“...to boldly go where no man has gone before."
(Ir sem medo onde nenhum homem jamais esteve.)
Criar um carro fica cada dia algo mais banal em termos de engenharia. Departamentos de projeto hoje repetem o processo de desenvolvimento com precisão cirúrgica, e como o fazem incessantemente, colocam no mercado regularmente carros muito bem executados. Vemos uma incrível procissão de belíssimos e polidos carros novos passar à nossa frente, todos eles muito parecidos em sua excelência de projeto e execução.
Claro que há variações, mas hoje ao avaliar carros nos prendemos em detalhes, e cada vez menos se vê algo realmente ruim. O outro lado desta moeda é o fato de que também raramente vemos algo bom de verdade, original e inovador a ponto de mover a arte de construir carros para frente. Colabora para isso o fato de que, apesar de termos carros velozes e seguros como nunca tivemos antes, paradoxalmente há cada vez menos lugares, e incrivelmente, vontade da população, para se usar essa incrível capacidade de velocidade com segurança.
Hoje carros se tornaram acessórios de moda apenas, e a sua aparência é o principal, senão único, motivo de escolha. Um motor potente, rodas enormes e todo o resto são usados como acessórios de luxo; ninguém quer ou pode, ou ainda sabe o que significa ter mais desempenho que o oferecido por um Mille, mas ninguém admite, e todos querem ser reconhecidos como pessoas endinheiradas.

Mas existem dois carros, ambos fabricados por conglomerados gigantes, e à venda normal em seus países de origem, que saem desta norma. Se produzir carros ficou comum e fácil, ciência conhecida, é também porque os fabricantes, movidos hoje pelo valor de suas ações e o seu lucro SOMENTE (sempre foram fatores importantíssimos, mas não os únicos), têm muito medo de se aventurar ao desconhecido. Altera-se design apenas, mas mantém-se dentro de uma fórmula conhecida, que pode ter seu desempenho de vendas previsto claramente, com baixíssima margem de erro. Poucas vezes se vê alguém explorando o inexplorado, avançando o estado da arte.
Fico profundamente triste com isso, porque esta costumava ser a grande ambição do ser humano. Como diz o diário estelar do capitão James T. Kirk em sua primeira anotação, na frase que abre este post, até o fim dos anos 60 éramos uma espécie que queria viajar para a Lua e para o espaço sideral, que queria descobrir os limites de seu mundo, que queria uma igualdade social utópica, que queria descobrir o quão rápido poderia ser seu carro, e que queria entrar num avião que o levasse de Nova York a Paris em 3 horas..
Queria mover-se mais rápido, e o nada parecia impossível. Mas de repente os anos 70 chegaram e começamos a achar que éramos estúpidos destruidores da natureza, que carros rápidos eram perigosos e poluidores demais, e que viver muito tempo é mais importante do que viver intensamente com algum significado e propósito maior. Passamos a nos autoflagelar como uma espécie estúpida e destruidora de tudo, e até a ficção científica abandonou o explorador Kirk por 325 mil visões diferentes de um futuro sombrio e desolado. Nos tornamos todos freiras num grande convento mundial, com medo de velocidade, do inesperado, da inovação, do risco. Com medo de viver. Hoje somos uma espécie terrivelmente individualista que quer, bem... Ficar rica, e se mudar para a praia.
Interessante notar, então, onde achamos algo novo no mundo do automóvel hoje: no mais caro e no mais barato carro à venda. Lógico; os extremos são por definição os limites do possível; mudá-los é esticar este limite, afastar as fronteiras e mudar as regras vigentes.
O mais caro é muito conhecido e comentado: o Bugatti Veyron. Como não poderia deixar de ser, é um carro criado pela vontade de um homem sozinho: Ferdinand Piëch. Seu conselho de acionistas e seus diretores o chamaram de louco; seus engenheiros mais ainda com a impossibilidade completa de atingir seus objetivos; seus financistas infartaram todos. Mas Piech provou novamente que onde há uma vontade suficientemente forte, há uma maneira. O primeiro carro de rua sem modificação a atingir mais de 400 km/h prova isso de forma irrefutável.
E que coisa incrível ele é. Não é belo, nem elegante em sua engenharia, e nem podia ser. O que ele é, é um monolito em homenagem à tecnologia automobilística, um germânico monumento ao exagero e complexidade como caminho para atingir objetivos ambiciosos. Piëch é um ditador implacável, e por sua vontade seus engenheiros não apenas tiveram que fazer um carro que andasse a 400 km/h (o que seria relativamente fácil), mas um carro de luxo para duas pessoas que fosse completamente seguro, algo que se comportasse melhor a 400 km/h do que um carro normal a 200.
O resultado é incrível, extraordinário, embasbacante: mais de 1.000 cv, tração total, aerodinâmica ativa, espaço, conforto e opulência que faria inveja a um milionário dos anos 30. A quantidade de calor que deve ser processada pelo carro a 400 km/h, em um dia de verão com o ar-condicionado ligado, é algo monstruoso; exemplo simples do feito de engenharia que ele representa. Se até James May (do programa Top Gear), o notório "Capitão Lerdeza", chegou a 407 km/h num carro deste tipo com uma tranquilidade e segurança fenomenais, qualquer um pode fazê-lo. E isto, por si só, já valeu o esforço dos engenheiros.
Piëch tem reputação de chefe implacável, mas em minha opinião o mundo precisa de mais pessoas como ele, sob pena de se tornar chato demais. Se o homem chegou à lua, foi porque Kennedy prometeu isso ao povo americano quando tal coisa era impossível; temos um carro seguro a 400 km/h pelo mesmo motivo. E para os que acham que o motor de tudo é sempre o dinheiro, saibam que Ferdinand Piëch era rico antes de chegar a idade adulta, filho que é de Louise Piëch, antes Louise Porsche, filha mais velha de Herr Dr Ing h.c. Ferdinand Porsche. Teve uma carreira brilhante na empresa de sua família até 1972, quando Louise e o irmão Ferry Porsche decidiram, para acabar com batalhas internas na empresa, que nenhum membro da família deveria trabalhar nela.
Muita gente penduraria as chuteiras ali, mas Piëch entrou para a Audi, onde criou o quattro original, e acabou, muito tempo depois, a pessoa mais poderosa da VW, o chefe supremo. Ali pôde arregaçar suas mangas e mostrar do que era capaz, e o Veyron é o mais visível exemplo disso. A sanha de Piëch em deixar marcada sua passagem pelo mundo é clara no fato de que teve nove filhos...
Mas o carro sobre o qual eu queria realmente falar aqui é outro, o oposto exato do Veyron, mas que compartilha com ele objetivos de projeto que pareciam impossíveis antes dele. Queria falar sobre o Tata Nano.
Fazer um carro de menos de três mil dólares era impossível antes do Tata Nano. Como o Bugatti, o Nano não é apenas um carro barato, o que seria, de novo, fácil, mas um carro de verdade por 2.700 dólares. Para fazê-lo, Ratan Tata mandou seus engenheiros jogar o livro de regras no lixo.

Como foi criado para o seu país de origem, a Índia, onde a vasta maioria da população usa motocicletas e derivados para o seu transporte, muita gente tende a considerar o carro como apenas uma irrelevância regional. Mas eu vejo nele algo novo e profundamente ligado à realidade atual do automóvel, e com um potencial incrível. E um projeto muito bem feito, quebrando paradigmas e mostrando que é possível fazer um carro de verdade por um preço nunca antes visto. Um incrível exercício cerebral de descoberta do carro mínimo, o essencial e básico que todo carro deve ter, sem excesso algum. O carro mais magro do mundo.
E como é este "carro mínimo"? O motor, um pequeno bicilíndrico de alumínio com 600 cm³ e 35 cv, é suficiente para fazer o carrinho chegar a 100 km/h, o que é exatamente o que se considera o mínimo aceitável. É posicionado atrás, e não na posição transversal dianteira hoje quase universal, por motivos de empacotamento e simplificação das juntas das semi-árvores (sem esterçamento, são menos exigidas e menores), além de diminuir o peso e o tamanho da tubulação de escapamento. Por fora do carro, há duas tomadas de ar atrás das portas traseiras, uma de cada lado. Do lado direito é a admissão de ar para o radiador, que fica encostado na parte de dentro do para-choque traseiro, e do outro, admissão de ar fresco para o motor.
A carroceria é praticamente uma cobertura mínima para os 4 ocupantes adultos e as 4 portas de acesso. Minúsculo, mede 3.099 mm de comprimento, com um entre-eixos de 2.230 mm. Por dentro, espaço suficiente para o conforto dos quatro adultos, mesmo se todos eles tiverem mais de 1,90 m de altura. Os bancos dianteiros têm uma inteligente estrutura comum que engloba inclusive a alavanca de freio de estacionamento, e tudo entra no carro junto na linha de montagem.
O painel de instrumentos é simples, de plástico, sem porta-luvas, mas com amplas bandejas para que se possam carregar coisas em cima dele. As portas são levíssimas, e os vidros descem completamente dentro delas. Não há limitador nas portas, o que significa que só permanecem abertas se você segurá-las, mas elas são tão leves que isso nunca será um problema. Os painéis de porta são parecidos com os do Uno de 1984, ou seja, suficientes. Existem porta-mapas nas portas, ainda que carreguem somente mapas.
O carro resultante é extremamente leve, pesando apenas 600 kg, e isto determinou que seria possível eliminar o servofreio; que as pequenas rodas de 12" teivessem apenas 3 parafusos; que quatro pequenos tambores de freio seriam suficientes. A suspensão é independente nos quatro cantos, por braço arrastado atrás, torre McPherson na frente. Motor de alumínio e suspensões independentes no mais barato carro do mundo? O pequeno Tata realmente faz a gente repensar uma série de conceitos.
Interessante notar que não é um hatchback, sendo a "porta" traseira removível por meio de parafusos por dentro do carro, para alguma manutenção no motor. Existem até versões mais bem equipadas, sendo que a mais completa (com ar-condicionado, travas e vidros dianteiros elétricos, e até servofreio) custa ainda bem razoáveis 3.700 dólares.
O carro é muito bem projetado, mas segundo informações de pessoas que já o viram ao vivo, ainda não está no nível de execução de empresas do primeiro mundo. Folgas grandes e irregulares demais, interferências entre chicote elétrico e partes móveis como as portas, Comprar um parece que não é boa ideia, pois mostra todos os indícios de que dores de cabeça serão inevitáveis. A Tata pode não ser a VW, mas basta observar a Hyundai para ver que fazer carro com qualidade dimensional e durabilidade pode ser aprendido rapidamente, depois que o primeiro passo foi dado. E fazer corretamente algo não custa um centavo a mais.

Fato curioso é que em ambos os carros o espaço para bagagem é ridiculamente pequeno (apesar de no Tata ser possível rebater o banco traseiro para resolver isso). Parece que hoje, se você é pobre ou exepcionalmente rico, bagagem não é problema.
No caso do Tata, há também a questão da segurança passiva, hoje a única que interessa a todas as freirinhas do mundo afora. É verdade que o Nano é leve e simples assim também por não atender legislações europeias e americanas de segurança dos ocupantes. Mas tem cintos de segurança de verdade, pelo menos. O seu desempenho em acidentes é desconhecida para mim, mas não deve ser lá grande coisa. Mas e daí? Com certeza é mais segura que uma dessas motocicletas de 125 cm³ de motoboy. E, diferenças de preço regionais à parte, um Nano custa menos de cinco mil reais na Índia, e uma Honda CG 125 nova custa aqui seis mil reais.

Acho também que com velocidade baixa e consumo idem, seria o meio de transporte ideal para o dia a dia desta São Paulo tão povoada de radares que ninguém mais se arrisca a passar de 60 km/h, mesmo que ainda assim tome multas de vez em quando, em lugares onde o limite é 50 ou 40 (!!!). E sinceramente, acho genial que ele aproveite a falta de legislação para fazer algo tão eficiente; mostra o que perdemos com esse medo tolo de morrer em uma bola de fogo com essas traiçoeiras máquinas assassinas chamadas de automóvel.
Na verdade o que me incomoda com estas legislações é o fato de que não tenha escolha. A legislação é para minha segurança apenas, mas não posso dizer "não, obrigado", para ter um carro mais eficiente. Pelo mesmo motivo que não se pode fumar nem debaixo de toldos mais, ou fazer sexo sem camisinha, ou comer um bifão gorduroso e suculento, ou andar mais rápido que a mortalmente perigosa velocidade de 60 km/h. A intrusão do poder público no que costumava ser particular é incrível hoje em dia. Deve ser porque todos os outros problemas da humanidade estão resolvidos, porque não acredito que eles façam isso porque é muito fácil, e dá impressão de preocupação com o bem-estar da população.
Desse jeito, vamos todos viver para sempre, nem que sejamos presos para garantir isso! Me sinto uma criança novamente, com pais severos demais, que me obrigam a fazer o proibido de qualquer forma, mas bem escondidinho para ninguém ver.
Mas voltando ao Nano, hoje acredito que Gordon Murray
perde seu tempo; o novo Mini já existe, e vem, por incrível que pareça, da Índia.
Quem diria.
MAO