Entre todas as categorias do automobilismo mundial, o Campeonato Mundial de Endurance é provavelmente o mais interessante de todos, pelo menos ao meu ver. A grande variedade de competidores, com diversas categorias, disputando provas com horas e horas de duração, exige muito preparo das equipes e projetos extremamente bem feitos. A referência para esta categoria é a 24 Horas de Le Mans.
Desde os primórdios desta corrida, a evolução 
técnica e o desenvolvimento de novas tecnologias estão diretamente 
ligados à própria existência do evento. A liberdade de criação e a 
preocupação com a eficiência energética dos carros existem
 há anos. Para se ter uma idéia da importância da eficiência nos carros 
que competem, paralelamente à corrida em si existe uma competição que 
premia o carro mais eficiente em termos de consumo de energia.
A Audi é a equipe a ser batida há mais de uma 
década. Trouxe para as pistas os motores Diesel competitivos, e agora os
 híbridos. Agora para 2014, o regulamento da categoria principal, a 
LMP1, vai sofrer uma modificação considerável para
 incentivar mais o desenvolvimento de tecnologias limpas, sem perder o 
charme da corrida e as disputas na pista, o bom e velho “mano a mano” 
entre os pilotos.
Nas últimas revisões do regulamento técnico da 
categoria, os principais pontos eram garantir o equilíbrio entre as 
equipes, principalmente entre os motores Diesel e os movidos a gasolina,
 e o controle de gastos, para que a categoria não
 tivesse o fadado destino do encerramento por falta de participantes. 
Agora para 2014, os elementos básicos se mantiveram, mas também alguns 
outros aspectos técnicos, diga-se de passagem realistas, foram 
considerados.
No documento divulgado pelo ACO (Automobile Club 
L’Ouest), a entidade organizadora da 24 Horas de Le Mans, as mudanças 
foram feitas com base em seis princípios básicos:
- Desenvolvimento sustentável e eficiência
- Manter o equilíbrio esportivo e o entretenimento ao público
- Desenvolvimento de novas tecnologias
- Redução de custos
- Segurança
- Aplicação das tecnologias nos automóveis de rua
Com base nestes seis aspectos, diversas mudanças 
foram elaboradas para que o custo da categoria fosse  controlado, para 
que a defasagem de orçamento entre as equipes não gerasse grandes 
diferenças de rendimento e conseqüente desistência das
 equipes menores, para aumentar a segurança dos carros, e assegurar a correlação entre
 o que é feito nas pistas e os futuros projetos da indústria 
automobilística mundial. E, ainda, tudo isso sem que a categoria perdesse o 
atrativo ao público, ficando uma corrida chata e cheia
 de regras complicadas.
Toda esta teoria resume-se no regulamento técnico, 
que dita as regras para o projeto dos carros para a temporada de 2014, 
pois só assim é possível mensurar e quantificar as idéias propostas. 
Somente o carro de corrida é que pode atingir
 estes objetivos, com o envolvimento do tempo e recursos necessários 
para sua criação.
O atributo mais afetado pelo novo regulamento acaba
 sendo o motor. Poluir e consumir cada vez menos é a meta principal. Até
 então, os motores eram regulamentados tanto para controlar o consumo de
 combustível como a emissão de poluentes,
 mas também para equilibrar o desempenho dos carros. “Equilibrar o 
desempenho” pode ser visto com dois propósitos.
O primeiro é garantir que uma equipe não venha com 
um motor muito melhor que os rivais e os demais não consigam acompanhar,
 tornando a categoria sem graça, já com um grande favorito. O segundo 
aspecto é a segurança, pois historicamente
 é sabido que engenheiros quando não são limitados, criam motores com 
muita potência e carros muito rápidos, e a questão da segurança bate 
forte neste aspecto. Ainda bem que em Le Mans este controle é feito com 
bastante critério, pois os carros ainda são muito
 rápidos, pois não foram meramente “podados” para ficarem mais seguros.
| Audi R18 e-tron, consumo reduzido sem perder desempenho | 
Até então, estas restrições de motores eram feitas 
basicamente com restritores de ar na admissão, pressões de turbo e 
combustível controlados e cilindrada do motor controlada. Isso tudo para 
tentar administrar a potência gerada. Para 2014,
 boa parte disto mudou. As poucas restrições são que os motores devem 
ser quatro-tempos e usar pistões convencionais, de movimento alternativo (motores tipo Wankel não 
serão permitidos) e para as equipes particulares, ou seja, as que não são 
oficiais de fabricante, como a Audi e a Toyota,
 motores de até 5,5 litros.
Não mais se usarão restritores de ar na admissão, mas 
comandos de válvula variável serão permitidos. Isso significa que cada 
equipe pode desenvolver melhor suas tecnologias de admissão, e que 
poderão ser usadas em carros de rua no futuro.
 Com o uso dos restritores de ar, era preciso criar motores específicos 
para trabalhar nesta condição limitada e ainda serem potentes, e isto 
não pode ser aproveitado para um carro comum, que não tem esta restrição
 de ar.
Para as equipes oficiais, a cilindrada agora é
 livre. Quem quiser pode fazer motores enormes, mas acaba não sendo 
muito bom negócio, pois a potência mesmo sendo alta, acaba carregando 
junto o consumo, o peso e o
package do conjunto (entenda-se o tamanho físico externo do 
motor) acaba ficando grande demais e o carro tem pouco espaço para 
acomodá-lo sem prejudicar a aerodinâmica, por exemplo. As equipes 
particulares poderão usar motores de até 5,5 litros, como visto acima,
 isso controla um pouco os gastos.
Sistemas caros e pouco proveitosos para carros de 
rua estão banidos, como o exemplo dado pelo ACO das válvulas de admissão
 e escapamento com controle eletromagnético. Materiais nobres e caros 
também serão restringidos. Os motores turbo terão
 maior liberdade de trabalho, pois a pressão máxima permitida foi 
aumentada. Com isso, motores menores poderão ter potências maiores, 
sendo mais eficientes.
|  | 
| O sistema de acumuladores de energia da Toyota | 
E falando em eficiência, este é um dos principais 
objetivos do novo regulamento. Diversas restrições nos motores foram 
eliminadas, o que em teoria, permite motores grandes com potências 
elevadas. Mas existirá uma outra forma de conter a
 potência dos motores, que é o consumo de combustível. Cada carro terá 
uma espécie de medidor de consumo de combustível, o que força os motores
 a serem mais eficientes, pois potências altas só serão favoráveis se o 
consumo for baixo. É uma questão de compromisso
 entre potência e consumo.
A tendência atual dos carros de ponta é usar a 
opção dos sistemas híbridos, como a Audi e a Toyota. Será permitido 
qualquer tipo de sistema, contanto que este possa ser mensurado e seja 
limitado a dois por carro. Como exemplo de diferentes
 tipos de sistema híbrido, temos os sistemas que acumulam energia com 
capacitores e sistemas que acumulam energia em volantes, como já falamos
aqui no AE.
Cinco categorias de sistemas híbridos serão usadas,
 em função da quantidade energia em megajoules (MJ) que o sistema usa. Partindo do zero 
(sem sistema híbrido) e passando por 2 MJ, 4 MJ, 6 MJ e 8 MJ de energia 
que pode ser liberada por volta (referência é
 o circuito de Le Mans), os carros serão enquadrados para a definição de
 outros aspectos, como mostra a tabela abaixo.
Podemos ver que conforme o carro use mais da 
capacidade de reaproveitamento de energia por conta do sistema híbrido, 
menos combustível ele pode gastar por volta.
Para controlar os gastos de desenvolvimento nas 
tecnologias híbridas, após a definição do sistema usado e em qual 
categoria este se enquadra, não será permitida alteração ao longo da 
temporada. Isso lembrando que o regulamento vale tanto
 para a 24 Horas de Le Mans como para o Campeonato Mundial de 
Endurance.
Outros aspectos que o regulamento altera são 
referentes a alguns pontos da carroceria dos carros. Por questões de 
segurança, apenas carros com habitáculo fechado serão permitidos. Lembrando
 do incrível acidente do Audi na corrida de 2012,
 onde em um acidente maior o piloto fica exposto à agentes externos, os 
carros abertos foram banidos.
Para evitar que os carros decolem facilmente em uma
 rodada em alta velocidade, novas regras para aberturas na carroceria 
foram criadas, e a “barbatana” central foi mantida.
|  | 
| Novo campo de visibilidade dos pilotos, em azul, comparado com o de 2012 (vermelho) | 
A visibilidade do piloto será melhorada, com novas 
regras de posição de pilotagem e ângulos de visão. Alguns acidentes nos 
últimos anos foram causados por conta de falta de visibilidade dos 
pilotos, e a tentativa de eliminar ao máximo os
 pontos cegos ajuda bastante.
|  | 
| O piloto sentará mais alto e mais para frente | 
Os carros terão a largura máxima reduzida de 2.000 
mm para 1.900 mm. Os carros mais estreitos podem ter o arrasto reduzido,
 e consequentemente aumentando a eficiência. Também acaba sendo uma 
forma de reduzir a velocidade de contorno de
 curva dos carros.
|  | 
| A nova proposta de largura dos carros | 
Será permitido o uso de dispositivos aerodinâmicos 
reguláveis na dianteira dos carros para melhor ajustar o equilíbrio 
total. Até este ano, todo e qualquer elemento aerodinâmico na dianteira 
do carro deveria ser fixo, sem regulagem. Esta
 alteração permite que as equipes trabalhem mais no ajuste fino do downforce pista à pista, sem depender tanto de complexos e custosos recursos aerodinâmicos.
Em resumo, os responsáveis por estas alterações do regulamento estão procurando formas de deixar a competição mais ecologicamente correta sem comprometer a competitividade e sem perder o charme da 24 Horas, com grande abertura para novas tecnologias.
Ao contrário da F-1, onde complicados recursos precisaram ser criados para que a competitividade voltasse para as pistas, como o recurso da asa móvel controlada por GPS, ao que parece o ACO encontrou uma forma de conter os custos e ainda proteger as equipes particulares, que não dispõem de um grande orçamento como as equipes de fábrica.
Isto não quer dizer que a Audi vai perder a soberania da noite para o dia, acredito que ainda será o carro a ser batido. Os novos motores que nascerão com este regulamento serão ótimos laboratórios para futuras tecnologias, agora com chances maiores para aplicação nos carros de rua.
E vale lembrar, 2014 ainda será o ano de retorno da Porsche à LMP1 como equipe oficial, e os alemães de Stuttgart não vão apenas aparecer para fazer número no grid. O ano que vem promete!
MB
Fotos: ACO, autor, status-cars.



Milton, vi num site especializado em automobilismo (www.pitpass.com) que, entre o Campeonato Mundial de Endurance e a Fórmula 1, a Porsche decidiu pela primeira opção pelo fato de poder aplicar a tecnologia desenvolvida nas pistas em automóveis de ruas.
ResponderExcluirOutra coisa. Estava brincando com os números presentes na tabela acima referente aos não-híbridos, e cheguei à conclusão de que a ACO considera que um motor a gasolina consome 24% a mais que um similar a diesel, mas definiram para o primeiro um tanque apenas 21% maior, algo que limita a autonomia do motor a gasolina e que passa a impressão de que a ACO estaria favorecendo os motores a diesel.
Por acaso, você sabe me dizer se a ACO está priorizando motores diesel?
Abraço.
Octavio, em teoria eles não favorecem ninguém, mas há uma tendência em cada vez mais explorar as formar alternativas, como o diesel e os híbridos.
Excluirabs,
Acho sempre louvável a prioridade nas regras pelo equilíbrio e pelas oportunidades iguais aos menores. Isto é prática esportiva da melhor qualidade !
ResponderExcluirExcelente artigo Milton !
Helcio,
ExcluirAcima de tudo, acho que é uma organização consciente e que zela pelo esporte sem prejudicar o público. Como os próprios responsáveis disseram, se as regras forem complicadas para o público, não serão aceitas.
abs,
Boa tarde, tenho uma pergunta off topic, o Felipe Bitu que apareceu hoje no autoesporte como proprietário de uma quantum é o mesmo que escreve no autoentusiastas? Grato pela atenção!
ResponderExcluirLeonardo Pastori
Anônimo 28/04/13 14:27
ExcluirO próprio.
Quase todos do Autoentusiastas já apareceram neste programa. Pessoal tem bom gosto.
ExcluirEu poderia apostar com quem quisesse durante a semana que aquela Quantum que aparecia nas chamadas do Auto Esporte era a velha Panzer do Bitu.
ExcluirTeria faturado!!
MB,
ResponderExcluirbelo trabalho de pesquisa e síntese de um assunto complicado como regulamentos.
Gostei muito. Gostei principalmente da escalada na redução de consumo, para mim, um indicativo de capacidade de engenharia.
Gostei também do fim dos carros abertos, nunca gostei deles, não combina com longa duração.
JJ, obrigado!
ExcluirQuanto aos carros abertos, no passado eles eram eficientes, pois permitiam entrada e saída rápida dos piltos, e eliminava o problema de embassamento do vidro com chuva, coisa que hoje em dia não acontece por conta do sistema de ventilação interna dos carros.
abs,
Ótima matéria Milton, esta corrida deveria ser melhor divulgada na mídia. É o supra sumo mais próximo que podemos "ter" em casa em teoria, bem diferente da chata F1 hoje, que esta um tédio e sem nada de emoção.
ResponderExcluirSó acho que essa historia de regulamente dar brecha a equipes menores e colocar muitas restrições é de uma forma bobagem, pois se existe equipes de ponta é por que eles podem. Se alguma equipe menos endinheira e tecnologicamente mais atrasada que entrar, que entre em categorias abaixo até que se encaixe melhor.
As regras deveriam ser mais rígidas para cima da tecnologia e da eficiência em geral, forçar mais os fabricantes de determinada categoria top a desenvolver e refinar mais ainda o que já existe isso sim.
E por que raios será que aquela regulamentação divina que exigia o fabricante de ter unidades de rua a entrar na competição sumiu ? Aquilo era fantástico demais ! Vide os Porsches 962, GT3,2,1 ou o Nissan R390 ! Cade aquela regra ?
Abraço.
A regra ainda existe. Se a montadora faz um carro por semana, ela será classificada como "Montadora Grande" e deverá ter produzido pelo menos 100 carros para usar a versão de corrida do mesmo. (Exemplo: A Porsche precisa de 100 911 GT3 de rua prontos para poder correr com a versão de corrida do carro.)
ExcluirSe a montadora faz 1 carro por mês, ela será classificada como "Montadora Pequena" e deverá ter produzido apenas 25 carros para poder usar a versão de corrida do modelo.
Vou deixar aqui o link dos regulamentos de homologação da LMGTE caso queira se aprofundar mais:
http://www.24h-lemans.com/wpphpFichiers/1/1/ressources/Pdf/2013/24-heures-du-mans/regulations/2013-technical-regulations-lm-gte.pdf
Topsy Kretts,
ExcluirPerfeito, esta regra vale para as categorias GT.
Acho que o Antonio Filho falava era em relação aos protótipos, ou os antigos GT1. Neste caso, essa regra não vale mais.
abs,
Muito bom, Milton!
ResponderExcluirÉ uma pena a proibição dos motores Wankel. Talvez seja difícil colocá-los dentro de categoria existente. Criar uma categoria só para os Wankel também parece ser inviável. Sempre fui muito curioso por saber onde esses propulsores podem chegar com um bom desenvolvimento.
Abraço
É isso ai Beto!
ExcluirUma pena mesmo, mas como a própria Mazda fica no "vai e vem" com o Wankel, não dá força para mantê-lo no regulamento.
Mas que eram sensacionais, isso eram!
abs,
Um motor a pistão não tem chance contra um wankel, a não ser se o limite demais como rotação, cilindrada e nº rotores ou quanto a sobrealimentação. Esses regulamentos sempre beneficiam alguns e aniquilam outros, pena. Por isso o automobilismo de hoje é tão sem graça.
Excluir