
Ontem eu estava assistindo um flash jornalístico na TV e vi uma reportagem onde o pessoal da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo pedia para que as doações para instituições de caridade e assistência social feitas através do programa da Nota Fiscal Paulista obedecessem as regras originais do programa.
É que, segundo o representante da Secretaria da Fazenda, as pessoas vinham indicando o CNPJ das instituições de caridade no lugar do seu próprio CPF para creditá-las diretamente e isto "geraria problemas para as instituições, pois falsearia o valor total do que estas instituições consomem...".
Na hora em que isso foi textualmente declarado, um alarme soou na minha cabeça.
Prejudicar por quê? Falsear total acumulado?
Pela base de cálculo do programa, quanto mais se consome, mais se tem a receber. Como isso pode prejudicar?
Algo não bate nessa conversa.
Desde o começo do projeto, as autoridades do fisco paulista vêm tranqulizando a população, informando que não haverá rastreamento de gastos por parte do cidadão através do registro do seu CPF junto a cada nota emitida.
Se isso fosse verdade, por que um ato nobre das pessoas poderia causar problemas para estas intituições?
Estas afirmações sempre soaram falsas para mim e para muitos, e se havia alguma dúvida de que aqueles dados servem para rastreamento, mesmo que seja estatístico, a reportagem acabou por dirimir qualquer dúvida.
É bom que se diga que falácias sempre foram largamente usadas pelos governantes para que não haja repúdio popular às medidas regulatórias do Estado sobre o cidadão.
Antes e durante a implantação da inspeção veicular, o prefeito Gilberto Kassab cansou de afirmar que, diferentemente do Rio de Janeiro, a inspeção em São Paulo seria gratuita para não onerar ainda mais o cidadão paulista.
E vejam no que deu...
Vou mostrar como funciona a Nota Fiscal Paulista e, para aqueles leitores que não são de São Paulo, vou explicar a história dela desde o começo. Além de jogar luz onde intencionalmente há trevas para os leitores paulistas, é bom porque este pode ser exemplo para outras "benevolências" de outros fiscos estaduais que se apoiem no mesmo modelo.
Primeiro, vamos entender um pouco do que é o ICMS.
O ICMS, ou Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, é um imposto de responsbilidade estadual, e seu fato gerador é o consumo. É muitas vezes acompanhado do IPI, Imposto sobre Produtos Industrializados, de responsabilidade federal.
O ICMS é a principal fonte de renda para os governos estaduais.
Todo produto passa por uma cadeia de produção, que começa pela extração da matéria-prima da natureza, até o produto final ser adquirido pelo consumidor final.
Esta cadeia pode ser longa, cheia de empresas especializadas nas diferentes transformações do material e na sua distribuição e comercialização.
Conforme os diferentes sub-pordutos vão sendo repassados entre empresas, notas fiscais de venda vão sendo emitidas, e o ICMS e o IPI vão sendo recolhidos conforme este material avança na cadeia.
Para que haja uma certa justiça tributária, toda pessoa jurídica que compra uma mercadoria que não seja para consumo próprio terá um crédito equivalente ao que pagou nas notas de compra, e este crédito será usado para abater o valor acumulado dos mesmos impostos que incidiram nas suas vendas. Esta fórmula de débito e crédito é uma forma da empresa pagar estes impostos de uma forma proporcional ao seu lucro bruto (diferença entre o que recebeu pela mecadoria vendida e o que gastou com as mercadorias compradas ligadas às mercadorias vendidas).
Na maioria dos casos, o valor do ICMS é de 18% e do IPI, de 5%.
Mas é aqui que começam as distorções.
Enquanto o IPI é calculado "por fora", o ICMS é calculado "por dentro".
Numa mercadoria de R$ 100,00, o IPI calculado é de R$ 5,00 e o ICMS é de R$ 18,00.
Porém, como o ICMS é cobrado por dentro, os R$ 18,00 de débito estão embutidos no preço cheio da mercadoria, que é de R$ 100,00.
Assim, uma mercadoria com valor R$ 100,00 gera uma nota no valor de R$ 105,00 pela adição do valor do IPI, porém a empresa vendedora terá um líquido bruto de R$ 82,00 após acumular o débito de R$ 18,00 para pagamento do ICMS. O buraco só não fica tão grande para a empresa porque ela abate boa parte dessa dívida através dos valores de crédito que ela obteve através das suas notas de compra.
E ainda sobre a nota fiscal de venda, a empresa ainda tem de pagar Cofins, Contribuição Social, IRPJ e PIS, sendo que ela se credita apenas do Cofins a partir de suas notas de compra.
O sistema de débito e crédito suaviza esta pesada carga tributária para cada empresa, mas a bomba explode mesmo é na mão do consumidor final, e da maneira mais perversa.
Apesar da Constituição Brasileira de 1988 proibir imposto calculado sobre imposto, quando o IPI é calculado sobre um preço cheio, do qual já faz parte o ICMS, então arrecada-se IPI sobre ICMS.
Distorção maior ainda ocorre na venda para o consumidor final.
A legislação do ICMS considera que o consumidor final não tem direito a qualquer crédito de imposto. Portanto, ela manda que o IPI seja adicionado ao preço da mercadoria, formando um novo valor da base de cálculo para o ICMS.
Cúmulo do absurdo tributário deste país, se é cobrado ICMS sobre o IPI, sendo que o IPI já é calculado sobre um valor que já contém o ICMS em sua base de cálculo, logo há ICMS sobre o mesmo ICMS da própria operação!
Com as percentagens de 18% e 5% para ICMS e IPI respectivamente, para cada R$ 100,00 em mercadorias compradas pelo consumidor, ele paga R$ 105, 00 por uma mercadoria de preço bruto descontado apenas estes dois impostos (daí ainda faltaria descontar PIS, Cofins, Contribuição Social e IRPJ só para a operação direta de faturamento) de R$ 81,10.
Só nesta base de cálculo preliminar com dois impostos, já temos uma carga tributária de quase 30% nesta operação.
As autoridades tributárias brasileiras afirmam falaciosamente que estes impostos sobre consumo são a forma tributária mais justa socialmente, já que pessoas que ganham mais consomem mais, gerando mais impostos.
Mentira. Estes impostos são a forma mais anti-robinhoodiana de impostos, tirando dos pobres para dar aos ricos.
Quem ganha R$ 1.000,00 por mês muito provavelmente irá gastar todo este valor ao longo desse tempo, sem conseguir poupar e tendo toda carga tributária incidindo sobre tudo o que ganha.
Quem ganha R$ 10.000,00 por mês pode gastar R$ 5.000,00 e irá arrecadar bruto 5 vezes mais em valores absolutos o que o assalariado de R$ 1.000,00 arrecada, dando base para a afirmação dos técnicos do fisco. O que eles não contam é que os outros R$ 5.000,00 irão para uma poupança ou para algum fundo de aplicação.
Fundos de aplicação tem lucratividade baseada em parte pelo pagamento de juros de títulos da dívida pública, que são pagos a partir dos impostos arrecadados. O rendimento da poupança também é pago pelos cofres públicos.
Quanto mais tempo este dinheiro ficar investido, havendo pagamento de juros sobre juros, mais o investidor recebe dos cofres públicos.
Assim, quanto mais alguém ganha, paga menos imposto sobre aquilo que ganha e ainda recebe de volta o que pagou através daquilo que poupou.
Sir Robin de Loksley deve estar se revirando no túmulo a esta hora.
Vários produtos, como cigarros, bebidas, sorvetes e remédios são tributados no ICMS sob um regime especial, chamado de "substituição tributária".
Neste regime, o governo cobra antecipadamente o ICMS de uma determinada parte da cadeia de produção do produto que de outra forma seria recebido progressivamente.
A justificativa é que é muito mais fácil cobrar o ICMS de substituição tributária na saída da fábrica de sorvete do que receber o ICMS normal na venda de cada unidade por milhares de sorveteiros.
E uma vez cobrado o IMCS de substituição tributária, não haverá nova incidência do imposto sobre aquele produto especificamente, e o valor já cobrado não gerará mais créditos, virando um custo dentro da cadeia daquele ponto em diante.
A chamada "Nota Fiscal Paulista" surgiu através da lei Lei nº 12.685 de 28.08.2007, assinada pelo governador de São Paulo, José Serra em solenidade aberta.
A idéia parece apetitosa para o consumidor e contribuinte, já que ela promete devolver para o consumidor até 30% do que foi arrecadado em ICMS pela empresa, e ainda participação em sorteio de prêmios, apenas informando o número do CPF na hora da emissão. Porém esta é mais uma das grandes falácias do nosso ilustre govenador.
Aos ouvidos desatentos, estes 30% sobre a arrecadação feita pela empresa que compramos nos dá a impressão que se refere a todo ICMS arrecadado e que consta na nota fiscal de compra.
Ora, se um produto de R$ 100,00 é comprado e pagamos na nota R$ 18,00 de ICMS, 30% disso representa R$ 5,40.
Se em todas as compras que fizermos houver uma devolução de 5,4% do que pagamos, é algo que faz muita gente pensar que compensa o esforço de fornecer o nosso CPF.
Porém as contas não são estas, e temos que aprender a ler nas entrelinhas.
No artigo 3° da Resolução SF – 60, de 31/10/2007, que regulariza a base de cálculo da devolução para o contribuinte, diz o seguinte:
Artigo 3º – O valor do crédito a ser atribuído relativamente a cada aquisição de mercadoria, bem ou serviço de transporte interestadual e intermunicipal de fornecedor localizado no Estado de São Paulo será determinado conforme a seguinte fórmula de cálculo:
CA (k, m, f) = 30% x VICMSR (f, m) x VA (k, m, f) / VTS (f, m), onde:
I – VICMSR (f, m) corresponde ao valor do ICMS recolhido pelo estabelecimento fornecedor “f” relativamente ao mês de referência “m”, para fins do cálculo de que trata esta resolução;
II – VA (k, m, f) corresponde ao valor da aquisição efetuada pelo consumidor “k”, de mercadorias, bens ou serviços, do estabelecimento fornecedor “f”, no mês de referência “m”, para fins do cálculo de que trata esta resolução;
III – VTS (f, m) corresponde ao valor total das operações de saída e prestações realizadas pelo estabelecimento fornecedor “f” no mês de referência “m”, para fins do cálculo de que trata esta resolução.
Parágrafo único – O cálculo será efetuado com 4 (quatro) casas decimais e o valor do crédito será atribuído com 2 (duas) casas decimais, desprezando as frações de centavo.
Não se assuste com os termos, vou simplificar e explicar.
Vou chamar de "A" o termo "", "B" o termo "VICMSR (f, m)", "C" o termo "VA (k, m, f)" e "D" o termo "VTS (f, m)".
Então, esta equação está na forma:
A = 30% * B * C / D, onde:
A é o total a que o contribuinte tem a receber referente às compras no mês naquele fornecedor;
B é o total pago de ICMS pelo fornecedor naquele mês;
C é o total de compras que o consumidor efetuou naquele fornecedor naquele mês, visto através de seu numero de CPF cadastrado nas notas;
D é o total do faturamento declarado pelo fornecedor naquele mês.
A fórmula diz precisamente que o contribuinte receberá de suas compras 30% da proporção das suas compras registradas neste fornecedor sobre o faturamento total dele aplicados sobre o total que este fornecedor pagou de ICMS naquele mês.
O truque sutil desta fórmula está no termo B.
Num produto de R$ 100,00 com ICMS com aliquota de 18%, o contribuinte não irá receber 30% de R$ 18,00.
O que o fornecedor pagou de ICMS para o fisco não foi R$ 18,00, mas uma fração pequena disso.
Digamos que o fornecedor tenha comprado este produto a R$ 90,00 também sob alíquota de 18%.
Ele teria se creditado em R$ 16,20, tendo de pagar apenas R$ 1,80.
Neste caso, o crédito do cliente seria de R$ 0,54 (30% de R$ 1,80), em vez dos R$ 5,40 (30% de R$ 18,00) imaginados.
Como a maior parte dos produtos tem uma cadeia de fornecimento relativamente longa, o último fornecedor só oferecerá um valor muito pequeno de base para cálculo de devolução, muito menor que os 30% sobre o total do ICMS arrecadado sobre ele.
Mas o problema não para por aí.
Como o valor a ser recebido depende da arrecadação paga pelas empresas, não há como o contribuinte saber previamente o valor creditado. Portanto, ele não sabe se o valor creditado está ou não correto. Há muitas reclamações contra o programa por causa desta questão.
Se não há como prever o valor e não há como auditar os números, resta ao contribuinte simplesmente aceitar os números oferecidos.
Boa parte das compras em supermercados em farmácias não geram créditos da Nota Fiscal Paulista porque a maioria dos produtos dali já recolheram ICMS em regime de substituição tributária antes de serm adquiridos pela loja.
Como a loja não pagou ICMS por eles, o total arrecadado com estes fornecedores da ponta da linha de fornecimento é pequeno, gerando pouco a ser distribuído entre os milhares de clientes.
Quando a Secretaria da Receita Estadual foi implantar a Nota Fiscal Paulista nos revendedores de combustíveis, estes tentaram a todo custo evitar a medida, já que combustíveis pagam integralmente ICMS por substituição tributária, não havendo crédito ao consumidor. A Secretaria se mostrou irredutível, alegando que, embora o consumidor não receba crédito algum por isso, ele se habilita aos sorteios de prêmios.
Também não pense o leitor paulista que conseguirá ver cair algum valor graúdo no crédito da Nota Fiscal Paulista porque comprou um carro de R$ 60.000,00. Carros e quase tudo o mais que as revendas vendem está sob regime de substituição tributária. Talvez no máximo veja uns parcos centavos vindo da cobrança do cafezinho...
Em 2008, quando a Secretaria da Fazenda percebeu que apenas 1 nota em cada 10 que entravam tinha cadastro de CPF, indicando a baixa adesão ao programa, a base de cálculo foi refeita.
Pela base original, como havia baixa adesão, a maior parte do valor de créditos retornava ao fisco por falta de indicações de CPF.
Para resolver o problema, uma nova base de cálculo foi feita, desta vez rateando o total dos 30% de crédito para aqueles que tivessem registrado seus CPFs. Isto tornava o programa mais atrativo numa época de baixa adesão, oferecendo valores mais palpáveis. Porém, para evitar dar valores altos no caso de haver pouquíssimos contribuintes com CPFs registrados no mês para determinado fornecedor, um teto de acúmulo de 7,5% sobre o total das compras do consumidor foi estabelecido.
No final de 2009, o programa computava 1,5 bilhão de reais devolvidos, na forma de créditos individuais e prêmios ao longo de mais de 2 anos. Números que digníssimo Governador José Serra comemorou.
É um números absoluto significativo, com certeza, mas que precisa ser colocado na devida proporção para ser entendido como merece.
Se esse dinheiro fosse distribuído só na cidade de São Paulo com 10 milhòes de habitantes ao longo de 24 meses, cada paulistano receberia míseros R$ 6,25 por mês. Evidentemente cada cidadão do Estado rende muito mais que isto em ICMS ao longo do mês.
Não se iluda com estes artifícios de números absolutos gigantescos, caro leitor. O Governo do Estado de São Paulo não destinou um centavo a mais para o programa. Basta a adesão ao programa crescer e quaisquer valores individuais hoje interessantes deixarão de existir em muito pouco tempo.
O Governo do Estado está dando migalhas em troca de fiscalização gratuita e captação de informações inestimáveis sobre consumo pessoal da população. E enquanto isso tem muita gente até bem educada participando, colaborando, fiscalizando, doutrinando e aplaudindo de boa fé.
Não bastasse a importância dessas informações para o fisco, elas também seriam de elevado interesse para o comércio, à indústria e até mesmo ao crime organizado. Um perfil de consumo individual da população é informação que vale muito dinheiro no mercado negro de bancos de dados.
Legal ou ilegalmente, mais cedo ou mais tarde, essas informações fatalmente vazarão, em detrimento dos direitos do contribuinte, que os deu de mão beijada.
A notícia de ontem, descaradamente mostrando que há rastreamento de dados na Nota Fiscal Paulista, foi a gota d'água pra mim.
E agora, caro leitor? Vai CPF na nota?