tanto tempo em produção.

E depois há o motor. Este grande quatro-cilindros me deixou de boca aberta, pasmo. Esperava bem menos de algo que, afinal de contas, não parecia ser muito diferente do propulsor daquela minha Blazer. Ah, como estava enganado... O motor é, primeiro, suave, coisa que o 2,2 estava longe de ser. E é forte. Não forte como um seis em linha de um antigo BMW M5, mas, sim, forte como os grandes seis em linha Chevrolet do passado sempre foram. Forte no sentido de ter aquela inesgotável e deliciosa reserva de torque a qualquer rotação, algo que proporciona uma incrível sensação de ser empurrado pela mão de um gigante que pratica tai-chi-chuam: suave mas decidido. Quem nunca sentiu um murmurar de um seis em linha Chevrolet, ainda não aprendeu que existem muitas formas de prazer automobilístico além da força bruta. A S10 flex se move de uma forma assustadoramente próxima de meus velhos Opalas 4100. Como não gostar imediatamente disso?
O motor confere ao carro uma personalidade maravilhosa, que achava ter sido perdida para sempre num carro zero-km; aquela suave, macia, mas forte e agradável sensação de andar num Chevrolet antigo. Dos americanos da década de 50 e 60, ao Opala e ao Omega, todos os carros que tinham a gravatinha na frente tinham isso. Há algo naquela simplicidade mecânica, naquela agradável sensação de andar numa nuvem densa de torque, de suavidade, que toca fundo em minha alma. Linearidade aqui é o principal. O motor tem a mesma força e a mesma suavidade, sempre. No geral, o carro agrada muito, e me faz sentir em casa.

Mas há problemas na S10, lógico, e o principal aparece logo de cara: o carro é limitado a 150 km/h. Se essa velocidade fosse perto de sua máxima real, tudo bem; é menos pior um limitador entrar em ação quando estamos esgoelando um carro. Eu acho limitadores um saco, mas consigo conviver com eles, quando agem desta maneira. Mas não é o caso aqui. O carro chega muito fácil, e tranquilamente, a esta velocidade, e é uma enorme surpresa quando entra em ação, porque você não acha que está andando rápido. É daqueles carros que roda solto, e se você bobear, bate no limitador, mesmo em uma viagem tranqüila com a família. Era só o que faltava, como se não bastasse ter que olhar no velocímetro o tempo todo por causa dos radares, quando eles não existem ainda tenho que me preocupar com o limitador ridiculamente baixo do meu próprio carro? Não é melhor manter os olhos na estrada? Francamente...
Sei que 150 km/h é muito acima do limite de velocidade vigente nas estradas por aí, e não estou fazendo apologia à infração de regras de trânsito aqui. Mas deixemos as hipocrisias politicamente corretas do mundo moderno de lado; todo mundo pode imaginar como este limitador, embora teoricamente irrelevante, é extremamente irritante no mundo real. Irritante ao ponto de me impedir de comprar este carro. Tão simples quanto isso.

O acabamento interno é obviamente antiquado, tanto em desenho quanto em funcionalidade. A gente não tem como não se sentir de volta ao final dos anos 80 dentro dela, apesar dos tecidos e cores que tentam disfarçar este fato. Muita gente já desiste do carro só por isso; eu adorei o final dos anos 80, para mim aquilo é um oásis de um passado gostoso de lembrar, a cada CLÉC sonoro das travas de porta... O desenho externo da carroceria também não ajuda. Os plásticos pendurados nela recentemente nos fazem lembrar imediatamente do Sr Cabeça de Batata, aquele brinquedo imortalizado nos filmes da Pixar. Realmente, o resultado não é dos melhores, para ser bem generoso nos comentários...
Mas na verdade nada disso importa, é tudo bobagem, principalmente o design externo, que só é útil para impressionar seu círculo de amizades por uma semana. O que esta picape é, e ninguém ainda se deu conta disso, é simples: o último Chevrolet de verdade. Para muita gente, isso é uma grande desvantagem. Para outros, é algo sem importância alguma. Mas para mim... ah, faz um mundo de diferença.
Sabe, um velho Chevrolet não é algo que se gosta logo de cara, feito um BMW. Existe algo neles que se mostra apenas com grande familiaridade, com tempo mesmo, algumas vezes coisa de mais de uma geração, de pai para filho. Quando você aprende a gostar deles, eles se tornam tão aconchegantes e familiares quanto o colo de sua mãe, com a vantagem de poder usá-lo mesmo quando se pesa 150 kg.

Percebi isso quando, na mesma semana, estacionei a S10 na frente da eclética garagem do meu grande amigo Bill Egan. Os Egan, além de Jaguar, Porsche e Alfa-Romeo, tem uma bela seleção de Chevrolets, pelo menos um para cada década, de 1930 a 1960. Egan estava rearranjando os carros no galpão (um trabalho hercúleo quando se têm mais de 20 deles), e me pediu ajuda. Pela primeira vez, dirigi então a magnífica a picape "Martha Rocha" azul, 1956, que faz parte da coleção desde o ano passado.

Só manobrei, mas que coisa deliciosa era aquilo! Tudo que gostei na S10, mas exponencialmente mais claro, evidente! Que liso é aquele seis em linha Stovebolt, que precisa e macia é aquela alavanca de três marchas na coluna... Manobrar aquela velha picape com aquele incrivelmente bem acertado motor foi como deitar em um lençol de seda: liso, macio, suave, bom demais da conta. Egan não conseguia me tirar de dentro da caminhonete. Acho que foi a manobrada mais memorável de minha vida.
Você começa a entender o por quê dos americanos terem adotado as caminhonetes (picapes) como módulos de transporte pessoal; nas boas, largas e retas estradas de lá, nada há mais confortável que uma boa picape full-size, com um preguiçoso motorzão lá na frente. Tem um efeito calmante imediato.
Conversando com ele depois, sentados tomando uma Itaipava gelada bem no meio da garagem, ao inconfundível som de Alfas lentamente enferrujando, a conversa veio parar nesse papo de Chevrolet, sobre o que faz eles especiais. Egan obviamente tem uma posição privilegiada para falar disso. Diz ele:
"Primeiro tem a suavidade e a linearidade do motor. Você sente ela do 31 até o 55 (que é V-8), perfeitamente lisos, lineares, incansáveis. Depois tem o comportamento, apesar de ser um carro americano, eles são muito mais capazes do que aparentam; O Chevrolet parece lento para os não iniciados, mas anda forte, e confiante, com uma direção até que precisa perto de carros similares... E não há prazer maior no mundo do automóvel do que acelerar um Chevy, aquele crescer linear do motor, aquela troca de marchas lenta, precisa, prazerosa, e voltar a dar motor e ouvi-lo crescer de novo. É algo único, que nenhum outro carro faz igual, e só vivendo com eles é que se percebe. E mesmo assim, só depois de dirigir qualquer outra coisa e sentir falta daquilo que não sabe explicar entender o que é que o faz tão bom."
Me toquei que a maioria dos Chevys dele tem cambio de três marchas na coluna; para mim é outra coisa que todo Chevy devia ter. Ah, pena que a S10 tenha uma alavanca de cinco marchas no assoalho...
Mas hoje em dia nada mais disso importa. A S10 é velha e execrada pela imprensa e entusiastas, como uma notícia de ontem. A própria GM deve morrer de vergonha dela, e se houver outra para substituí-la, provavelmente será algo mais próximo a Toyota Hilux atual, a melhor e mais avançada picape de sua categoria desde o seu lançamento. Ou a nova Amarok da VW, que dizem ser ainda melhor, mais próxima de um Golf do que a um 18-310 Titan em comportamento.
Mas já temos picapes Toyota. Por que precisamos de outra, feita pela Chevrolet? Hoje em dia todos querem ser iguais, e não há mais espaço para diferenças. A Mercedes-Benz quer ser esportiva como uma BMW, e a Chevrolet tem que fazer Toyotas. Órfãos ficam pelo caminho, e nenhuma lágrima é derramada. No caminho da pasteurização do automóvel, só sobrevive quem consegue lançar modismos de aparência, e que possam ser conduzidos usando-se o mínimo possível do cérebro, todos iguaiszinhos em comportamento. Carros são apenas utensílios de moda, e algo velho é apenas isso: um sapato velho démodé.

A S10 vem da pior época da GM, o meio dos anos 80. Nunca foi um carro excelente, mas incrivelmente nesta versão, aqui no Brasil, retém um DNA que imaginava perdido para sempre. Onde mais se pode achar isso hoje em dia? Talvez num Corvette, mas este sempre foi um Chevrolet diferente do que falamos aqui, sendo quase uma marca em si só. Na Silverado americana? Não tenho como saber, mas desconfio que não, ao ver as resenhas da imprensa especializada americana, que adorou ela. Se esta imprensa gostou, não deve ser um Chevrolet de verdade: eles raramente entendem o que tentei explicar aqui. Poucos entendem, o que é uma grande pena; precisamos de gente mais sensível a este tipo de coisa, ao que não pode ser medido, ao que é difícil até de explicar, mas que são as mais sinceras e importantes das emoções. A perda da S10 é inevitável; não posso nem sugerir que possa ser diferente. Mas não acredito que o DNA dela precise sumir para sempre.
Não é preciso, mas vai acontecer, sem sombra de dúvida. Que assim seja. Eu tenho ganas de comprar a última das S10 2,4-litros, e sair da concessionária em direção ao horizonte, e a mil encontros com o maldito limitador de velocidade, ouvindo infinitas repetições daquele hino à desesperança, a valores perdidos e declínio de um mundo adorado, que é a música "American Pie" de Don Mclean:
A long long time ago
I can still remember how that music used to make me smile
And I knew if I had my chance
That I could make those people dance
And maybe they'd be happy for a while
But February made me shiver
With every paper I'd deliver
Bad news on the doorstep
I couldn't take one more step
I can't remember if I cried
When I read about his widowed bride
But something touched me deep inside
The day the music died
So, bye-bye, Miss American Pie
Drove my chevy to the levee
But the levee was dry
And them good old boys were drinkin' whiskey and rye
Singin' this'll be the day that I die
This'll be the day that I die
I can still remember how that music used to make me smile
And I knew if I had my chance
That I could make those people dance
And maybe they'd be happy for a while
But February made me shiver
With every paper I'd deliver
Bad news on the doorstep
I couldn't take one more step
I can't remember if I cried
When I read about his widowed bride
But something touched me deep inside
The day the music died
So, bye-bye, Miss American Pie
Drove my chevy to the levee
But the levee was dry
And them good old boys were drinkin' whiskey and rye
Singin' this'll be the day that I die
This'll be the day that I die
MAO
