
Os entusiastas mais afoitos podem pensar que estou falando do Thrust SSC, o primeiro e único veículo terrestre a quebrar a barreira do som, atingindo a velocidade de 1.228 km/h em 15 de outubro de 1997, com o piloto Andy Green da RAF no comando.
Esta é uma história muito interessante pra ser contada aqui no blog, mas não desta vez. Números grandiosos enchem os olhos e facilitam contar a história.Mas o recorde que quero comentar é bem mais humilde, e nem por isso destituído de valor.
No dia 26 de agosto deste ano, o British Steam Car quebrou o recorde de velocidade para carros a vapor, ao atingir a média de 231,093 km/h, pilotado por Charles Burnet III.
No dia seguinte, marcas ainda melhores foram obtidas, mas ainda precisam de homologação à FIA para serem reconhecidas.
O recorde anterior pertencia a um Stanley Steamer, que, pilotado por Fred Marriott, atingiu 204,38 km/h em 1906. Era o recorde automotivo reconhecido pela FIA mais antigo ainda vigente, com 103 anos da marca.

Vapor? Isso soa estranho num carro. E soa antiquado também.
Quando ouvimos falar em vapor, logo nos vem à mente velhas locomotivas e navios como o Titanic. Estes veículos utilizavam versões aprimoradas da máquina a vapor inventada por James Watt. Esta realmente é uma tecnologia obsoleta.

No entanto, o uso do vapor é, e ainda será por muitos anos, uma aplicação necessária, graças à turbina a vapor.
A turbina a vapor nada mais é que um melhoramento dos velhos moinhos de vento (turbinas axiais, com rotores em forma de ventilador) ou das rodas d’água (turbinas radiais).
A turbina moderna, formando conjunto com sistemas auxiliares de regeneração e recuperação de calor, é, tanto na versão a gás como na versão a vapor, a máquina térmica que oferece os melhores níveis de rendimento na transformação de energia calorífica em energia mecânica útil.
Grandes turbinas a vapor, de vários megawatts de potência, transformam a energia do vapor em energia elétrica em usinas termoelétricas, termonucleares e geotérmicas.
Turbinas a vapor também são usadas como sistema de propulsão de grandes navios, enquanto turbinas a gás dominam o setor aeronáutico e movem grandes locomotivas.

Para efeitos termodinâmicos, um motor turbo é uma turbina a gás que utiliza um motor a pistão como câmara de combustão, e cuja saída de potência mecânica ocorre pelo motor.
Um fenômeno bastante conhecido dos motores turbo é o atraso entre o comando de aumento de potência e a resposta propiciada pelo motor. Este fenômeno é conhecido como turbo lag.
Este atraso não é apenas uma questão do motor turbo, mas uma característica geral das turbinas. Ele surge da inércia do rotor para acelerar, mas também da característica das turbinas de terem um rendimento ótimo numa determinada rotação e sob determinada carga, perdendo significativamente rendimento quando se afasta desse ponto de operação.
Quando uma turbina recebe um comando de aceleração, partindo de uma rotação baixa, o rendimento oferecido também é baixo, propiciando uma aceleração pequena. Conforme a turbina vai ganhando rotação, seu rendimento melhora e ela acelera mais rápido.
Em grandes turbinas percebe-se que a máquina acelera vagarosamente por um bom tempo, e a certo instante ela eleva sua rotação abruptamente. É o que se observa na partida de uma turbina de um grande avião de passageiros, assim como em um motor turbo (popularmente chamada de “pegada” do turbo).
Para compreendermos alguns detalhes importantes a respeito do carro a vapor e seu recorde, uma análise rápida de uma turbina automotiva. No caso, a turbina do Chrysler Turbine.


O diagrama a seguir representa esquematicamente o funcionamento desta turbina.

Esta turbina é dividida em duas partes.
Na primeira parte, temos uma turbina a gás. É interessante notar que os 4 tempos (admissão, compressão, ignição e expansão, escape) que os motores de ciclo Otto e Diesel realizam por cursos de pistão, na turbina a gás são realizados de forma contínua ao longo do percurso do ar através da turbina.
Isto torna a turbina a gás uma máquina térmica de fluxo constante (em contra posição aos motores a pistão, que tem fluxo pulsativo). Esta característica, quando bem aproveitada, aumenta o rendimento térmico da turbina.
Turbinas a gás operam segundo o ciclo Brayton, que é um ciclo de máquina de combustão interna.
Na segunda parte, temos uma turbina impulsionada pelo fluxo de saída da turbina a gás. A energia do fluxo de saída, baseada em pressão (energia potencial) e velocidade (energia cinética) é transformada em energia mecânica útil durante a passagem dos gases pelas palhetas da turbina. Podemos entendê-la como uma versão aprimorada dos antigos moinhos de vento.
Esta turbina é capaz de produzir potência significativa (120 hp no Chrysler Turbine), porém através de alta rotação e torque muito baixo. Para que esta potência possa ser aproveitada pela transmissão, é necessário um redutor mecânico para a árvore de saída deste motor.
Reparem que não há qualquer acoplamento ou engrenamento mecânico entre a árvore da turbina a gás e a árvore da turbina impulsionada, permitindo que a turbina a gás permaneça funcionando mesmo com o travamento da segunda turbina ou mesmo qualquer sincronismo entre elas.
Um detalhe interessante sobre o Chrysler Turbine é que o carro possuía um câmbio automático convencional, porém a árvore de saída do motor era acoplada diretamente à entrada do câmbio, sem conversor de torque. A independência de funcionamento da turbina a gás com a segunda turbina dispensava este componente.
Esta segunda turbina opera segundo o ciclo Rankine, para máquinas de combustão externa. É o mesmo ciclo das turbinas a vapor.
Então, muito do que aprendemos com a turbina do Chrysler Turbine podemos aproveitar para entender a turbina do British Steam Car.
Reparem nos discos rotativos marcados com o número 8 no diagrama. Estes discos são chamados de regeneradores.
No ciclo Brayton, o funcionamento da máquina depende da adição de calor à massa de ar comprimida na câmara de combustão. A origem deste calor não é importante.
Os regeneradores são trocadores de calor, que captam o calor nos gases quentes do escapamento e que seria perdido para o ambiente, e o reconduz para a câmara de combustão. O uso de regeneradores melhora o rendimento térmico das turbinas a gás em até 10% absolutos.
Em grande parte da literatura, regenerador e recuperador são usados como sinônimos, enquanto em outra, o regenerador é um dispositivo que reaproveita unicamente calor, enquanto o recuperador é um sistema que reaproveita o fluido térmico dotado ainda de muito calor.
De formas diferentes, ambos servem para retornar calor que a turbina perderia para o ambiente para reaproveitamento, aumentando o rendimento da máquina.
Como a turbina a vapor opera apenas sobre a parcela de pressão do vapor, qualquer quantidade de calor fornecida à caldeira para que a água entre em ebulição será um calor que a turbina não conseguirá reaproveitar.
Então, quanto menos calor for necessário para colocar a água líquida da caldeira em ebulição, maior o rendimento térmico do sistema.
Para estas turbinas existem recuperadores que retiram parte do calor do vapor de saída da turbina para que ele condense. A água condensada em temperatura próxima à de ebulição é bombeada de volta para a caldeira. Esta água recuperada exigirá uma quantidade mínima de calor para voltar ao estado de vapor, aumentando assim o rendimento.
Já os regeneradores existem para aquecer a água que é introduzida no sistema para repor as perdas que ocorrem de vapor. Os regeneradores podem ser instalados em qualquer ponto da máquina onde se perde calor para o ambiente, como a superfície externa da turbina. Porém o regenerador mais importante é aquele que é usado pelo recuperador para transformar o vapor saturado que sai da turbina em água aquecida.
Este é um dos segredos do alto rendimento das turbinas. Elas perdem quase tanto calor para o ambiente quanto os motores a pistão, mas seu modo de funcionamento contínuo permite que o calor perdido seja reintroduzido em algum ponto do ciclo, onde pode ser aproveitado.
A partir de agora podemos começar a esmiuçar o Brittish Steam Car.
Na página de especificações do carro, no site oficial da equipe há vários números interessantes deste carro. Alguns bem contrastantes entre si.
O primeiro par de informações que chama a atenção é a seguinte:
Horsepower 268 kw 360 hp
Burners 3 megawatts of heat
Isto significa que a turbina, na condição de potência máxima, tem apenas 8,9 % de rendimento. É um rendimento muito baixo para uma turbina a vapor.
Outro conjunto de dados acrescenta novas informações:
Boilers 12 Over 3 km of tubing
Superheated Steam Flow rate 40 litres per minute
Temperature 400 °C
Pressure 4000kN/m² 40 bar
Water capacity 140 litres distilled water 1,000 litres (1 ton) of water used every 25 minutes Gas capacity 60 litres
Os boilers são os aquecedores de água para o sistema. Neles queima-se o gás combustível e o calor é transferido para a água dentro do conjunto de tubos.
O diagrama a seguir ilustra a construção de um destes boilers.

Por fim, alguns dados complementares e o raio-x do carro:
Engine Two stage turbine 13,000 rpm max turbine revs
Transmission Rear wheel drive

Aqui começam as surpresas. A turbina ocupa a parte final do carro, num espaço reduzido. Ela não possui qualquer sistema de regeneração ou de recuperação.

Pelo que aprendemos sobre turbinas, parece um contra-senso. Se a turbina usasse um recuperador, dobrando o rendimento térmico, o número de boilers poderia ser a metade para a mesma potência. E a mesma potência com peso menor implicaria em uma aceleração e em uma velocidade maiores.
Por outro lado, os sistemas de recuperação e de regeneração de vapor são volumosos e pesados.
Durante o dimensionamento do carro, os projetistas certamente avaliaram estes detalhes, e preferiram um maior números de boilers, um maior consumo de combustível e uma quantidade maior de água do que tentar ganhar peso através da melhoria de rendimento da turbina.
Este é o tipo de escolha que todo engenheiro tem de fazer quando desenvolve qualquer sistema de alto desempenho.
Para homologação de recordes, a FIA exige que o carro percorra um trajeto de ida e outro de volta com um intervalo entre estas duas tentativas não maior que 1 hora. O trecho medido é de aproximadamente 1,6 km (1 milha), e a velocidade homologada é a média entre os dois percursos.
Para que o British Steam Car pudesse alcançar a velocidade ideal para a tentativa, ele precisava acelerar por 4 km e frear em outros 4 km, o que exigia um espaço de quase 10 km para cada tentativa.
A tentativa foi feita e o novo recorde está de pé.



Para o mundo do automóvel, este recorde representa muito pouco, além da simples curiosidade.
Porém, para o mundo em geral, significa muito. Não é todo dia que sistemas de vapor de pequeno porte são colocados em uma aplicação embarcada, especialmente numa de alto desempenho.
As normas de segurança para caldeiras e boilers são muito rígidas com a segurança, porque estes vasos de pressão explodem violentamente. Em contrapartida, num carro feito para quebrar um recorde, quanto menor o peso, maior o desempenho, exigindo que o dimensionamento destes componentes seja feito sobre o fio da navalha entre a segurança e o desempenho.
Se este recorde conseguir estimular novas equipes a tentar quebrá-lo, novas configurações serão tentadas, e uma evolução neste tipo de tecnologia pode ocorrer.
Lembram que falei de Andy Green, atual recordista de velocidade absoluta no solo, pilotando o Thrust SSC?
Pois aqui está ele, conversando com Don Wales, piloto de testes do British Steam Car, em 25 de julho, durante os testes de avaliação do carro.

Afinal, a diferença entre os dois recordes nem é tão grande...
AAD
Links interessantes:
http://www.steamcar.co.uk/index.html
http://www.steamcar.net/index.html
Obs: Este artigo partiu de uma sugestão do nosso leitor Der Wolf. Peço desculpas a ele pelo atraso. Só postar o que os outros já postaram não tem graça, e pesquisar e escrever aspectos interessantes toma um bom tempo. Obrigado, e continuem participando e colaborando.