"Há mais coisas entre o céu e a terra do que crê nossa vã filosofia!"
Assim como Hamlet, o sorumbático príncipe da Dinamarca da imortal tragédia de Shakespeare depois de conversar com o fantasma de seu pai, às vezes o tanto que não entendemos sobre a vida e o mundo me deixa embasbacado. Vejam, por exemplo, o fato de que a grande maioria dos entusiastas já nasce com esta predisposição. Eu, como a maioria de vocês, não tenho escolha sobre isto. Nasci assim, de uma família com zero inclinação sobre o assunto. Simplesmente temos que nos dedicar por completo a este ídolo de barro; tudo que queremos e desejamos, tudo o que SOMOS passa de alguma forma pelo automóvel. Por que nascemos com isto? Por que não podemos conscientemente mudar esta inclinação, passar a gostar de outra coisa? Intervenção divina? Acaso somente? Certamente não é genético, a não ser que pule algumas gerações... Acho este tipo de coisa realmente incrível. E me pergunto também: sempre houve gente como nós? Como viviam antes de nascer o automóvel?
Saindo um pouco do assunto automóvel para tentar entender melhor esta "vocação", vejam, por exemplo, a história de Bill Ruger (foto que abre este post, de 1988): Nascido em 1916, filho de um advogado do Brooklin, Nova York, Ruger desde muito cedo mostrou aptidão para a engenharia, e um grande interesse em armas de fogo. Aos 12 anos ganhou seu primeiro rifle, e logo era capitão da equipe de tiro do seu colégio. O jovem Ruger devorou todos os livros sobre armas e sua engenharia que existiam na biblioteca de sua cidade. Aos 20 anos, já tinha projetado uma metralhadora, e em 1938, estudando na universidade da Carolina do Norte, converteu uma sala vazia em uma oficina de usinagem, e começou a criar armas automáticas experimentais. Durante a Segunda Guerra Mundial, obviamente seus talentos foram usados em um sem-fim de projetos de armamentos.

Após a guerra começou a Sturm, Ruger & Co, com capital de seu amigo Alexander Sturm. O primeiro produto foi um clássico instantâneo: a famosa pistola semi-automática Ruger .22 (acima). A empresa prosperou, e ainda hoje, liderada pelo filho de Bill (Bill Jr), é um dos maiores fabricantes do mundo, e um dos únicos a fazer simultaneamente todos os tipos de armas pessoais: rifles, espingardas, revólveres e pistolas.
Mas este não é um blog sobre armas de fogo, então por que estou aqui divagando sobre Ruger? Bom, nosso amigo Ruger na verdade era um grande entusiasta do automóvel também, principalmente os grandes clássicos da velocidade dos anos 20 e 30, carros como Stutz, Bentley, Duesenberg. Seu imenso sucesso como industrial permitiu que ele tivesse uma coleção invejável de grandes e velozes tourers desta época. Stutz DV32 (abaixo) e Duesenbergs S com seus oito em linha DOHC multiválvulas, enormes Bentley de três até oito litros, o potente Mercer de antes da Primeira Guerra Mundial, com seu grande quatro em linha "T-head", e qualquer outro que você possa imaginar. Se for veloz e memorável, e de antes de 1935, Bill Ruger tinha um em sua garagem.
Disse Ruger numa entrevista para a revista Automobile em 1988 falando sobre o seu Bentley Speed Six de 1928: “...ele se move pela estrada com uma força irresistível. Tem torque suficiente para um bulldozer. Em terreno montanhoso, ou em estradas truncadas cheias de curvas, o desempenho é tão bom que te faz rir feito um bobo. E a nota musical do escapamento... é cheia de saúde, algo que berra por mais espaço.”
Como o grande Ken W. Purdy (quem não o conhece vai ter que esperar um post futuro), Ruger achava que os automóveis perderam muito da graça, do prazer ao dirigir, quando foram civilizados após a Segunda Guerra Mundial. Depois do conflito praticamente acabaram os carros abertos (a não ser em volume baixo para funções "recreativas"), e o carro ficou tão simples de conduzir, e tão isolado do mundo lá fora, que o romance, a aventura, e a grande emoção de dominar uma máquina intratável e que não perdoava falhas, sumiu completamente. Com câmbios sincronizados e depois automatizados, a arte de trocar as marchas sincronizando de ouvido acelerador, embreagem e câmbio, sumiu. Freios mais fortes diminuíam a necessidade de sempre se preocupar com o que acontecia por toda volta. Motoristas deixavam de ser heróicos atletas do volante para se tornarem preguiçosos condutores de sofás ambulantes.
Mas, pensou Ruger em 1966, o nível de confiabilidade, potência do motor e capacidade de frenagem de um carro comum de então era muito superior aos caríssimos supercarros dos anos 30. Não seria ótimo se pudéssemos ter Bentleys como os dos anos 30, cheios de interação homem-máquina-ambiente, e com um desempenho e engenharia superior, mas com a confiabilidade e todo o resto de um carro moderno? Como sabia que ninguém faria tal coisa corretamente, Ruger resolveu que o faria ele mesmo. Nascia então, em 1969, o automóvel de marca Ruger.

A ideia inicial era produzir o carro em série, como nos anos 30: poderia-se comprar apenas o chassi, ou um carro completo, oferecido com uma carroceria tipo
tourer apenas. Como a indústria de carrocerias sob encomenda já estava praticamente desaparecida no fim dos anos 60, Ruger chegou a planejar alguns outros modelos de carroceria para vender, como um sedã fechado tipo limusine e um
roadster,
de dois lugares, com "banco da sogra" para mais duas pessoas. Não seria barato; o preço projetado era o dobro do mais caro Cadillac de então. Mas apenas o que havia de melhor em materiais e execução seria usado, e o carro teria a marca de engenharia bem-feita presente em toda arma da Ruger. E a 50 carros por ano, a exclusividade estaria garantida.
O chassi era tipo escada com longarinas fechadas (perfil “caixa”), com travessas tubulares nas fixações dos quatro feixes de mola (sim, eram dois eixos rígidos como em 1930), e uma travessa cruciforme debaixo do curvão dianteiro. A carroceria básica, fadada a ser a única a ver a luz do dia, era um tourer aberto de quatro lugares, muito parecido com os Bentley que Ruger tanto amava. Era confeccionada em plástico, mais especificamente resina poliéster reforçada com fibra de vidro, assim como os para-lamas. As portas, porém, eram de alumínio fundido, e de folha de alumínio também era o capô. Na frente, um moderno radiador de cobre era escondido em uma capa externa em aço inoxidável. O painel de instrumentos era de nogueira sólida, e nele era montado um jogo completo de instrumentos Smiths. Os bancos individuais dianteiros, e o sofá traseiro, eram revestidos de couro inglês da Connely. As rodas eram Borrani italianas, raiadas, e escondiam enormes tambores Ford modernos, mas com “panelas” de alumínio aletadas.

Até aí, um carro antigo modernizado interessante, mas as coisas ficam ainda melhores. Ruger chegou a pensar em fazer um motor em linha próprio, com seis ou oito cilindros, mas logo desistiu pelo tempo e dinheiro necessários. Acabou por usar um V-8 Ford de bloco grande e 427 pol³ (7 litros), com nada menos que 425 cv a 6.000 rpm, acoplado a um câmbio Ford de 4 marchas. O resultado disso é que aquele enorme carro com dois eixos rígidos, que muitos achariam uma curiosidade para passeios tranquilos apenas, é teoricamente capaz de atingir 241 km/h. Inacreditável, não?
Mas a aventura estava fadada a acabar antes de começar. A diretoria da empresa de Ruger acabou por vetar a aventura automobilística do fundador. O mundo era outro em 1970, e desempenho e alto consumo de combustível estavam fadados a se tornarem tabus por mais de 10 anos. Apenas dois tourers foram criados, que ainda permanecem com a família Ruger: um amarelo com chassi e interior verde, e um preto com chassi e interior vermelho.
Ruger é um exemplo claro de que todo entusiasta do automóvel é na verdade alguém com uma ligação profunda com coisas mecânicas. Automóvel pode ser a maior e mais palpável paixão, mas é difícil achar alguém que não tenha outra também: motocicletas, aviões, barcos, armas de fogo, e por aí vai. Antes do advento da combustão interna, gente como a gente trabalhava em ferrovias. Antes disso, fazendo navios, carroças e ferrando cavalos. Antes disso ainda, fazendo lanças e outros artefatos de caça e pesca. Ou fazendo, ou usando, comprando e vendendo, contando histórias, desenhando e mais tarde fotografando; como vampiros, nossa espécie vive desde tempos imemoriais em meio aos pobres mortais, incógnitos, apenas reconhecidos imediatamente por nossos semelhantes.
A história de Ruger e seus magníficos tourers explica, então, que seja fuçando com carros, armas, ou qualquer outro utensílio de uso pessoal, o tipo de pessoa que hoje conhecemos como entusiasta do automóvel sempre existiu. Agora, à grande pergunta, de onde veio isso e por que é tão forte, bem... Eu sinceramente não sei responder. Eu sei que sofremos juntos desta doença, marca genética, o que quer que seja, e apesar de sermos diferentes todos como pessoas, como dizia aquela propaganda de cigarros, "pelo menos temos uma coisa em comum".
Foi como me disse o Egan outro dia, conversando sobre suas infindáveis buscas de carros pela internet:
"Por que eu, que este mês estou sem dinheiro até para pagar minhas contas, estou ligando para este cara para saber sobre este velho Citroën à venda? Por quê???"
Não faço ideia, velho amigo. Mas te entendo perfeitamente.
MAO