Muito se fala sobre as diferenças entre tração dianteira e traseira, especialmente aqui no blog, onde o amigo AK mantém uma justíssima cruzada em prol da hoje rara tração traseira. A cruzada é justa porque realmente não há nada que satisfaça mais um entusiasta do que um carro de tração traseira bem feito.
Apesar disso, acredito hoje que mais importante não é qual roda traciona, e sim o carro como um todo. Em engenharia, não existe melhor ou pior, existe uma coleção de compromissos feitos em cada detalhe do carro, um balanço eterno entre os vários parâmetros que um veículo deve atender no uso. Economia contra desempenho, conforto de marcha contra aderência em curva são os mais conhecidos, mas tudo, da maçaneta da porta ao parafuso de roda, é balanceado como esses parâmetros mais importantes durante o projeto de um carro.
Sendo assim, como explicar a predominância da tração dianteira hoje em dia? Uma das principais vantagens deste esquema é a possibilidade de, agrupando-se toda a mecânica na frente, sobrar mais espaço para passageiros e carga. Outra é que a tração é melhorada (mais massa sobre as rodas tracionadas), e outra ainda é o comportamento benigno e previsível em curvas.
Mas tudo isso pode ser obtido também em um carro com motor traseiro e tração idem, colocando tudo lá atrás, e não lá na frente, se for bem projetado para que o comportamento em curvas seja decentemente previsível. Por que então não é esta a configuração predominante?
Vamos voltar um pouco no tempo para tentar achar a resposta, especificamente à Inglaterra do início dos anos 60. Uma história conhecida que acho pertinente aqui.
A BMC (British Motor Corporation) lançara o Mini em 1959. O carro tinha o hoje onipresente esquema de motor dianteiro transversal e tração dianteira. Equipado com minúsculas rodas de aro de 10 polegadas, e uma suspensão por cones de borracha, o Mini era minúsculo por fora e relativamente enorme por dentro. Era incrivelmente estável, muito por causa de suas rodas pequenas, sua suspensão de curso curto e o fato de ter uma roda em cada extremidade do carro, fazendo dele praticamente um kart de tração dianteira e teto. O revolucionário carrinho de Sir Alec Issigonis (acima com sua criação) foi um tremendo sucesso e influenciou tremendamente a indústria.
Mas em 1960 seu futuro ainda era incerto. O pequeno carro tinha o tamanho certo para a Europa dos anos 60, mas era espartano demais, sem ao menos janelas com vidros que sobem e descem (como antigas Kombis, era janelinha de correr), e seu motor, o tradicional BMC série A, era antiquado e fraco. Este motor de quatro cilindros em linha refrigerado a água e pequena cilindrada (inicialmente 850 cm³) era feito totalmente em ferro fundido, e tinha válvulas no cabeçote acionadas por varetas.
O grupo Rootes, então concorrente da BMC, era então dono das tradicionais marcas Hillman, Humber, Singer e Sunbeam. Com uma linha de veículos antigos e/ou tradicionais, precisava urgentemente de um carro pequeno e moderno como o Mini para sobreviver. Um enorme projeto então começou a andar para realizá-lo. O projeto foi realmente algo grandioso, inclusive com uma fábrica nova, construída na Escócia com incentivos do governo. O carro que sairia deste projeto seria o Hillman Imp, lançado em 1962, um carro extremamente moderno e sofisticado, e a mais promissora tentativa de sedimentar o conceito do motor e tração traseiros.
Projetado por Tim Fry e Mike Parkes (famoso depois como piloto da Ferrari), o Imp era um projeto muito bem feito. Como não podia deixar de ser, era um monobloco de aço estampado, pequeno, mas com habitáculo generoso comparativamente. E um detalhe criado por Fry para ajudar motoristas mais altos como ele: havia no assoalho do carro fixações extras, mais recuadas, para os trilhos dos bancos dianteiros. Assim, o dono poderia se quisesse movê-los para trás! Imagine isso hoje em dia, impossível...
Mas era no comportamento que o Imp mostrava sua genialidade. Tinha suspensão traseira (acima) por braços arrastados, e dianteira (abaixo) McPherson com dois longos braços inferiores articulados, que pivotavam no meio do carro. Suas rodas tinham 12 polegadas, bem maiores que as do Mini. A suspensão tinha curso, as rodas podiam enfrentar buracos mais facilmente, e o carrinho tinha um conforto de marcha comparável a carros de tamanho normal. E seu comportamento em curvas era decididamente esportivo, mas previsível e benigno. Parkes entendia muito do assunto, como depois descobriu Enzo Ferrari, que impediu o progresso de sua carreira como piloto por medo de perder suas habilidades de engenheiro em um acidente qualquer...Tentativa fútil, porque Parkes acabou falecendo num acidente nas ruas mesmo.
Ajudava neste comportamento exemplar o baixíssimo peso do motor, um quatro em linha refrigerado a água todo em alumínio, OHC, que pesava apenas 76 kg, completo! Como comparação, um VW contraposto, grande parte dele feito no levíssimo magnésio, pesava 112 kg. Este motor era uma versão do Coventry Climax FW (Feather-Weight, ou peso-pena), é um motor que ficou famoso em vários Lotus de competição e de rua (no Elite, com 1,2 litro) dos anos 60, mas nasceu como bomba d’água portátil para corpos de bombeiros. É famoso por ser tudo que um entusiasta gosta: gira alto, mas liso e fácil, solto, alegre. Chegou até à Fórmula 1, em uma versão V-8.
No Imp, era uma versão de 875 cm³, fundida na fábrica do Imp na Escócia, mas usinado e montado na Coventry-Climax na Inglaterra (em Coventry, lógico), para depois voltar de onde saiu. Era inclinado a 45 graus, para economizar espaço e baixar o centro de gravidade, como a metade de um V-8. O radiador ficava ao seu lado, como num Fiat 600.
O carro teve um sucesso estrondoso de crítica no seu lançamento. Ajudava o fato de ser comparado ao Mini, um carro com vidros que subiam e desciam, com uma aura de solidez ausente no carro da BMC. Os escribas se deliciaram com o motor girador, muito mais econômico e potente que o do Mini. O comportamento também deixava o Mini no chinelo, mais divertido e tão previsível quanto ele, mas muito mais confortável. Fora que podia se sentir as grandes vantagens deste tipo de carro: direção levíssima, e com grande ângulo de esterço máximo.
Parecia que o Imp mudaria o mundo, do jeito que sabemos hoje que o Mini fez. O espaço dos dois porta-malas era excelente, e o acesso ao segundo, pelo vidro traseiro basculável, era inovador, visto que o Mini não era um hatchback, o que negava uma das grandes vantagens de colocar a mecânica lá na frente, que é a versatilidade da porta traseira.
O Imp melhorou à perfeição o que o Fusca, os Renaults diversos e o Fiat 600 não conseguiram: praticidade e espaço para malas, e comportamento benigno. Por que então andamos em carros iguais ao Mini e não iguais ao Imp hoje?
Simples. Lord Rootes gastara uma fábula no novo carro, e não aceitou atrasos no lançamento. O esquema de testes bolado por Parkes, extensivo, falhou em testar suficientemente o carro numa condição que se tornaria comum nos anos 60: uso intenso no trânsito pesado, anda e para. O carro superaquecia facilmente, a empresa não conseguiu resolver rapidamente o problema, não havia marcador de temperatura da água no painel, e quando acendia a luzinha, era tarde. Motores eram perdidos em carros novos, num ritmo alarmante e incessante. Logo, ninguém queria comprar um Imp.
O resto já sabemos: o Imp sumiu, desaparecendo lentamente na história, a Rootes sofreu um baque tremendo e acabou nas mãos da Chrysler americana. Giacosa usou o sucesso do relativamente confiável Mini para aprovar seus carros de tração dianteira na tradicionalista Fiat, criando o 128, e principalmente o 127 (147 aqui), que com sua porta traseira e dianteira McPherson, selou o conceito do carro moderno. Depois apareceu o VW Golf, e daí todo mundo já sabe...
Acredito que de qualquer forma a tração dianteira ainda seria a mais popular. Um carro de tração dianteira mal projetado é muito mais benigno em comportamento do que um de tração traseira feito também sem cuidado. É inerentemente mais benigno, e carros como os modernos Audi mostram o que pode acontecer quando se faz um tração dianteira direito.
Mas não posso deixar de pensar o que seria do mundo se o Imp tivesse o sucesso do Mini. Talvez um pouco mais de variedade, que é sempre o tempero da vida!
MAO
Fiquei até triste de saber como esse Imp morreu. Mais triste ainda por saber que isso poderia ser evitado, ou pelo menos podiam ter solucionado o problema de superaquecimento antes do carro pegar a fama de "esquentado". Uma pena.
ResponderExcluirÓtima reportagem! mas.....desculpe-me Marco, pela imagem da suspensão dianteira, esta não é McPherson, pois as rodas estão fixadas diretamente nos braços e não nas colunas dos amortecedores!
ResponderExcluirMAO,
ResponderExcluirFiquei curioso quanto a pergunta do Romero. Esse semi-braço fixo se liga tanto a bandeja como ao amortecedor, mas cada um mantém sua articulação. Acho que o amortecedor se liga a roda e não a bandeja, formando assim a triangulação. Mas, fiquei na dúvida quanto a ser McPherson ou não!
Realmente Rômulo, parece que roda e amortecedor são conectados por baixo, formando uma "balança", o que permitiria manter a cambagem constante. Nunca vi essa configuração...mas não é McPherson, já que o amortecedor não participa do eixo de giro da direção.
ResponderExcluirNão poderia ser um pseudo-McPherson como aquele que vemos em carros da Peugeot?
ResponderExcluirÉ essa intolerância a atrasos no projeto parece ser tradicional no grupo Rootes,pois algo parecido ocorreu no lançamento do Dodginho por aqui em 1973,os testes ainda não tinham sido totalmente concluídos e a primeira impressão que o carro deixou foi péssima,só consertada em 1976....
ResponderExcluirNão deixa de ser ironico notar que, pelo desenho e alguas características técnicas, parece que o IMP deveria ser uma espécie de "corvair inglês", e que ele tenha conseguido isso tão a risca!
ResponderExcluirOutra coincidência: O Mini tambem superaquecia, nos primeiros protótipos. Ao contrário do Imp, no entanto, o problema foi detectado e corrigido antes de o carro entrar em produção.
Estranho mesmo é que o mini tenha conseguido a fama de carro estável, e não desconfortável. Ao que parece, suspensão do carrinho não tinha nada de especial (pelo menos não tão especial quanto os Citroen), e haviam ótimos subcompactos de projeto "tudo atrás", como o Fusca, o Isetta, e os própios 500/600 da Fiat. O Isetta até foi usado em competições, nas quais o piloto não reduzia para fazer as curvas, mantendo uma velocidade média muito próxima da máxima (uma prova tanto de ótima estabilidade quanto de fraquíssimo motor).
Uau!
ResponderExcluirMcfly tinha q usar o De Lorean para fazer o IMP da certo!!!
Todos
ResponderExcluirO texto está correto, pois o que caracteriza a suspensão McPherson é a ausência de braço de controle superior, sendo o braço inferior de articulação longitudinal O desenho original de Earl McPherson previa o amortecedor girar junto com a roda, mas já há um desenho atual de suspensão dianteira com amortecedor parado e manga de eixo na sua parte inferior. O amortecedor na suspensão McPherson não tem que necessariamente girar, sendo exemplos os Fiat 147 e Uno e o Porsche Boxster, os três de suspensão traseira McPherson.
Desculpe minha ignorância, mas esta suspensão dianteira não funciona de forma semelhante à das Pick-Up Ford F-100/F-1000? Seria ela como se fosse um Swing-Arm?
ResponderExcluirNão vi nenhuma articulação na extremidade do braço da suspensão, o que me faz acreditar que o Pino-Mestre da direção seja preso diretamente na balança de suspensão. Faz sentido isto?
MFThomas
ResponderExcluirSão parecidas, mas a de duplo braço "I" (Twin-I-Beam) Ford não tem braço transversal biarticulado como toda McPherson hoje e por isso depende de tensor longitudinal. Lembre-se que na McPherson também não há articulação da ponta de eixo em relação à coluna.
Bob, dá uma olhada nessa foto: http://2.bp.blogspot.com/_L_gmO1xMx3I/TTAz324Rw4I/AAAAAAAAJzI/1mk6PaCKRww/s1600/IMG_4453.JPG dá pra perceber que a manga de eixo é fixada diretamente ao braço e não tem nenhuma ligação ao amortecedor.
ResponderExcluirRomero Florio
ResponderExcluirNão tem mesmo, sei disso. O que importa é a inexistência de braço de controle superior.
Bob Sharp,
ResponderExcluirObrigado pelos esclarecimentos sobre a suspensão McPherson. Esse arranjo do Imp, nunca tinha visto, fiquei bastante curioso depois do questionamento do Romero.
MAO
Ótimo post. Bom ver que em engenharia não dá para ter avaliação simplista, limitando-se a configuração ou conceito genérico. Precisa-se ir bem mais fundo.
A leitura atiçou minha vontade de conhecer o Hillmann Imp. Devia ser bem divertido. Infelizmente não temos mais tantas opções em termos de configuração nos carros mais acessíveis.
Bob, desculpe-me, sou um cara meio teimoso....... as imagens que coloco aqui são do "O LIVRO DO AUTOMÓVEL", da "SELEÇÕES READER'S DIGEST", onde aprendi ainda menino como funcionam as partes de um automóvel e reproduzia em meus carrinhos de "eucatex" e madeira os variados tipos de suspensão, inclusive a McPherson, usando antenas de rádio como "amortecedores".... Pelo que percebi, a característica da McPherson é a de fazer com que a roda acompanhe o movimento linear e vertical do amortecedor, ligada a este por uma junta esférica e, tendo a parte superior do amortecedor fixada ao chassi, criando uma estrutura de sustentação ao sistema e mantendo uma cambagem "constante" sem a necessidade de um braço superior. Na segunda figura, observa-se que a suspensão do IMP assemelha-se a um semi-eixo flutuante e não a uma McPherson. http://i278.photobucket.com/albums/kk100/ricardocmoreno/suspensao9.jpg...................................http://i278.photobucket.com/albums/kk100/ricardocmoreno/suspensao11.jpg
ResponderExcluirO segundo link saiu incompleto http://i278.photobucket.com/albums/kk100/ricardocmoreno/suspensao11.jpg
ResponderExcluirRomero Florio
ResponderExcluirSomos dois teimosos. A suspensão McPherson não mantém a cambagem constante, aliás nenhuma suspensão de articulação longitudinal, exceto no caso de triângulos superpostos de mesmo comprimento, mas que ninguém usa. Sugiro cada um ficar com o que acredita ser certo. Tudo o que eu tinha a dizer está mais acima.
Tudo bem Bob! não vou mais discutir... mas coloquei CONSTANTE "entre aspas".
ResponderExcluirSeria bom ter visto uma evolução do Imp, e pelo curso da história poderia até ter chegado ao Brasil, pelo menos no conceito através da Dodge.
ResponderExcluirMas se não fosse o fracaso das primeiras unidades, este conceito morreria mesmo assim, dessa vez pela globalização. O que impera hoje é o conceito de plataformas modulares. Reduzem custo e servem para várias categorias. O conceito do Imp só serve para um hatch, sedam, cupê e roadsters. Não teria espaço para os badalados SUVs e minivans.
Há um comparativo bastante interessante entre o Hillman Imp, o DAF 44 e o NSU 1000 numa das edições da revista Practical Classics publicada há mais ou menos uns 3 ou 4 meses. Com todo o perdão da falta de precisão do meu comentário, vou procurar a reportagem, escanear e mandar para o MAO, pois curiosamente, o mote da matéria é justamente a semelhança entre os três carros com o injustiçado Chevrolet Corvair, só que em escala menor.
ResponderExcluirUma coisa que fortalece a hegemonia da tração dianteira é o fato de que, nessa configuracão, tração e direção estão agrupados em um único conjunto. Isso é vantajoso para os fabricantes, já que reduz o número de operações (e o tempo dispendido) na linha de montagem.
ResponderExcluirBob, e as pseudo-McPherson, como as tão comuns nos Peugeot?
ResponderExcluirAnônimo 28/3 23:35
ResponderExcluirNão tem nada de "pseudo", é McPherson na íntegra. Possivelmente por ter braço transversal de duas articulações, sem depender da barra estabilizadora para localização longitudinal da roda. Deve ser isso. Realmente nunca me preocupei em saber por quê. Farei isso oportunamente e comentarei aqui.
MAO,
ResponderExcluirbela história de um carro muito bacana e fora do comum.
Está engraçado ver que os comentários estão se concentrando apenas na suspensão, quando tudo no post é interessante.
Pessoal, você leram tudo ou pararam na imagem da suspensão dianteira ????
Falando em Minis, aproveito este para recomendar um filme, Um Golpe à Italiana (1969), com Michael Caine. Obrigatório para todo autoentusiasta... hehehe.
ResponderExcluirAbs
Fabio
ResponderExcluirMuito bem lembrado o filme .. O tenho em dvd e ja assisti umas 10 vezes....
A cena, no comeco , em que um mafioso se espatifa com seu Lamborghini Miura e a que mais me marcou !
Otima trilha sonora ... e incrivel ver os Minis em acao , fugindo das fantasticas Alfas Giulia da policia Italina.
Eu nem sabia!!! Existe um remake de 2003 com a Charlize Theron!!! Puuuuuuts! Vou assistir hoje! Se não for grande coisa, pelo menos tem a Charlize! hehehe
ResponderExcluirAbs
No Brasil, o Imp seria outro carro a ganhar a alcunha de "Rabo Quente", como os primeiros Renault 4CV...
ResponderExcluirSuspensão, tração, até bitola do eixo por que não... Eu fico com o citroen DS ainda com muito estilo e inovação. E olha que nem saiu com o motor 6 cilindros contrapostos antes do porsche por pouco, diga-se pressa.
ResponderExcluirMas também era outra categoria de carro.
Abs, Roberto Dallabarba.
Anônimo,
ResponderExcluirNão consigo ter olhos pras Alfinhas com os Minis roncando sobre a música "the self preservation society... hehehe
Assisti de novo... A cena dos Minis pulando os prédios, depois passando pelo dique... Demais!
Bridger!