Se os chineses hoje são motivo de risadas quando o assunto é carro, não será por muito tempo. Sim, um carro com o sugestivo nome de Chana não pode ser levado totalmente a sério. Mas me parece claro que, como os coreanos e japoneses antes deles, os chineses vão evoluir. E rápido. Pouco tempo atrás os coreanos eram também motivo de piada. Hoje ninguém mais ri deles, e até a outrora poderosa GM baseia uma boa parte de seus futuros carros em desenhos da antiga Daewoo, hoje parte da Corporação.
Quando falei sobre o
Lexus LFA, já passei por este assunto. Não existe nação de verdade que não tente colocar sua verdade acima das outras. Faz parte do orgulho de um povo achar que é o melhor entre os melhores, e que o mundo seria melhor se todos agissem como eles. E mesmo neste tempo de hoje, onde o automóvel é repudiado como um vilão, ele continua sendo O Grande Símbolo de um país, e talvez o seu maior embaixador mundo afora.
O que seria da imagem da Alemanha sem os Porsches e Mercedes? Um país onde loiros de macacãozinho verde tomam cerveja e comem salsicha, e só. Mas basta andar num BMW ou num Audi para admirar a capacidade de criação, a solidez e a excelência técnica que os alemães têm. O mesmo vale para qualquer outro país: o maior embaixador de um povo são os carros que ele cria. Telefones celulares podem ajudar países como a Finlândia (Nokia), mas se existisse um Mercedes finlandês, garanto que o efeito seria mais abrangente.
O grande L.J.K. Setright (1931-2005) dizia que o que estragou o automóvel foi o navio. Segundo ele, se os fabricantes produzissem somente para o seu mercado, os carros seriam mais ajustados as necessidades de seu povo, sem compromissos com outros países. Desta forma, um carro italiano é pequeno, ágil , giro alto, marchas curtas, e com brio para negociar as estradas estreitas e em relevo de certas regiões do país, e as cidades medievais apertadas, com motoristas de temperamento extravagante. Já um carro americano, é largo, espaçoso, macio e tranqüilo, mas muito potente: de novo, um espelho de suas estradas e seus habitantes. E isto continua acontecendo hoje, neste mundo que é dito globalizado, e que procura exterminar toda e qualquer diferença. Para perceber isso, basta dirigir um Corolla (ou, de forma mais acentuada, o meu
Maxima) para notar que foi desenhado por japoneses: para a posição de dirigir ser perfeita, exige que se tenha pernas curtas, como é o tradicional biotipo daquele país...
E nós como ficamos? Não ficamos, é claro. Nosso maior item de exportação cultural segue sendo os travestis e as prostitutas. Toda nossa indústria de automóveis é filial de uma empresa estrangeira qualquer, e por mais que muitos digam que isso não importa, que globalização é assim mesmo, há uma diferença grande entre ser o dono, o detentor da tecnologia e do dinheiro, e de ser uma filial em um país distante. Toda a engenharia avançada, a pesquisa científica, tudo que realmente gera valor onde não havia nada, é feito na matriz. E o futuro da filial é atrelado aos planos da matriz, seus problemas e sucessos, e até a sua sobrevivência.
A Volvo e a Saab, outrora orgulhosas e independentes empresas suecas, que muito contribuíram em tecnologia para o avanço do automóvel, hoje enfrentam o fim iminente, fruto de anos como filiais ultramarinas de matrizes que hoje não precisam mais delas.
Não sei se temos chance de mudar isso hoje em dia, aqui no Brasil. A única chance que consigo vislumbrar não é das melhores: uma estatal. Eu tenho espasmos de horror em imaginar nossos políticos tendo mais uma fonte de corrupção e tráfico de influência, mas há vários precedentes históricos que apontam para esta solução. Um deles é que as únicas empresas brasileiras que realmente desenvolveram tecnologia industrial de sucesso, e são um orgulho para nosso povo, ou são estatais, ou começaram assim: Cia. Vale do Rio Doce, Embraer e Petrobrás. Na indústria do automóvel, há vários exemplos internacionais de sucesso, também: a China, onde toda empresa é pelo menos metade chinesa (parte esta intimamente ligada ao governo) vem a mente logo de cara, mas temos que lembrar da Renault, que sobreviveu ao pós-guerra graças a ajuda do governo francês, que por décadas controlou a empresa, que só recentemente retornou à iniciativa privada. A Alfa Romeo também tem uma longa e história ligada ao governo italiano. A VW ainda tem como um dos principais acionistas o governo da baixa saxônia (estado alemão, onde fica Wolfsburg, sede da empresa), e foi criada pelo governo nazista de Hitler.
Mas existem exemplos tristes também, como contou o Paulo Keller
semana passada. E voltando aqui ao Brasil, para cada Vale, Embraer e Petrobrás, literalmente centenas de outras estatais existiram para fazer o que elas fazem de melhor: gastar o dinheiro do povo, criar empregos inúteis, e servirem de pequenos reinos a serem conquistados na eterna luta de poder e influência em que estão engajados todos os políticos de todos os escalões. Realmente, não sei se a Carrobrás seria uma boa idéia, mas é a única que me vem a cabeça. Mas o que eu sei é que precisamos de uma indústria de automóveis realmente nacional, pois é o que todo país realmente admirável tem. O resto, é coadjuvante da história.
Enquanto isso, engenheiros brasileiros continuam trabalhando na indústria "nacional" de automóveis, lutando contra dificuldades incríveis, mas ainda assim fazendo um ótimo trabalho. Me espanta ver como o brasileiro trabalha com afinco, dedicação e competência, mesmo recebendo muito menos em troca de seu país e de seu empregador do que qualquer empregado das matrizes. E, algumas vezes, abrem-se janelas de oportunidade para que eles criem carros deles, com pouca ou nenhuma influência estrangeira. Normalmente são veículos pouco admirados pela crítica automobilística, porque são criados para uma realidade nacional bem específica. Mas em compensação, invariavelmente são um sucesso para o mercado a que se destinam, o que é a prova realmente irrefutável de um trabalho bem feito. Por isso, para tentar redimir um pouco este pecado de falta de reconhecimento, resolvi lembrar alguns deles aqui e prestar minha homenagem, tanto aos carros como aos engenheiros que os criaram. Existiram muitos deles no passado, do Opala à Brasília, do SPII ao Gol original, mas hoje vou falar apenas dos atuais.
Um carro projetado por brasileiros para os brasileiros é, ou deveria ser, um motivo de orgulho para todos nós.
1) VW FOX
Eu não gosto do Fox como carro. Ainda não andei no novo, que consertou o horrível acabamento interno, com aquele cluster, ou grupo, de instrumentos ridiculamente pequeno. O Fox é alto demais, com uma posição de dirigir alta demais. Sua suspensão teve que ficar rígida por conta da altura do carro, e todo o compromisso conforto/estabilidade ficou comprometido.
Mas foi uma grande sacada da VW. A empresa estava gastando dinheiro a rodo para lançar o Polo, que apesar de excepcional, fatalmente seria muito caro para os padrões brasileiros de mercado. Veio a ideia de fazer um carro mais barato na então nova plataforma PQ24 (do Polo). Além de mais barato, a ideia era também levantar o ponto H dos ocupantes, para maior espaço interno, em conjunto com um teto mais alto (uma carroceria hoje chamada genericamente de high roof hatchback). Além disso, uma velha ideia da planta da Anchieta, do início dos anos 80, voltou à tona: banco traseiro em trilhos, e assoalho traseiro plano.
Mas ao fim da fase de conceito do projeto, muitas dúvidas pairavam sobre a continuação do projeto. A matriz tinha sérias dúvidas sobre como ficaria este alto carro sobre a plataforma Polo, e talvez sobre a capacidade da filial brasileira.
Mas quando os alemães chegaram aqui para aprovar o conceito, tiveram uma surpresa. Ao invés do modelo de argila e de apresentações em computador, eles foram convidados a conhecer o carro de verdade! E se não bastasse isso, após olhar o carro de verdade em chapa, receberam a chave de ignição. Sim, os engenheiros e técnicos da VW Anchieta haviam feito um carro totalmente funcional, em chapa de aço. Os executivos da matriz deram uma volta com o “Tupi” (nome do projeto então), e o resto é história.
Para fazer este carro, totalmente a mão, o diretor da engenharia havia trazido um Skoda Fabia, o único PQ24 então em produção, da Europa, sem ninguém saber.
O carro teve um desenvolvimento atribulado, mas atingiu o mercado na veia: foi um grande sucesso, e criou um mercado. A GM com o Agile mostra que a VW acertou, pois a imitação é a forma mais sincera de elogio. E o carro foi vendido até na Europa, um dos mercados mais exigentes do mundo.
2) VW GOL
O Gol, sempre foi motivo de orgulho para os engenheiros da ala 17 da planta Anchieta da VW, mas o chamado “G4” realmente estava ficando ultrapassado e simplificado demais (além de alguns problemas sérios de execução). Mas baseando o seu mais recente Gol no Polo, a VW se redimiu completamente, e o novo carro agora voltou a merecer o posto de mais vendido carro do Brasil.

3) Ford Ecosport
Outro carro que acertou em cheio o seu mercado: um SUV pequeno para a classe média. É inacreditável que todos os outros fabricantes ainda deixem esse mercado exclusivamente para a Ford. Baseando o carro em seu Fiesta, a Ford conseguiu um veículo extremamente acertado para o seu público-alvo: como o Ecosport é na verdade um hatchback pequeno, apesar da aparência de caminhonete, ele funciona como um automóvel, com estabilidade, conforto, desempenho e economia de um carro, e não de caminhão pequeno. Como 99% dos usuários de SUV nunca usam sua capacidade fora de estrada, nada melhor. Ah, que diferença faz um monobloco rígido e leve, sem chassi separado. A horrivel Suzuki que a Chevrolet vendia para concorrer com o Ford é o exemplo mais claro disso.
A versão atual melhorou muito os níveis de NVH, a única séria reclamação do carro anterior. O pequeno Ford na verdade é um automóvel melhor que muitos SUV's maiores, e ainda conta com uma sensacional versão 4x4, que com o excelente Duratec 2.0 de 147 cv, é um carro realmente rápido e apaixonante. É quase um Fiesta RS 4x4, só que mais alto.
O que eu não sei é porque a Ford não derivou uma picape deste carro. Com aparência de picape grande, seria sucesso na certa.

4) Chevrolet Celta
Fruto de um revolucionário projeto da GM que incluía uma fábrica nova onde os fornecedores montam o carro, o Celta original era talvez o mais barato carro do mundo para se fabricar. O objetivo alcançado pela GMB foi o de provar a matriz que poderia fabricar um carro pequeno e barato com margem de lucro decente, algo considerado impossível pela matriz. E ainda assim, num mercado e faixa de preço que era extremamente sensível ao preço de venda. Era comum nos EUA de então a máxima de “Big cars, big profits, small car, no profits”.
Tal coisa só foi possível repensando-se tudo: processo de produção, montagem, projeto. E quebrando todo e qualquer paradigma de execução vigente na empresa que impedisse o objetivo.
O Celta acabou ficando extremamente simples, é claro, mas também por causa disso levíssimo, e portanto sempre teve um desempenho e economia interessantes mesmo com motores de um litro. Foi um imediato sucesso, que continuou em sua segunda geração.
Quando conheci o Bob Sharp, há coisa de 8 anos, fiquei surpreso em saber que ele tinha um Celta, e gostava muito do carro. Algum tempo depois, aluguei um para uma viagem de 1500 km em 1 dia (história para outro dia) e entendi. Apesar de toda aquela sensação de pobreza de acabamento, o carro é muito bom para dirigir. E os setenta e poucos cavalos chegam a espantar pela velocidade que proporcionam.
Para mim é um pouco pequeno demais; mas ainda assim é um carro que pode dar grande prazer ao dirigir, mesmo sendo barato, simples, e um pouco barulhento.

5) Chevrolet Agile
Embora a aparência do carro tenha gerado controvérsia, os engenheiros da GM conseguiram, partindo dos componentes mecânicos principais do Corsa 4200 (de 1994), um carro muito melhor que o seu fracassado substituto, o esquecível Corsa 4300 (o novo Corsa, lançado em 2002)..
Comparado ao 4300, o Agile é bem maior em espaço interno, é um carro mais alto e mais comprido, mas mesmo assim consegue ser significantemente mais leve que o Corsa. E melhor: mesmo descartando o subframe (subchassI), o Agile é tão isolado e tem o mesmo nível de ruído interno que o 4300. E a segurança passiva é totalmente moderna, podendo atingir todas os níveis previstos por legislação no futuro do carro. Sendo mais leve, e usando o mesmo grupo motopropulsor básico do 4300, com o excelente 1,4-litro flex, com potência sempre ao redor de 100 cv, o carro então acelera mais e é mais econômico que seu antecessor de 1,8 litro..
É totalmente honesto, e com muito mais personalidade que o Corsa 4300, um carro que, apesar de competente, não chama a atenção por nada. Tem um monte de gente criticando-o por usar componentes antigos, mas aqui os resultados falam por si: o Agile oferece uma real vantagem sobre o seu antecessor. E o sucesso inicial de vendas parece apontar um acerto da GM.
Mas nem tudo são flores. O curso do acelerador é longo demais, e a embreagem, levíssima, carece de um engate mais positivo e sensível. E a calibração do motor parece claramente ter um viés de economia de combustível, o motor ficando bem mais suave e alegre nas rotações médias, e o curso do pedal colabora para isso. O carro quer andar até 4000 rpm, ficando na parte mais generosa da curva de torque, e pisar até o fundo parece anti-natural. E nas versões mais completas (e pesadas), parece realmente que falta motor.
Na verdade, não é feito para andar rápido: a calibragem do motor, a posição do acelerador, a embreagem e o acionamento de cambio levíssimos certamente agradarão a imensa maioria da população, mas quem gosta de pisar um pouco mais... Uma pena, porque o carro tem um ajuste de suspensão bem melhor que o do Fox (outro carro de ponto H e CG altos) por exemplo. Uma versão de 1,8 litro e com novas calibragens dos comandos e motor torná-lo-ia um carro decente. Como está, minha esposa ia adorar, mas eu estou passando.

Independentemente ao que nós achemos destes carros, é inegável que são um sucesso de vendas, e portanto o objetivo dos brasileiros que os bolaram e executaram foi atendido. Prova que capacidade existe. O que falta é todo este dinheiro ganho por brasileiros reverta em algo para os brasileiros, e não em lucros para uma matriz em um país distante...Pode parecer panfletário e antiquado, mas é no que eu acredito.
Mas sei que, como um povo, carecemos de um plano comum. A maioria dos brasileiros prefere acreditar que resolvendo o seu problema (leia-se arrumando a famosa “boquinha”), que se lasque o resto das pessoas, o país, e a hora do Brasil. Deste jeito, nunca sairemos desta triste situação, e como disse
Dostoievski, seremos para sempre relegados a reles material etnográfico.
Enquanto isso, o plano dos chineses vai muito bem, obrigado.
MAO