
O post que o Bob Sharp colocou me lembrou de uma situação que já vi se repetir algumas vezes. Vou contar uma delas.
Há muito tempo que participo de grupos pela internet focados em carros, e, evidentemente vou conhecendo muita gente nesse meio.
Certa vez, conheci num fórum um rapaz novo, carteira nova, e que iria comprar seu primeiro carro, via “paitrocínio”.
E que carro ele escolheu, zero-quilômetro? Uma picape, claro. Afinal, picapes são mais leves que os hatchs originais, ótimas para acelerar mais rápido. E ainda vem desprovidas do incômodo “banco da sogra”, ótimo para as saídas de baladas. Enfim, é o carro juvenil perfeito.
Com as economias que foi juntando, não demorou muito pra mexer no carro.
Primeiro, o inevitável rebaixamento, cortando elos das molas no maçarico. Depois, rodões e pneus de perfil baixo.
Mais um tempo, e o desempenho do carro deixava a desejar. Decidiu instalar um turbo.
Seguiu a recomendação dos colegas mais experientes e do preparador, e colocou um turbo pequeno, para uma pressão baixa. Era a forma de não estourar o motor. Foi divertido por um tempo, mas depois perdeu a graça.
Desmontou o kit, vendeu, e já comprou um kit com turbo grande.
Era divertido lixar os pneus de sinal em sinal, mas, depois de pouco tempo, o carro parecia fraco de novo.
Mesmo contra a recomendação do preparador, pegou a “síndrome do parafuso”. Só pra mostrar pros colegas como o carro era forte, brincava de apertar o parafuso da válvula wastegate para aumentar a pressão limite do turbo, e dar umas arrancadas de demonstração.
Por uns tempos ele também brincou com um kit nitro que pegou emprestado de um amigo que tinha encostado, mas não gostou do preço da recarga pra tão pouco tempo de diversão.
Foi-se a primeira retífica do motor e, não muito depois, a segunda.
Nisto, o carro, que ainda mal completara o primeiro ano de uso, já começava a dar manutenção pesada.
Coxins de suspensão e de motor arrebentados, homocinéticas estalando, amortecedores babando óleo, embreagem patinando, câmbio com ronco em algumas marchas...O carro passou a ficar mais tempo na oficina que rodando.
O que era um brinquedo divertido, agora era uma dor de cabeça.
Foi quando ele começou a falar em vender o carro abertamente no fórum.
Quando ele disse sua intenção, perguntaram se ele assumiria o que fez com o carro para o novo proprietário, ou se passaria o imbróglio para o próximo iludido.
Claro que, diante do grupo, ele assumiu que seria honesto.
Algumas semanas depois, num dia muito frio e chuvoso, ele vinha dirigindo o carro e sentiu que o tênis que calçava estava frio e úmido. Parou para olhar, e o carpete estava encharcado junto aos pedais.
Levou o carro na oficina, e no elevador foi constatado que a junção da parede do cofre do motor com o assoalho abrira uma rachadura enorme.
Dali o carro já não saiu.
Ele removeu o kit turbo, recolocou rodas e pneus originais, montou molas e amortecedores comprados em desmanche, soldou a rachadura, e colocou o carro à venda.
Ele ainda contou em pleno fórum como o comprador se iludiu com o carro em estado aparentemente impecável, pagando acima da tabela, e de como ele não disse um “pio” sobre os defeitos do carro.
O discurso é moralista, mas a ação é de Gérson.
Com o dinheiro da venda, ele já correu atrás de outro carro parecido para montar os kits do carro velho.
Infelizmente, este caso é a regra, e não a exceção.
A maioria dos carros abusados e destruídos é passada para frente em situações semelhantes. Podem até apresentar problemas que ofereçam risco sem que o novo dono saiba.
Forçar qualquer equipamento é encurtar a sua vida útil de forma dramática.
Carros com suspensão excessivamente rebaixada e motores preparados muito acima da potência original se desgastam e quebram numa fração do tempo previsto de uso. E, tendo atingido este ponto, serão carros problemáticos até seu descarte.
Quem modifica o carro desta forma sabe disso, e quando o carro se torna uma bomba ambulante, quer logo se livrar da encrenca.
Modificar o carro foi divertido, mas ninguém quer pagar o preço salgado da diversão.
Quem acaba pagando por ela é o novo proprietário (ou seria o “próprio otário”?) enganado e a ética.
E, logo em seguida, outro carro em perfeito estado é conduzido para este derby da demolição que nunca acaba.