
Não é este caso específico que irei analisar, mas um modelo muito maior no qual ele se encaixa, e que quase nunca é observado pelo internauta e pelo entusiasta. Estarei falando das questões da propriedade intelectual, de algumas das várias facetas que ela apresenta, das distorções que nascem a partir dela, e como ela se relaciona com o mundo automotivo.
Falarei bastante sobre software, não só porque lá estas questões estão bem destacadas, servindo de modelo para entendermos algumas transformações que estão acontecendo na nossa relação com o automóvel, mas também porque surgem problemas da própria incorporação acelerada de software nos veículos.
No passado, controlava o mundo quem controlava a produção, enquanto hoje controla o mundo quem controla o saber.

Conhecimento e experiência não são atributos reprodutíveis com facilidade, mas produtos finais acabados são.
Produtos de cunho intelectual, tão valiosos, precisam de mecanismos de proteção por sua característica imaterial. Enquanto bens materiais oferecem uma dificuldade natural de serem produzidos, os produtos puramente intelectuais demandam grandes esforços e investimentos para se obter a matriz original, enquanto suas cópias são reproduzidas de forma fácil e barata.
É aqui que surge a figura do pirata, que nada investiu na produção da obra original, mas sai lucrando com as cópias ilegais que produz.
Há diversos mecanismos de proteção intelectual, cada um focando um tipo diferente de fruto da inteligência humana. Há mecanismos para marcas, patentes, direitos de propriedade de autoria, leis de software etc.
Estes mecanismos existem como forma de estimular o empreendedor no seu trabalho de criação intelectual.
Em países diferentes há entendimentos diferentes de cada um destes mecanismos.
Enquanto nos Estados Unidos, por exemplo, é reconhecido o direito de patente sobre software, aqui existe uma legislação de software específica, já que nossa visão é que software não é patenteável.
Enquanto lá as empresas possam entrar em enrascadas judiciais por violação de direitos de patentes, até mesmo pela evolução natural de seus produtos, a legislação brasileira não só permite, como estimula a similaridade funcional dos softwares.
Esta diferença causa a primeira distorção perceptível.
Enquanto alguns produtores de obras intelectuais podem se sentir mais protegidos em países com legislação mais rígida, seus concorrentes podem se sentir mais estimulados a desenvolver e vender seus produtos em países com legislação mais branda.
Não existe um consenso de qual sistema é melhor, embora saiba-se que a competição é benéfica para a evolução dos produtos, competição que é dificultada pelas legislações mais rígidas.

Até bem pouco tempo este fato era negligenciado, imaginado como mera fase do processo de realização do produto acabado. Mas essa percepção tem mudado.
Um automóvel também carrega um complexo conjunto de marcas, desde a marca do fabricante principal e modelo , bem como a marca de vários fornecedores de peças originais.
Na última década, quem é da área de software tem assistido a evolução de um novo modelo de negócios. Este novo modelo diz que não se ganha dinheiro com plataformas, mas se ganha muito dinheiro com o que existe e se faz em cima da plataforma.
O exemplo clássico desta mudança é visível no Google, do qual todos usufruímos sem pagar um tostão por recursos cada vez maiores, melhores, mais sofisticados e ainda assim fáceis de usar, e que por isso mesmo vem desafiando a outrora toda-poderosa Microsoft (uma produtora de plataformas de software por excelência). O Google não ganha dinheiro com o uso aberto de mecanismos de busca, com poderosas aplicações online ou softwares de mapas e imagens de satélite, mas ganha pela atração que essas aplicações causam nos usuários da internet inteira ao virem ali para usá-los.
Fabricantes de hardware já perceberam essa estratégia. As impressoras jato de tinta são bem baratas. Tão baratas que, muitas vezes, duas recargas de tinta custam mais que a própria impressora. Os fabricantes de impressoras ganham dinheiro com a tinta da impressora e preferem vender a impressora a preço de custo ou até com prejuízo, projetando os lucros na recarga da máquina.
Um automóvel é uma plataforma por excelência. Não é um produto cujo custo termina com sua aquisição, como uma geladeira. Ele precisa de vários componentes de reposição de curto e médio prazo, além de peças de reparação. Filtros, limpadores de para-brisa e para-choques são exemplos bem notáveis entre um enorme conjunto de peças substituíveis ao longo da vida do automóvel.
Os fabricantes sempre viveram das vendas de carros novos. Quem sempre viveu dos carros usados foram os fabricantes de autopeças, tanto originais como paralelos, e oficinas particulares não ligadas à rede de concessionárias.
Com as transformações do mercado, esta percepção tem mudado. Num mercado cada vez mais competitivo, é atrativo para o fabricante beliscar parte do lucro gerado no pós-venda de cada automóvel.
Explorar esta forma de negócio seria o modo de lucrar sobre a “plataforma” automóvel.
Mas como obrigar um fabricante de autopeças, seja ele original ou paralelo, a pagar uma fatia de cada peça vendida? A resposta está no direito de autoria do projeto.
Sendo o dono dos direitos autorais sobre os desenhos de cada peça, o fabricante pode obrigar os fabricantes de autopeças a pagarem royalties por cada peça vendida no mercado de reposição em retribuição pelo uso dos desenhos e especificações da peça para sua produção. Fabricantes não-licenciados, que se recusem a pagar pelos royalties, ou simplesmente piratas, podem ser tirados do mercado por via judicial.
Porém a cobrança de royalties inflacionará o mercado de peças e será o consumidor quem irá pagar a conta no final.
Em um caso extremo, fechar o licenciamento apenas para fabricantes originais e obrigar a venda e a instalação de peças apenas através das oficinas de concessionárias é uma forma de monopólio dentro de um mercado aberto que poderá ser exercido pelos fabricantes futuramente.
Neste modelo o proprietário do veículo não terá escapatória a não ser pagar o que pedirem por peças e serviços dentro da concessionária. É a atitude mais aberta ou mais fechada da concorrência que dirá quanto este modelo será ou não viável no futuro.
Embora este modelo de exploração comercial esteja para provar sua viabilidade econômica e sua aceitação perante os consumidores, todos os atributos jurídicos já estão estabelecidos para que seja realizado.
O problema jurídico do blog “Irmão do Décio” é de outra natureza, ligado à marca.
É muito provável que as pessoas comprem de olhos fechados carros da GM, da Fiat ou da Honda, porém será que o fariam com a mesma naturalidade com um carro da SsangYong? Há dez anos essa era a situação da Hyundai no Brasil, mas hoje ela já inspira muito mais confiança no consumidor.
Daí se vê que o consumidor compra a marca junto com o carro. Ele vê nela um valor intangível que não enxerga nas demais.
Uma marca bem posicionada no mercado vale muito. Ela encurta o processo de decisão do consumidor.
Construir uma marca de renome leva muito tempo, mas um fato que manche a marca demora a ser desfeita.
Portanto, defender com unhas e dentes sua marca, mantendo-a sempre limpa e com boa aceitação e referência, é uma necessidade para qualquer empresa.
A distorção aparece na interpretação que cada um faz da sua marca e do que o meio faz com ela.
Algumas empresas talvez interpretem o que foi feito no blog “Irmão do Décio” como algo que renovasse a imagem de marcas antigas delas e em alguns casos, talvez o autor das reestilizações fosse até premiado. Entretanto, este não foi o parecer do setor jurídico da VW, que viu nelas uma afronta às suas marcas, e agiu com o rigor que achou necessário. Mas a ação da VW em si não foi bem interpretada pela sociedade.
Outros casos como este já aconteceram em diversos setores e certamente voltarão a acontecer.
A exacerbação dos modelos de proteção aos bens intelectuais levará à estagnação ao invés de promover o avanço tão desejado.