
Eu adoro o Jeremy Clarkson, mas raramente concordo com as opiniões dele sobre carros. Não é por menos, o homem odeia Porsches e ama Ferraris, e teima em discriminar os Corvettes porque, segundo ele, têm potência específica baixa.
Mas concordo muitas vezes com ele em temas mais amplos da vida e do automóvel; e não há como não admirar como ele consegue "provar" qualquer coisa com uma metáfora amalucada qualquer, fazendo-nos cair da cadeira de tanto rir no processo. Um cara realmente legal, se meio difícil de ser levado a sério.
Lembrei disso quando um colega me mandou um texto onde ele tentava definir, em pleno século XXI, o que é um carro admirável. Tarefa dificílima, pois num mundo onde a perfeição é a norma, a objetividade de tal tarefa se torna impossível. Sabemos o que é legal, o que é cool, o que nos move. Mas como defini-lo?
Jeeza acertou na veia:
“Porque você não fica acordado a noite inteira desejando um Hyundai? Simples. Porque um Hyundai não é feito para meter a mão dentro da suas calças. É feito para meter a mão no seu bolso. É a mesma história para o Tata Nano, o Vectra, o BMW serie 3 e o Mercedes GL. Todos os carros que vc não gosta e não quer ter foram feitos, como eletrodomésticos, somente para fazer dinheiro.”
“Já se perguntou por que tantas pessoas amam a Jaguar com paixão, e porque Lexus sempre são tratados como chatos e sem graças? Isto é porque a Jaguar foi criada por William Lyons, um homem com uma visão, e a Lexus foi criada com uma apresentação de PowerPoint e princípios de contabilidade. Como uma regra geral, carros japoneses não tem mágica alguma, e não são desejáveis. Exceto algumas Hondas, e isto não é uma coincidência. A Honda foi criada por um engenheiro com uma visão, enquanto a Toyota foi começada por um comitê para fazer o Japão ficar rico.”
Clarkson está ao mesmo tempo errado e correto. Sim, é claro, um carro é realmente uma coisa importante se foi feito a partir de um sonho, de uma visão, de uma boa idéia que seja, e não a partir de um comitê chatérrimo de posicionamento mercadológico de uma empresa, como foi a Lexus. Mas a parte sobre os carros japoneses em geral serem chatos...é uma daquelas generalizações engraçadas mas que na verdade serve para perpetuar uma imagem preconceituosa, que não ajuda em nada ninguém.
A Toyota é realmente o maior fabricante de carros-eletrodomésticos do mundo, disso não existe dúvida. Mas, como já contei aqui na história do 2000GT, não está proibida por decreto de fazer algo memorável, usando para isso exatamente aquilo que o Jeremy tão bem definiu como sendo indispensável para tal.
E como a aventura do 2000GT permanece largamente esquecida, e de qualquer forma pertence a um passado distante, hoje, em pleno 2009, a Toyota está prestes a tentar de novo mudar esta generalizada percepção, com o seu Lexus LFA.

A primeira coisa que se precisa saber sobre o LFA é que ele levou dez anos para ficar pronto. Dez anos, para quem não está familiarizado com os ciclos de produto modernos, é uma eternidade, uma era inteira. Dá para fazer 3 gerações inteiras de um carro comum com dez anos, e ainda sobraria tempo para um face-lift. Mas aí é que está: o carro é tudo menos comum.

Como já acontecera com o 2000GT e com o Honda NSX, o carro tem como objetivo ser o melhor carro esporte moderno. E, também como nestes dois, números absolutos de desempenho seriam secundários ao comportamento geral dinâmico, à absoluta perfeição ergonômica, e a uma experiência sensorial superlativa.
Isto é uma maneira eminentemente japonesa de enxergar as coisas, e vem de uma velha tradição que remonta o tempo dos samurais: O culto àquela sensação única que um cavaleiro experiente e um bom cavalo experimentavam juntos, a sagrada “união entre o homem e seu cavalo”. Acho simplesmente genial toda vez que tentam atingi-la com um automóvel. Um americano, por exemplo, nunca seria assim; ele tem que ser algo que possa se provar como melhor, como é o Corvette ZR1: mais rápido que qualquer coisa de mesmo preço em Nurburgring. Para ele, o que o carro faz e quanto custa é o que interessa. O americano, preso ao valor das coisas que possui, ao TER em oposição ao SER, não entendeu nem o 2000GT, nem o NSX, e muito provavelmente não entenderá o LFA.
E como prega Clarkson, o LFA e seus antecessores foram criados não com o objetivo de encher os cofres da empresa, e sim com e de ser um investimento em imagem, tecnologia, e, em mais um retrato da maneira japonesa de fazer as coisas, treinamento de jovens engenheiros.
Nesta última parte é que começamos a entender o novo Lexus. Os dez anos foram necessários porque tudo foi desenvolvido pela Toyota, da transmissão ao chassi e suspensões. Fazendo tudo em casa a empresa espera desenvolver também seu corpo técnico, e mais: gerar entusiasmo pela marca não somente fora da empresa, mas também dentro dela.

E que carro os entusiasmados japoneses fizeram. Começando pela estrutura, inicialmente a idéia era fazê-la de alumínio, mas logo foi decidido o uso de resina impregnada de fibra de carbono, para redução de peso, sempre o maior inimigo de um carro memorável para se dirigir. Parece simples dito assim, mas a tecnologia de uma estrutura em fibra de carbono ainda é algo restrito, principalmente em produção normal.
E a Toyota simplesmente se jogou de cabeça: desenvolveu uma estrutura feita de peças manufaturadas em todos os processos conhecidos para se moldar termofixo reforçado, usando o processo que a peça “pedia” tecnicamente, sem pensar em custo. Em alguns casos, como na coluna “A”, desenvolveu um tear específico para criar um tubo de fibra dentro do outro. Quem, como eu, já foi profissional em projeto de peças de plástico termofixo em automóveis, vê o quadro abaixo como uma aula resumida de como projetar peças deste tipo.

Não importa que todo este trabalho economizou somente 100 kg em relação ao alumínio. Redução de peso só se consegue sendo obsessivo, e tirando o máximo possível de tudo. Como dizia Chapman, “shed the ounces that the pounds will come” (retire as gramas que os quilos aparecem).
O motor, feito em conjunto com a Yamaha como o 2000GT, é uma obra de arte: fundido no mesmo lugar em que a Toyota faz seus motores de F1, é um V-10 a 72 graus, que desloca 4,8 litros, e que gira excepcionalmente liso e fácil, a ponto de ir da marcha lenta ao corte (a incríveis e estratosféricos 9.500 rpm) em seis décimos de segundo! Tal resposta impôs um conta-giros digital, pois nada analógico conseguiria acompanhar. São dez gloriosas borboletas individuais, como um BMW M, e uma atenção única a um detalhe importantíssimo em um carro que pretende atingir da mesma forma todos os cinco sentidos: o som.

Seu escapamento foi criado como um instrumento musical que na verdade, é. O som é simplesmente uma festa completa com couvert artístico incluso, um berro gutural, grave, que se torna alto, agudo e terrível como o mítico grito de anúncio da morte da Banshee celta.
O motor central-dianteiro tem cárter seco para ficar mais baixo, e uma solução inédita: uma engrenagem possibilita ele ficar mais baixo que o tubo de torque (de fibra de carbono) que leva a força do propulsor para a caixa de cambio traseira, seqüencial e automatizada, de seis marchas. Todo o sistema motor-tubo de torque-transmissão, extremamente rígido, é suportado apenas nas suas extremidades geométricas, anulando os efeitos da aplicação de potência no chassi. Sim, é isso mesmo, não existe reação ao torque aplicado.

Tudo isso gera uma altura do centro de gravidade sem precedentes: apenas 450 mm do solo, logo abaixo do volante. Com radiadores na traseira do carro, a distribuição de peso é de 48% na frente e 52% na traseira. Quase sem balanços, com uma sofisticada suspensão de braços triangulares sobrepostos na dianteira, e multibraço traseira, e colocando os ocupantes ao máximo possível do centro do carro, a sensação de controle, a união perfeita entre motorista e montaria, parece fácil de alcançar.


O carro tem 552 cv e pesa apenas 1450 kg. Com uma relação peso-potência desta magnitude, e uma velocidade final de 325 km/h, o carro precisa de pneus e freios realmente especiais. Enormes Bridgestones assimétricos desenvolvidos especialmente para o carro calçam rodas de 20 polegadas forjadas em alumínio, e escondem discos de carbono-cerâmica com pinças flutuantes.

Quanto ao desenho externo, tem gerado grande controvérsia, mas em minha opinião é original e extremamente bem executado, com linhas de caráter geniais, que ficam bonitas, limpas e sem interrupção olhando-se de qualquer ângulo. Eu simplesmente adorei, principalmente os pequenos faróis sem decoração excessiva, e das portas sem moldura de vidro.




Com tanto cuidado, e tanto investimento, me parece claro que os 500 carros que serão produzidos, mesmo custando quase 400 mil dólares cada, dificilmente darão grande lucro a empresa. E não é o objetivo; novamente, o que a Toyota quer é ser admirada pelos seus semelhantes.
Como nada é perfeito, faltam apenas duas coisas neste carro: a primeira é uma alavanca com uma bola em cima no centro do console (borboletas, bah) e em segundo, falta a adoção de um nome que é seu por direito: Toyota 4800GT.

Toda esta história de Japão injustiçado me fez lembrar o que o grande escritor russo Fiodor Dostoievski disse, em 1871:
“Se um grande povo não acreditar que a verdade somente pode ser encontrada nele mesmo, se ele não crer que apenas ele está apto e destinado a se erguer e redimir a todos por meio de sua verdade, ele prontamente se rebaixa à condição de reles material etnográfico, e não um grande povo. Um povo realmente grande jamais poderá aceitar uma parte secundária na história da humanidade, nem mesmo entre os primeiros, mas fará questão da primazia. Uma nação que perde esta crença deixa de ser uma nação.”
Deixando de lado as tristes implicações disto para nós, brasileiros, é claro como a água que assim agem as nações a respeito do automóvel. A Inglaterra tem o McLaren F1, Alemanha tem o Porsche 911 (e um monte de outros; os alemães REALMENTE querem dominar o mundo), a Espanha teve o Pegaso, a França os Voisin e Bugattis, a Itália os Alfas, Ferraris e Lambos, e os americanos tem os Corvettes, Mustangs e os Chargers Hemi pretos da década de 60.
E agora há o Japão, com o magnífico LFA. Logo, virá a Coreia. É só uma questão de tempo.
MAO

fotos e vídeo: Toyota