Texto e vídeo: Arnaldo Keller
AK
Aqui segue um filminho que recentemente fiz da Curva 3 do Circuito de Interlagos. Eu estava com um Peugeot 207 Quicksilver – motor espertinho de 1,4-litros e carro bonzinho de curva – e, quando fui a Interlagos para a comemoração do 70o aniversário do autódromo, da área dos boxes vi a Curva 3 lá ao fundo, quieta, deserta e abandonada. A festa aqui, aquela barulheira estridente de locutor desenfreado, aquele monte de gente nada a ver com corridas zanzando, e a mega-curva lá, sozinha, silenciosamente se esfarelando por abandono, por esquecimento.
Mundo ingrato.
Ingrato porque o Autódromo de Interlagos deve sua glória ao hoje desprezado e esquecido circuito antigo, que infelizmente teve seus pontos fortes amputados e, pior, amputados por estupidez, por burrice – por cabeças de meleca que tiveram ideias de meleca e com poder de transformar suas ideias de meleca em realidade de meleca. Mundo ingrato, mundo burro, insensato, insensível, onde ignorantes conseguem impor sua pequenez.
Amputaram os membros mais fortes, os mais saudáveis, os mais representativos.
E pra quê?
A justificativa é estapafúrdia: o circuito seria extenso demais para a Fórmula 1 "moderna" – demoraria muito tempo para que chegasse o socorro num caso de acidente.
Os miolos de siri dão essa explicação e tudo bem – como se não fosse possível colocar mais ambulâncias, bombeiros, etc.
E o pior é que essa baboseira colou e tocaram adiante a coisa a partir dessa premissa errada. E ainda disseram que foi o Senna que ajudou a bolar a coisa. Mentira. O Senna ficou estarrecido, chocado, isso sim; que eu sei de boa fonte.
Não sou, da equipe do Autoentusiastas, a pessoa certa para falar do circuito antigo, porque nele nunca corri. Naquele tempo eu corria de kart e em seguida parti para surfar e viver na fazenda, e com isso me distanciei das corridas.
A pessoa certa aqui é o Bob Sharp, que ali correu dezenas ou centenas de vezes, ali lutou duras lutas contra pilotos, contra dificuldades mecânicas, contra a neblina da madrugada, contra a sede e contra só ele sabe o que. Ali ele perdeu e ali venceu, e assim, ali deixou sua marca. A marca está lá, no ar, assim como a marca de outros grandes e também dos pequenos, por que não? Peço que o Bob logo dê aqui a sua opinião a respeito, ainda mais porque sei bem qual ela é.
Mas naquela tarde do passado mês, era eu que estava olhando para a Curva 3. E ela olhava pra mim. Parecia um monstro que me convidava a voltar a sentir a sua energia. Era um desafio que me fazia? Não. Uma curva nunca te desafia, simplesmente porque elas sabem que são imbatíveis – sempre haverá um modo de fazê-las mais rápido, portanto, não há como vencê-las.
Eu já a conhecera. Já testara carros na parte abandonada da pista e já despinguelara por essa maravilhosa curva em relevé algumas vezes. Ela fica no final do antigo Retão. O camarada passava lascado pela Reta dos Boxes e, dependendo do carro, fazia as Curvas 1 e 2 com o pé cravado. Assim, já entrava no Retão com o motor cheio e em marcha alta. O Retão é numa leve descida e é longo, bem longo, e nele o carro dava tudo o que tinha, tudo o que podia. A maioria dos carros ali dava a sua velocidade final mesmo. Hoje, não. Hoje as retas logo acabam e em muitos carros nem se coloca a última marcha, o que é ridículo.
E nessas, ao final do Retão o sujeito vinha em última marcha e com o motor quase saindo de giro, e toca a frear e reduzir para tomar a Curva 3. Dureza! Haja freios, haja discos e pastilhas e/ou tambores e lonas se atritando e rangendo desesperados; hajam punta-taccos e sutil sensibilidade para ajeitar e equilibrar a máquina para enfrentar esse autêntico enorme mergulho que é fazer a Curva 3.
Vai aqui, portanto, a deliciosa Curva 3. Procure imaginar o que era fazer isso com uma carretera endemoniada cuspideira de fogo pelos escapes, procure imaginar fazer isso sob neblina densa de cortar com faca, procure imaginar a envolvente volúpia dessa curva.
E já que ela me convidou, fui. Fui e filmei, para que os que não a conhecem sentissem um pouquinho da sua delícia.
Dois filetes d’água, bem na tomada da curva, me acautelavam, fazendo com que maneirasse alguns metros até que os pneus secassem de todo. Em seguida à 3, claro, vem a 4, que já está lá embaixo, no plano, e creio que o melhor é uni-las numa só linha curva, e foi o que fiz. Os asfalto está poroso e em alguns pontos há areia e noutros há pedregulhinhos soltos. No Retão eu maneirei, para que não me notassem e viessem pegar no meu pé.
Estranho – foi uma experiência que, como sempre me ocorre ali, provocou alegria, prazer, tristeza e revolta, pela ordem.
Mundo ingrato.
Ingrato porque o Autódromo de Interlagos deve sua glória ao hoje desprezado e esquecido circuito antigo, que infelizmente teve seus pontos fortes amputados e, pior, amputados por estupidez, por burrice – por cabeças de meleca que tiveram ideias de meleca e com poder de transformar suas ideias de meleca em realidade de meleca. Mundo ingrato, mundo burro, insensato, insensível, onde ignorantes conseguem impor sua pequenez.
Amputaram os membros mais fortes, os mais saudáveis, os mais representativos.
E pra quê?
A justificativa é estapafúrdia: o circuito seria extenso demais para a Fórmula 1 "moderna" – demoraria muito tempo para que chegasse o socorro num caso de acidente.
Os miolos de siri dão essa explicação e tudo bem – como se não fosse possível colocar mais ambulâncias, bombeiros, etc.
E o pior é que essa baboseira colou e tocaram adiante a coisa a partir dessa premissa errada. E ainda disseram que foi o Senna que ajudou a bolar a coisa. Mentira. O Senna ficou estarrecido, chocado, isso sim; que eu sei de boa fonte.
Não sou, da equipe do Autoentusiastas, a pessoa certa para falar do circuito antigo, porque nele nunca corri. Naquele tempo eu corria de kart e em seguida parti para surfar e viver na fazenda, e com isso me distanciei das corridas.
A pessoa certa aqui é o Bob Sharp, que ali correu dezenas ou centenas de vezes, ali lutou duras lutas contra pilotos, contra dificuldades mecânicas, contra a neblina da madrugada, contra a sede e contra só ele sabe o que. Ali ele perdeu e ali venceu, e assim, ali deixou sua marca. A marca está lá, no ar, assim como a marca de outros grandes e também dos pequenos, por que não? Peço que o Bob logo dê aqui a sua opinião a respeito, ainda mais porque sei bem qual ela é.
Mas naquela tarde do passado mês, era eu que estava olhando para a Curva 3. E ela olhava pra mim. Parecia um monstro que me convidava a voltar a sentir a sua energia. Era um desafio que me fazia? Não. Uma curva nunca te desafia, simplesmente porque elas sabem que são imbatíveis – sempre haverá um modo de fazê-las mais rápido, portanto, não há como vencê-las.
Eu já a conhecera. Já testara carros na parte abandonada da pista e já despinguelara por essa maravilhosa curva em relevé algumas vezes. Ela fica no final do antigo Retão. O camarada passava lascado pela Reta dos Boxes e, dependendo do carro, fazia as Curvas 1 e 2 com o pé cravado. Assim, já entrava no Retão com o motor cheio e em marcha alta. O Retão é numa leve descida e é longo, bem longo, e nele o carro dava tudo o que tinha, tudo o que podia. A maioria dos carros ali dava a sua velocidade final mesmo. Hoje, não. Hoje as retas logo acabam e em muitos carros nem se coloca a última marcha, o que é ridículo.
E nessas, ao final do Retão o sujeito vinha em última marcha e com o motor quase saindo de giro, e toca a frear e reduzir para tomar a Curva 3. Dureza! Haja freios, haja discos e pastilhas e/ou tambores e lonas se atritando e rangendo desesperados; hajam punta-taccos e sutil sensibilidade para ajeitar e equilibrar a máquina para enfrentar esse autêntico enorme mergulho que é fazer a Curva 3.
Vai aqui, portanto, a deliciosa Curva 3. Procure imaginar o que era fazer isso com uma carretera endemoniada cuspideira de fogo pelos escapes, procure imaginar fazer isso sob neblina densa de cortar com faca, procure imaginar a envolvente volúpia dessa curva.
E já que ela me convidou, fui. Fui e filmei, para que os que não a conhecem sentissem um pouquinho da sua delícia.
Dois filetes d’água, bem na tomada da curva, me acautelavam, fazendo com que maneirasse alguns metros até que os pneus secassem de todo. Em seguida à 3, claro, vem a 4, que já está lá embaixo, no plano, e creio que o melhor é uni-las numa só linha curva, e foi o que fiz. Os asfalto está poroso e em alguns pontos há areia e noutros há pedregulhinhos soltos. No Retão eu maneirei, para que não me notassem e viessem pegar no meu pé.
Estranho – foi uma experiência que, como sempre me ocorre ali, provocou alegria, prazer, tristeza e revolta, pela ordem.
AK