A empresa britânica de esportivos Marcos foi
fundada em 1959 por Jem Marsh e Frank Costin, daí o nome, formado pelas
primeiras sílabas dos sobrenomes dos sócios. O irmão de Frank, Mike, viria a
ser mundialmente conhecido pelo motor Ford Cosworth DFV, proveniente da empresa batizada também pegando partes dos nomes dos sócios, onde era parceiro com Keith Duckworth.
Como sempre recorrente na indústria automobilística britânica,
mais ainda nas corridas, Frank Costin tinha experiência aeronáutica, e
trabalhou na DeHavilland com o bombardeiro leve Mosquito, que aterrorizou os
alemães a partir de 1940, com seus ataques de baixa altitude. Esse avião era quase todo feito em
madeira, com as superfícies externas como parte da estrutura, chamado tecnicamente de stressed skin (pele tensionada) possível devido às técnicas de curvamento e colagem com resinas, e Costin utilizou o que
aprendeu nele para definir parcialmente os chassis para os carros da Marcos.
Fez também modelos de corrida com seu nome, monopostos e carros esportivos de
rua. Há uma página fabulosa aqui , com várias fotos de suas criações, que
usavam a madeira, o alumínio e tubos de aço onde necessário pelos esforços
envolvidos.
Mas além dos modelos de rua com o brasão Marcos,
que sempre tiveram bons resultados também nas pistas, em fevereiro de 1968 mostraram
que um carro estava sendo feito para correr em Le Mans dali a apenas quatro
meses. Diferente de hoje, quando um fabricante anuncia mais de dois anos antes
que tem um programa para Le Mans, como a Porsche fez. Empresas totalmente
diversas em tempos diferentes, claro. Era o Mantis XP (experimental,
protótipo).
Com desenho de estilo e projeto básicos feitos por
Dennis e Peter Adams, os irmãos que se tornaram associados de Marsh após a
saída de Costin, iria competir na
categoria dos motores até 3 litros, o Grupo 6 (protótipos de carros esporte) do Anexo J. Tiveram a ajuda valiosa de Stan
Gray, engenheiro com especialidade em desenvolvimento.
Teria configuração convencional para esse tipo de
carro, mas apenas na posição do motor central-traseiro. Da idéia inicial de usar
um motor BRM V-12, a falta de apoio desse fabricante e o valor muito alto
pedido pela mecânica, os levou a optar por um Repco-Brabham 740 V-8, de bloco
Rover (inicialmente de Oldsmobile F-85 e Buick 215), de alumínio, idêntico ao usado no Fórmula 1 dessa equipe. Potência não faltaria,
portanto.
Para a transmissão, um transeixo de cinco marchas
DG300, construído por Mike Hewland, da tradicional empresa fornecedora para construtores de quase qualquer tipo de carro de corrida, atuante até hoje.
O XP usava um chassis parcialmente feito de madeira
em camadas, nosso popular compensado, com soleiras bem altas devido a
construção do tipo pontoon em Inglês, ou seja, dois volumes longitudinais em forma de
caixa longa, como se fossem dois pontões ou flutuadores de barco catamarã. Os tanques de
gasolina estavam nessas laterais, como nos Fórmula 1 da época, bem como os
radiadores de água. Devido a isso, as portas foram articuladas na coluna do
pára-brisa. Havia estruturas dianteira e
traseira de tubos de aço soldados. Para cobrir tudo, carroceria de compósito de
fibra de vidro.
O irreverente do Mantis foram as portas, teto e cobertura do
motor transparentes, em Perspex ou Plexiglass, nomes comerciais do polimetil
metacrilato, um acrílico já usado comercialmente desde 1933, mas sempre de
aparência futurística, peças feitas por um fornecedor de carlingas de avião.
Bastante leves e permitindo visibilidade muito boa, apesar de fazer o piloto de
sentir como coxinha na estufa em dias quentes.
Para amenizar o calor, a parte
interna do teto é pintada, com uma ilha transparente para utilização do
retrovisor de teto. Havia janelas corrediças pequenas para minimizar o problema de temperatura.
Nesse tempo, o regulamento do Grupo 6 requeria
espaço para uma pequena mala-padrão, que foi incorporado como sendo uma bandeja bem na
frente do carro, no balanço dianteiro, que lembra muito um bico de pato. Lá estão também dois
faróis, os indicadores de direção e o radiador de óleo do motor.
As suspensões dianteiras e traseiras são
independentes, e foram compradas de John Cooper, que tinha sua equipe de
Fórmula 1. Jem Marsh simplesmente ligou para Cooper e perguntou se ele poderia
lhe vender as suspensões do carro que correra no ano anterior, e estava
resolvido! Vida simples...
Um fato cômico aconteceu durante a construção. O
chassis do carro foi feito no andar de cima do prédio conhecido como The Forge, a fábrica da Marcos, na
cidade de Bradford-on-Avon. Quando ficou pronto, descobriram que não havia
espaço para descê-lo, e um buraco foi
aberto no piso. Não apenas no Brasil se faz coisa sem planejamento completo!
Foram feitos testes em pistas britânicas, e
inscreveram o carro e dois pilotos para a 1.000 km de Spa-Francorchamps, para
competir em 26 de maio de 1968. Foi a primeira prova séria do carro, e logo nas
classificações se mostrou com muitos problemas, a ponto de um dos pilotos se
recusar a continuar o trabalho, mesmo porque a humilhação seria notória frente
a Fords, Porsches, Ferraris e Alfa Romeos.
Na prova, não se mostrou tão ruim como se imaginava.
Assumiria o
posto de segundo piloto o próprio Jem Marsh, que pela sua altura, 1,93 m, ficou
totalmente desconfortável. O revestimento do banco foi removido, para que houvesse um
pouco mais de altura livre para a cabeça, mas mesmo assim o capacete ficava prensado no teto, a
cabeça torta para um lado. Assim mesmo, o carro foi para a corrida sob forte chuva,
com Eddie Nelson pilotando na largada.
Ficava claro a falta de desenvolvimento que vem com
horas de testes, pois ele teve que parar no box devido à ausência de vedação
nas portas, que permitiu entrada de água a ponto de inundar o cockpit. Peso
morto sendo carregado, possibilidade de curtos elétricos. A solução foi abrir
furos para a água sair. Voltou em último lugar, mas recuperou dezessete
posições em menos de dez voltas, até rodar na pista e perder mais cinco. Havia
água no alternador, provocando falhas no motor, e a equipe decidiu abandonar,
bem como um terço dos competidores faria nessa corrida. Foram feitas apenas 17
voltas com o Mantis XP. Jem Marsh sabia o quanto havia custado o motor de
Fórmula 1 e preferiu não arriscar destruí-lo, pedindo para que Nelson parasse de imediato.
Nessa imagem e abaixo, na única prova que correu |
Em teste na Inglaterra |
Le Mans seria transferida do tradicional junho para
setembro, devido a problemas sociais na França que geravam protestos de rua, e
com os problemas que se seguiram para a empresa, o carro não estaria mais em
solo britânico nessa data, nunca tendo tocado os pneus em solo sagrado.
Com a mecânica original, pesava menos de 900 kg com
tanques cheios e piloto. Freios da marca Girling eram suficientemente fortes
para provas longas, e os mesmos, no carro como está hoje, são até
exagerados. Os pneus de corrida Dunlop são montados em rodas de 15
polegadas de diâmetro, proporcionando aderência muito boa, auxiliada por uma
estrutura que torce e flexiona muito pouco.
Foi então decidido não mais gastar dinheiro, e
depois disso, o motor Repco, muito caro, foi trocado por um Buick V-8 com
quatro carburadores duplos, o mesmo motor básico de onde o Rover nasceu, e o
carro passou a ser usado nas ruas por Jem Marsh.
Por essa utilização, o carro chamou atenção das
autoridades, que estimaram um valor para o carro, bastante alto, e
estipularam as taxas e impostos a serem pagos.
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A única forma de escapar desse prejuízo era
exportar o carro, que foi a decisão tomada.
A Marcos tinha contatos nos
Estados Unidos, pois estava trabalhando em um processo de início de
exportações regulares, e problemas vários na área fiscal assombravam as
operações. Era claro que não daria para continuar o trabalho de desenvolver o
Mantis XP, ainda mais quando governo entra no meio, com essa eterna sanha
por imposto e taxas, um martírio em
quase todo os países do mundo, alguns mais brandos, outros desumanos como o
querido Brasil.
Para evitar mais problemas, o carro foi enviado
aos Estados Unidos, tendo sido apresentado no Salão de Los Angeles de 1970,
onde o entusiasta Tom Morris viu o carro e decidiu que iria comprá-lo.
Bastante safo, Morris fechou o negócio no departamento de trânsito, apenas
após ter certeza de que o carro era legalizado para uso nas ruas. O valor não
é lembrado com certeza, mas algo entre 7.000 e 10.000 dólares.
Hoje, um incrível carro único |
Imagine andar com ele nas ruas |
Foi registrado no estado da Califórnia em 1971, e
lá utilizado pela família Morris, pai, mãe e os quatro filhos, que vieram integrar uma família que pode seguramente
ser chamada de entusiasta. Todos
usaram o carro, inclusive a mãe, grávida, até para ir às compras com
freqüência. O fato das suspensões serem muito mais macias do que se espera de
um carro de competição colaborava para essa utilização.
O uso de quase quarenta anos foi naturalmente
deteriorando o carro, até que os irmãos iniciaram um processo de restauração,
com o objetivo de levar o XP para o evento de corridas para carros
históricos em Monterey de 2009, mas mudou de foco quando souberam das comemorações de 50 anos da marca nesse mesmo
ano, que aconteceria na subida de montanha de Prescott Hill, na
Inglaterra. A família Morris decidiu
que seria mais importante para os entusiastas da marca levar o carro a solo
britânico, e o fez de avião, apenas para esse evento.
Em 2010 foram convidados a levar de novo o carro
ao Reino Unido, para participar do Goodwood Festival of Speed.
Em Goodwood (acima e abaixo) na subida de montanha |
Quase por acaso, o
Mantis XP foi muito provavelmente o primeiro carro de corrida esporte-protótipo certificado
para uso em ruas públicas, ironicamente não em seu país de origem, mas “do
outro lado da lagoa”, como dizem os britânicos.
JJ
JJ
Fotos:
James Lipman, myweb.tiscali.co.uk, Marcos Heritage, rory.co.uk, Marcos Cars
Net, Italian.sakura.ne.jp, thecoollist.com
Muito bom JJ! Mais uma história incrível contada aqui, mais centenas ou milhares de leitores felizes!
ResponderExcluirJJ, no texto você fala que o chassi tinha pouca torção e flexão...isso é apesar de ser feito com madeira ou justamente por ser feito com madeira?
Guilherme,
Excluirobrigado pelo elogio.
Sobre a torção, não há números que possam ser comparados com um chassis de aço ou alumínio, então é difícil dizer. Acredito que o principal seja a dimensão das caixas laterais, bem altas, e da amarração entre elas, de um lado ao outro. A madeira não pode ser assumida como melhor ou pior apenas pelo material, mas sim por construção combinada com o material, como em qualquer outro artefato, não apenas carros.
Procurei mais fotos para colocar no post e entender melhor, mas não encontrei.
Olá Juvenal,
Excluirainda sobre a torção, estudo engenharia mecânica e na matéria de resistência dos matérias(a qual é terrivelmente difícil) se estuda todo tipo de estrutura e os esforços que elas suportam, e é sim usado um índice de dureza que se não me engano é inferior aos dos materiais mais comuns usados em um chassis. claro quanto melhor o projeto do chassis menor a necessidade de materiais excepcionalmente resistentes a torção, se os produtores do mantis xp forem tão bons quanto o texto transparece o chassis é tão bem construído que se pode usar madeira no lugar de ligas metálicas. claro que minha opinião não é 100% avalizada, já que sou um reles estudante de engenharia.
att
Se não me engano o JJ é engenheiro mecânico, mesma profissão a que nós dedicamos nossos estudos, felipe, pois também curso essa engenharia!
ExcluirPor isso mesmo que perguntei, porque a madeira tende a ter menores qualidades de resistência mecânica que o aço, mas se combinada de alguma forma com outro material e/ou forma de união e integração entre as peças poderia ajudar na resistência à torção e flexão do veículo.
Talvez não seja tão bom quanto os melhores projetos de hoje, mas para a época, uma viga bem grossa em cada lateral deveria fazer bastante diferença mesmo usando um material menos resistente...
Excelente texto JJ!
ResponderExcluirEste carro é muito curioso, linhas arrojadas para a época de sua criação.
abs,
MB,
Excluirvaleu, obrgado.
Arrojado ao extremo mesmo. Todo desenho dele é diverso do que havia, gosto demais do XP. O mais incrível é que existem miniaturas dele.
Que carro lindo!
ResponderExcluirBem arrojado para a época!
dipoloeletrico.blogspot.com.br
Juvenal,
ResponderExcluirGrande Texto ! quando pensamos que já havíamos falar de tudo no mundo automotivo aparece esse carro...
A TVR teve alguma história depois do Mantis XP certo ?
Abs
Mikesp82,
Excluira fábrica é a Marcos, não a TVR.
Marcos foi assumida por coreanos, trocou de donos mais algumas vezes e parou de vez em 2007.
JJ
ResponderExcluirIncrivel esse carro. adorei o conceito em Raio-x onde se ve o piloto e seus movimentos no cockpit.
O escapamento (Foto-1) e fechado? Como funciona esse tipo de escape??
Saudacoes
Acho que o escapamento nao e fechado nao.
ExcluirMas na verdade eu nao sei, na verdade eu só acho!
Anônimo,
Excluirnão é fechado. Já vi algo similar em motos. Uma função lógica é evitar entrada de água em lavagens, mas, sem certeza, acredito que ajude a abafar o ruído. Lembre que o carro é licenciado na Califórnia, historicamente o local mais restritivo em termos de qualquer tipo de poluição do mundo todo.
Sempre leio sobre Grupo X ou Y referente a carros de corrida, poderia ser feito um texto explicando essa classificação antiga e até mesmo a atual.
ResponderExcluirE se ele interferiu no desevolvimento do automobilismo internacional e nacional, pois ja li que alguns carros com projetos prontos foram alterados devido a essas regras serem mudadas.
Carlos - Arapongas/PR
olá juvenal jorge..... esse motor Repco-Brabham 740 V-8 as vavulas são em 90 graus.... esse motor é lendário... inclusive deve ser bem caro ainda....
ResponderExcluirEsse modelo me lembra, ainda que a certa distância, aquele Lister Storm que era do Diniz.
ResponderExcluirSugestão: um post sobre ele.
Mas sera que esse Lister ainda esta no Brasil?
ExcluirCSS e anônimo,
Excluirde conversas com amigos, ouvi dizer que o Storm está sim no Brasil. Se um dia conseguirmos, faremos algo com ele.
JJ, só tenho a dizer parabéns, não conhecia esta história, e mto interessante, dá para ver que em outrora, dava para se fazer algo, hoje em dia não mais. Obrigado.
ResponderExcluirMarcos verde, e não é goleiro do Palmeiras?
ResponderExcluirBrincadeira, o carro é magnífico: tem estilo único e linhas tão agressivas quanto atraentes. A família americana que o comprou está no famoso "ponto fora da curva".
Fantástico carro! Protótipo que roda até hoje deve ser raridade. JJ, mais uma história incrível.
ResponderExcluirAinda bem que ficou entre EUA e Reino Unido. Se viesse para o Brasil, desmancharia o bico na primeira lombada. E ainda colocariam uns "sacos de lixo" para ficar na moda... rsrs
Sensacional, que carro fantástico!
ResponderExcluirMFF
JJ
ResponderExcluirObrigado por responder todos os comentarios!