E lá estava a Bianca, sentada de lado no banco do seu Mustang 67. O carro era azul metálico, conversível, e a capota branca estava arriada, o que mostrava o interior todo branco. A porta estava aberta e a Bianca, mantendo um pé descalço no chão, erguera o outro delicado pé, também descalço e o colocara no assoalho do carro. Esse movimento fizera sua saia escorrer pela sua pele lisa e foi aí que viu que seu joelho direito se machucara. Um machucadinho só, que estava mais para uma arranhadura e nem sangue saíra.
Vendo isso ela beijou seu próprio joelho, salivando-o, numa ação instintiva, meio animal, para limpar o pequeno ferimento.
E ela gostou do que provou, gostou da própria pele, do próprio gosto, e lambeu ao redor da arranhadura.
Não é à toa que o Paulo diz que tenho um gosto bom, pensou ela, um gosto nem doce nem salgado, uma mistura dos dois. Não é à toa que ele está sempre me beijando toda, me mordendo toda – e um arrepio percorreu seu corpo, fazendo sua carne firme vibrar.
O Paulo estava vindo. Ela lhe ligara pelo celular e estava a caminho para ajudá-la a trocar o pneu do Mustang. Ela bem que tentara trocar sozinha, e para isso tirara os sapatos chiques de salto alto para não arranhá-los, e ajoelhando-se para ajeitar o macaco sob o conversível foi que machucara o joelho no asfalto poroso.
Tudo bem, o Paulo logo estaria lá.
Esses carros antigos têm umas coisas brutas, ela pensou. Trocar pneu é uma encrenca. A chave de roda é um ferro enorme e o macaco sanfona é desajeitado pra burro. Trocar pneu é uma operação bruta, e ela era forte mas nem tanto. Com muito custo conseguiu tirar o pesado estepe do porta-malas, porém desistira de vez quando tentou soltar uma porca e ela nem fez tric, parecia colada. Ainda bem que nunca lhe faltou homem disposto a ajudá-la a resolver seus probleminhas; afinal, homem serve pra isso, ponderou.
O Paulo, sguínch!, chegou, com seu carrinho japonês tunado. Veio na maior vulada, preocupado, pois a noite já descera e escurecia.
— Olha só, Paulo! Mais uma vez esse carro velho me deixa na mão! — a Bianca foi logo atacando o namorado. A ideia de eu comprar esse carro foi sua. Eu bem que estava numa boa com o meu Pajerinho e você veio com essa de carro esporte clássico. Pônicar uma ova!
— Aquilo de jipinho é uma bosta! Aquilo não é carro, já te falei — o Paulo foi logo respondendo, enquanto a beijava e arregaçava as mangas para meter mãos à obra.
— Você e os seus amigos! Aquele safado do Arnaldo, que você chama de amigo, e pior, que é teu primo, foi que me vendeu esse carro que tá sempre encrencando.
— Safado nada, ele é gente boa...
E enquanto o Paulo ia ingenuamente defendendo o primo, ela ia se lembrando de como conhecera esse ordinário do primo do Paulo.
O Paulo dera o endereço da oficina Autoentusiastas, dos seus amigos, pois lá havia um Mustang bárbaro, que “era a cara dela”, e ela, com a conta no banco recheada da Palmolive, resolveu apostar num glamour para seu visual de modelo, e imaginou-se chegando na festa de lançamento da campanha publicitária, e ela chegando num Mustangão azul conversível e tal, abafando, os repórteres chegando, os caras do Pânico lhe fazendo gracinhas, e ela imaginou os caras abrindo a porta do seu Mustangão clássico e ela descendo de minissaia com seus pernões bronzeados de deixar todo mundo louco, parando tudo, flashes de fotos, focos de luzes... Uau!
— Safado sim! Teu primo é safado! Quando cheguei na oficina ele estava debaixo do Mustang e quando escorregou pra fora naquele carrinho lá, ele continuou deitado no chão secando as minhas pernas. Nem olhava pra minha cara, nem disfarçava!
— Ele é meio tonto, Bianca. Sempre foi assim. Meus pais dizem que ele só foi falar com quatro anos, que até aí ele só fazia brrrruum brrrum com os lábios e corria pra todo lado como se estivesse com um volante nas mãos. É um panaca o cara, sempre foi. Pombas! Já te falei.
E o Paulo foi fazendo força e subindo na chave de roda para soltar uma porca.
A Bianca ficou quieta, pois estava se lembrando do Arnaldo, que não era tão tonto assim, que tinha lá suas qualidades, dentre elas a tal safadeza tonta dele, e ela foi lembrando da tatuagem que o Arnaldo a convencera de fazer na nuca, a da joaninha com os filhotinhos. Seria um segredinho só dela, ele disse. Cada vez que ela se apaixonasse ela faria mais uma tatuagem de joaninha na nuca, mais uma joaninha filhotinho. E foi lembrando de quando o Arnaldo a levara ao chefão da oficina, o Bob, que mesmo resmungando dizendo que não tinha tempo, que tinha muita coisa pra fazer, acabou gentilmente lhe fazendo a tatuagem das joaninhas. Não doera nada. Legal o Bob, ela pensou, e foi se lembrando melhor do Bob, do quanto no fundo ele era gentil e experiente...
— O que é que é isso aqui, Bianca? – o Paulo urrou lá de trás do carro. O que é que esta botina 47 está fazendo no porta-malas?
— É do Bituzinho.
— Do Bitu? Por que é que ele ia deixar a botina aqui? E que história é essa de Bituzinho? Ninguém chama um baita dum cara encorpado de dois metros de Bituzinho! Que história é essa?
Para sorte da Bianca, começou a chover de monte, e nessas deu um corre-corre para apressar as coisas e ela não teve que explicar melhor como foi que as botinas do pintor de carros da Autoentusiastas tinha ido parar no porta-malas do Mustang 67...
O Paulo tentou de erguer a capota do carro, porém ela estava emperrada. Pediu ajuda à Bianca, mas mesmo assim eles não conseguiram e acabaram desistindo.
— Tá vendo, Paulo! Mais um amigo teu daquela oficina de merda! O André falou que resolveria o problema da capota e acabou não resolvendo nada. Ficou mexendo, mexendo, soltando e apertando parafusos e falando de Física e filosofia grega dos primórdios da civilização e me enrolou direitinho, o embrulhão.
— Estou vendo. E ele ainda esqueceu um manual grosso de Física debaixo do banco, o Paulo disse.
— O manual está aí ara escorar o banco. Não tira ele daí não, que o Andreúcha falou que é pra deixar.
— Andreúcha?
— Estou lendo um livro do Tolstoi que o André me emprestou e os russos têm mania de botar ucha no fim dos nomes pra apelidar com carinho... Mas você não entende nada disso. Você só entende de fotos e fotos, de luz daqui e luz dali, e eu quero mais é me aculturar pra ser uma atriz diferente, culta pacas. O André me abriu novos horizontes, novas perspectivas... Deixa pra lá e troca esse pneu.
— É, mas foi fazendo teu book comigo é que você pegou essa campanha da Palmolive.
— Campanha que foi toda nesse carro velho. Grana que o Molazanno, o cara do escritório da Autoentusiastas, rapou. Esse é o maior safado de todos eles! Se faz de bonzinho, de fala mansa, oculinhos limpinhos, todo ele limpinho e certinho no meio daquela sujeirada de graxa que é a oficina. Mas ó aqui, ó! É safadeodó, que eu sei!
— Mania que você tem de pichar meus amigos! Eles são legais e boa! Vamos embora. Vou largar o carro japinha aqui e amanhã eu pego. Vambora que já tou ensopado.
E os dois entraram molhados no Mustang, cujos bancos formavam poças d’água, tudo molhadaço escorrendo água.
E foi quando o Paulo deu a partida no carro e o motor pegou...
— Mas, o que é que é isso? Tem ronco de um 4-cilindros?! O motor era um V-8 302 com quadrijet e agora ronca que nem um quatro?
— O Xandinho trocou. Aquele motor gastava muita gasolina e o Xandinho falou que resolvia o problema do dia pra noite. E resolveu. E não cobrou nada, foi pau a pau. Gente fina o Xandinho. Esse é o único que presta da tua turma. Botou um motor novinho de Chevette e agora gasta bem pouquinho.
— Vou matar esse cara! Vou mataaaar! — o Paulo berrava, enquanto esmurrava o volante e cuspia a água que lhe escorria pela cara. Eu mato, eu mato... ele repetia como um mantra... eu mato, eu mato.
E assim foram indo pro apê da Bianca, debaixo de chuvarada, Mustangão andando lerdo, capota arriada, com o motor Chevettinho fazendo uma força danada pra empurrar aquela lataria toda.
Chegando, trataram de ir juntos pro chuveiro pra tomar um banho quente para não ficarem resfriados, e foi nessas, por entre beijos e abraços debaixo do chuveiro, que o Paulo, pela primeira vez, viu a tal tatuagem na nuca da Bianca.
Foi ver e sair correndo, meio pelado, só de toalha, correndo escada abaixo e com gritos que ecoavam por todo o prédio: — Bando de miseráveis! Sacripantas! Capadócios! Bando de ordinários! Eu mato esses caras! Eu mato!...
— Nossa! O que é que deu nele? — a Bianca, assustada, se perguntou.
E, encafifada, foi ao espelho, pois, afinal, nem ela mesma ainda vira as tatuagens que fizera, de tão pequenas e escondidas que estavam. E com um espelho dali e outro espelho daqui, com muito esforço, se contorcendo, viu, que em vez da tal joaninha com os filhotinhos, lá estava escrito: AK, BS, FB, AAD, MM, AG
— Bom —, ela resmungou — o jeito é tatuar logo um PK bem grande pra tentar remediar a situação...
E ela voltou pro chuveiro para ensaboar sua pele lisa, pois ela gostava muito disso.
AK
AK
Otimo, parabens....sera essa a semente de um segundo livro?
ResponderExcluirAbs
inverossímil!
ResponderExcluirAnônimo
ResponderExcluirPode explicar por quê?
HAHAHA ri pacas.
ResponderExcluirO Xandinho é mtoo gente boa colocou um motor novinho do Chevette,e ficou com o 302 pra ele.USHAUSHAUSHAUSHAUSH
Não há necessidade de ser "verossímil". Isso é a beleza da ficção. E a parte da troca de motor do xandinho ficou realmente muito engraçada. Parabéns Arnaldo. Uma hora eu compro o teu livro. MRM21
ResponderExcluirExcelente, Arnaldo, excelente...
ResponderExcluirO AG metendo motor de Chevette num Mustang?
ResponderExcluirHahahahahahaha.
Garanto que o 302 era Boss.
Perfeitas as descrições da turma.
Maravilha! Ótima cronica, um texto com o jeitão do Arnaldo.
ResponderExcluirAdorei a história das tatuagens de joaninhas.
Como já conheço alguns do Autoentusiastas citados, agora fiquei curioso para conhecer a Bianca.
Romeu
Vocês nem imaginam o tamanho da tatuagem que a Biance fez.
ResponderExcluirPK :)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirArnaldo, duca!!!!
ResponderExcluirQuando sai o segundo livro?
PK, se vira e consegue um com o primão.
Essa Bianca me fez lembrar da Tininha, uma garota da escola que um brother meu jura que não pegou, mas eu duvido...
AK
ResponderExcluirMuito bom. Texto leve e muito divertido. O lance das joaninhas é ótimo.
O motor de Chevette tem cabeçote Silpo? xD
ResponderExcluirRi deveras! Valeu, Arnaldo! :)
Me engasguei de tanto rir. AK, sensacional.
ResponderExcluirMas o teu primo é enrolado mesmo, esse motor era do chevette do chuck norris, cara mó canhão, ele é que não asoube acelerar, hahaha.
E a menina, coitada, chegou lá na oficina com o carro meio capenga, sem força, fazendo o maior barulhão, o unico jeito foi esse, tive que por o motor do chevette para salvar o mustang!
Legal que tenham se divertido. Eu me diverti escrevendo...
ResponderExcluirValeu!
AK!
ResponderExcluirTexto formidável! Um quê de suspense, um quê de sátira, um quê de erotismo... Não tão ácido ou direto, mas segue bem um estilo meio "Nelson Rodrigues"; um texto que deixa o leitor imaginar uma continuidade. O desenrolar da história é bem criativo.
Gosto muito de crônicas. As vezes faço uma ou outra, aproveitando algum momento de inspiração. Verossimilhança interna ou externa, não importa, nem o uso de palavras difíceis ou rebuscadas se faz necessário, o que vale é a riqueza do texto em termos de criatividade.
Parabéns.
Qualquer coisa que o Arnaldo inventa de escrever fica com um sabor especial, parabêns...ficou bem divertido!
ResponderExcluirCaraca, tô com os olhos marejados de tanto rir!! Sensacional!!
ResponderExcluirExcelente AK!!!
ResponderExcluirSó fui ler hoje, mas foi diversão garantida!!! hehehe
Abraço