O mercado automobilístico é repleto de paradigmas. Rompê-los, assim como acontece com qualquer outro paradigma, exige uma dose de coragem e visão (não necessariamente nessa ordem) dos fabricantes. Isso porque mudar a cabeça dos consumidores não é uma tarefa fácil. Mas será que os consumidores são culpados? Não completamente. Parte da culpa está na natureza humana e na mão de outros integrantes da cadeia fabricante-concessionário-consumidor.
Como bons brasileiros e seres humanos, gostamos de levar vantagem em tudo. Os consumidores querem possuir um carro por anos e vendê-lo com a menor desvalorização possível (sem “perder” dinheiro). Os espertos vendedores de carros querem se desfazer dos estoques o mais rápido possível. E, por fim, os fabricantes almejam vender instantaneamente aos concessionários tudo (todos os modelos) que produzem. Como todos querem minimizar o risco, isso leva a uma padronização dos modelos produzidos dificultando a introdução de inovações e nos limitando apenas ao que é mais fácil. É fácil observar o fenômeno no mercado de usados para entender por que temos mais de 50% dos carros vendidos nas cores (cores?) preto e prata. Tente vender um carro usado de outra cor. O “mercado” acaba nivelando tudo por baixo.
Mas felizmente o mundo globalizado está muito mais competitivo e a interdependência das ações dos fabricantes aumentou. Ou seja, a competição faz a indústria se mexer e a interdependência dos mercados nos disponibiliza produtos e serviços com os quais não estávamos acostumados. Soma-se a esses fatores as mudanças de cenários que exigem uma readequação de conceitos. Talvez nas mudanças de cenários seja onde podemos ver as quebras de paradigmas com maior facilidade.
Um bom e atual exemplo é a mudança da preferência dos americanos de carros 6-cilindros por carros 4-cilindros após as sucessivas altas no preço do petróleo. Uma grande força externa quebrou o paradigma que americano prefere carros potentes e com no mínimo 6 cilindros. Ou seja, a preferência do consumidor também depende do cenário.
Vejamos alguns exemplos de paradigmas do mercado local que já foram quebrados e outros que ainda necessitam de uma boa dose de coragem.
Motores: para carros maiores e mais caros o tamanho do motor é o que importa.
No segmento de médios um motor 2 ou 2,4-litros é melhor que um motor 1,8-L, por isso carros com motor 1,8-L não vendem. No segmento de compactos motores 1,6 ou 1,8-L são melhores que motores 1,5 ou 1,4-L, por isso carros com motor 1,5/1,4-L não vendem. Não vendiam até que a Toyota e a Honda lançaram motores 1,8-L (Corolla e Civic) e 1,4/1,5-L (Fit) modernos e eficientes, com potência similar aos motores maiores dos concorrentes, fazendo a percepção de mercado mudar. No lançamento do Corolla, em 2002, muitos torceram o nariz para o motor 1,8-L. Naquela época o padrão, adotado pela GM com a dupla Astra e Vectra era 2 e 2,2 litros. Hoje, mesmo com muitos concorrentes com motores 2-litros e até maiores, Civic e Corolla são líderes com mais de 60% do segmento. No segmento abaixo, os motores 1,8-L são preteridos pelos 1,4-L também quando estes são disponíveis (neste caso também existe uma boa diferença de preços). O caso da Honda e da Toyota é um exemplo da interdependência das ações dos fabricantes. Tanto o Civic quanto o Corolla não possuem motores 2-litros disponíveis para mercados similares ao Brasil. Portanto, não tinham a opção de lançar motores maiores e tiveram coragem de desafiar o nosso mercado apostando na eficiência de seus motores. Portanto esse paradigma foi quebrado.
Motores a gasolina: utilitários esportivos têm que ter motor diesel.
As versões a gasolina desse tipo de veículo com tração 4X4 não vendem. Acho que esse paradigma se formou a partir dos resultados de venda do Blazer V6 4,3-L, que era caro, tinha um consumo de combustível elevado e um baixo valor de revenda. Hoje todos eles devem rodar com gás. Atentas a esse movimento, Toyota e Mitsubishi focaram suas vendas nas versões a diesel dos SW4 e Pajero Sport, ajudando a perpetuar a preferência por estes modelos, até que a Hyundai nos invadiu com o Santa Fé e o Veracruz somente com motores a gasolina a preços competitivos (de novo a interdependência entre mercados e disponibilidade).
Em São Paulo e outros grandes centros urbanos os modelos a gasolina são os preferidos atualmente. Mitsubishi também está aproveitando a onda com modelos a essa combustível, ainda mais agora que os preços do diesel e da gasolina estão muito próximos. Mais um paradigma quebrado.
Design: a principal razão de compra dos brasileiros é design.
Carro feio não vende. Não vendia. A principal razão de compra dos brasileiros é custo-benefício. Ao entender bem que os consumidores do Logan poderiam abrir mão do design em nome de um amplo espaço interno e um preço (do carro e dos serviços), justo a Renault derrubou esse paradigma de uma vez por todas. O Logan é mais um caso de interdependência.
Cor do interior: tem que ser escuro para não sujar.
Interior cinza claro ou bege suja muito, por isso o consumidor prefere interior preto.
Acho que esse paradigma ainda está em processo de quebra. Hoje temos muitos carros com interior cinza e alguns com interior bege, como o Linea, o Corolla, o SW4 e o Captiva. No caso do interior bege a competitividade está gerando a necessidade de diferenciação. Ponto para os fabricantes. Vamos torcer para que os vendedores e clientes não dificultem a quebra total desse paradigma.
Câmbio automático: brasileiro (que se acha muito piloto) só gosta de carro manual.
A maior suscetibilidade a quebra e a difícil e cara manutenção assombraram os poucos consumidores que se arriscavam a ter um carro com câmbio automático nas décadas de 80 e 90. Esse é mais um paradigma que os orientais, com sua qualidade imbatível, ajudaram a quebrar. Mais de 60% da vendas de Corolla e Civic são de modelos automáticos. Hoje praticamente todos os fabricantes oferecem versões com caixa automática para seus principais modelos.
Quatro portas: o padrão do mercado é de carros duas portas.
Até meados dos anos 90 a “preferência nacional" era por modelos duas-portas. Praticamente todos os sedãs nem tinham versões quatro-portas. Todas as peruas, carros familiares e com ocupação constante do banco traseiro tinham apenas duas portas.
Nos hatches compactos a situação não era diferente. Estou tentando entender como essa preferência se instalou. Possivelmente a popularidade do Fusca e do Gol fez os consumidores se acomodarem achando que, de fato, duas portas eram suficientes. Hoje, saindo dos modelos de entrada, em que o preço tem um peso muito maior na decisão de compra, a preferência nacional é por modelos quatro-portas, tanto que a grande maioria dos modelos nem possui versão com duas portas.
Preto e prata: essas cores(?) são mais fáceis de vender e/ou revender.
É verdade. Vejo apenas uma maneira de quebrar esse paradigma: um fabricante, corajoso e visionário, não oferecer essas cores para um de seus grandes lançamentos. Já imaginou todo mundo querendo ter um novo Gol que não tivesse nem preto nem prata disponíveis? Duvido que o Gol venderia menos. Esse fenômeno de preferênia de cor aconteceu com o SW4 da Toyota. O carro é um símbolo de desejo e quem quiser possuí-lo tem que levar o interior bege. Não vejo ninguém reclamando ou deixando de comprar o carro por causa disso. Assim, já temos a Captiva, o Corolla e o Linea com interiores bege.
Gostáramos de saber se você identifica outros paradigmas quebrados ou a serem quebrados. Tenho certeza que o Bob Sharp tem um muito bom.